Guerra de classes

Por Ruy Braga, no blog da Boitempo

Enquanto o julgamento da chapa Dilma-Temer desenrola-se no Tribunal Superior Eleitoral, o governo golpista faz de tudo para avançar com a contrarreforma trabalhista nas comissões que avaliam o mérito das propostas no Senado Federal. Aparentemente desconectados, trata-se de dois debates intimamente ligados. Não é segredo que a sobrevivência do governo depende da aprovação das contrarreformas trabalhista e previdenciária em curso. A natureza do golpe parlamentar de 2016 revela-se muito mais na pilhagem aos direitos dos trabalhadores do que na tentativa de políticos acuados pela operação Lava Jato de livrarem-se da cadeia.

Afinal, caso não demonstre plena operacionalidade na aprovação das contrarreformas, o governo Temer não terá servido ao seu propósito original: promover o ajuste estrutural da economia brasileira no sentido de consolidar um regime de acumulação por espoliação no país. Eis a razão, mesmo diante da profundidade da crise política que assola Brasília, dos parlamentares preferirem avançar com a votação da contrarreforma. O interesse das empresas deve ser assegurado a qualquer custo, ainda que as medidas em trâmite no Congresso conduzam o país de volta ao século XIX.

Foram mais de cem alterações na CLT. O pacote de maldades contra o trabalhador brasileiro é muito grande pra ser detalhado neste espaço. No entanto, do ponto de vista da essência do projeto, isto é, a dominância do negociado sobre o legislado, é importante destacar que dos cerca de 13.000 sindicatos atuantes no setor privado existentes hoje no país, a esmagadora maioria funciona como uma espécie de fiscal da CLT, pois, simplesmente não tem condições de negociar com as empresas benefícios reais para os trabalhadores.

Neste contexto, afirmar a dominância do negociado significa eliminar, em termos práticos, muitas conquistas históricas da classe trabalhadora brasileira. O avanço da mercantilização do trabalhador levará, fatalmente, ao aumento da insegurança das próprias relações trabalhistas. Afinal, imaginem o que não aconteceria se, subitamente, os trabalhadores representados por um sindicato inexpressivo percebessem que seus representantes assinaram um acordo que, em termos práticos, acabará com o décimo terceiro salário, etc. A aprovação da contrarreforma criará uma situação potencialmente explosiva no país, com um compreensível aumento da violência nas relações de trabalho.

Em relação à flexibilização da jornada, o grande risco é a generalização do trabalho intermitente com a multiplicação daquilo que na Europa é chamado de “mini job”. O trabalhador fica em casa esperando receber uma mensagem de texto do empregador dizendo onde e quando ele deve se apresentar para o trabalho. Assim, o trabalhador permanece totalmente à mercê das flutuações da demanda e sem nenhuma previsão de quanto receberá no fim do mês, tendo em vista que o empregador paga apenas pelo tempo efetivamente trabalhado. Trata-se de um retrocesso que nos remete aos primórdios do capitalismo, quando a forma típica de remuneração era exatamente o salário por peça produzida pelo operário.

Além disso, as formas precárias de contratação, normalmente associadas aos contratos terceirizados para os trabalhadores subalternos e ao chamado “pejotismo” para os quadros mais qualificados, deverão se banalizar em um futuro próximo. Em suma, todos perdem renda e têm sua carga de trabalho aumentada. Jornadas mais longas e salários menores: os empresários desejam impor aos trabalhadores um verdadeiro desmanche do sistema de proteção do trabalho. Assim, além dos ganhos imediatos em termos de espoliação dos rendimentos do trabalho, os empresários buscam alcançar outro objetivo igualmente importante: deslegitimar as formas de reivindicação historicamente criadas pelos trabalhadores em seu processo de construção classista.

Quando nos referimos à CLT, estamos falando sobre um momento decisivo de um longo ciclo de mobilizações dos grupos subalternos brasileiros que, em termos globais, vai da Greve Geral de junho-julho de 1917, até meados dos anos 1930, com a mal sucedida insurreição comunista contra a ditadura do Estado Novo. A promulgação da CLT coroou este ciclo por meio de uma série de concessões materiais aos trabalhadores e que foram estratégicas para o esforço industrializante do país. Além disso, a legislação trabalhista delimitou, pela primeira vez na história brasileira, um espaço de conflitos políticos reconhecido como legítimo para as classes subalternas. Em outras palavras, por meio da mobilização pela efetivação dos direitos trabalhistas, existentes na forma da lei, mas ausentes na realidade das empresas, os subalternos apropriaram-se de uma gramática política que foi largamente empregada nas lutas sociais dos anos 1950, 1960 e 1970. Isso sem mencionar a influência desta dinâmica coletiva na conquista dos direitos sociais universais garantidos pela Constituição de 1988.

Neste sentido, o atual desmanche da CLT faz parte de uma ampla reação antipopular cujo vértice consiste em deslegitimar as lutas sociais no país a fim de aprofundar a exploração e a dominação dos trabalhadores. E caso a contrarreforma trabalhista seja aprovada, os golpistas sepultarão um século de lutas sociais em benefício de uma cidadania salarial inclusiva. Nesse contexto, os trabalhadores pagarão o pato da crise por meio da evaporação dos rendimentos e da ampliação das jornadas de trabalho. A desigualdade social vai aumentar, minando as bases da retomada do crescimento econômico. Não há dúvidas que entramos em uma quadra histórica marcada pela guerra da burguesia contra o povo pobre e trabalhador.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores dos livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, Carta Maior, 2013) e Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016). A Boitempo prepara para 2017 o lançamento de mais novo livro A rebeldia do precariadoColabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

 

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