Por uma sociedade que não odeie as mães

“Historicamente na vida de muitas mulheres negras, a figura masculina provoca mais dor do que aconchego ou qualquer tipo de proteção” 

Por Juliana Gonçalves para o Calle2/População Negra e Saúde

Jovem, mãe, negra e solteira. Isso é parte do que sou. Sei que falo de uma experiência coletiva sob uma ótica particular. Dói saber disso. Somos muitas mães solteiras, sobretudo negras. Ter filho é um divisor de águas na vida de muitas mulheres. O pesar vem quando a maternidade nos separa por vezes do mundo, das pessoas. Mas não precisa ser assim. Não deve ser.

Vou começar dizendo que ao meu ver o problema nunca foi ser  “solteira’’. Nunca fui uma mulher que sonhava com casamento. Acredito que não ter um companheiro não seja a grande questão aqui. O problema é criar um filho de um pai que pouco se importa ou nada se importa. O que inclusive pode ocorrer em relações onde o homem está lá fisicamente presente.

Venho de uma família onde isso é exceção. As que vieram antes de mim, mãe, avó, bisavó de forma geral respeitaram o que foi traçado pela tradicional família brasileira. Onde os casamentos são mantidos porque a mulher tudo suporta. E caso o homem morra antes de você, muito mais do que tristeza, o luto é feito de libertação.

Depois de viúva, as mulheres não casam mais. O casamento é uma obrigação que já cumpriram. Ter um homem na vida é um fardo que já não necessitam. Se relacionar dentro da ideia de amor romântico nunca foi uma realidade e, se foi necessidade em algum momento juvenil, foi algo esmagado e extinto pela rotina, pelo árido da vida.

Quando minha mãe diz ‘não’ a isso tudo e pede a separação na década de 90, a instituição família treme. Esse enorme ‘não’ que ela disse à vida de resignação era na realidade um enorme ‘sim’ para ela mesmo. Ela passou a se enxergar como alguém que era digno de ser feliz. Mesmo assim, ela só conseguiu fazer isso quando eu e minhas irmãs éramos crescidas. Antes disso ela fez o que esperam de nós: viveu para mim e minhas irmãs e se anulou quase que completamente.

Meu pai já era ausente dentro de casa. E o divórcio só afastou ainda mais essa figura masculina de nós. Quando cresci, sabia que não queria um casamento, essa obrigação, mas queria uma família, um filho talvez.

“Quando engravidei, estabeleci um pacto de confiança com o pai do meu filho. Não queria ser mãe só, estabelecemos que mesmo separados enquanto casal, faríamos isso junto. Não foi assim.”

Dei todo esse contexto porque na realidade das mães em carreira solo é muito comum a naturalização da ausência masculina e culpabilização da mãe pela abstenção da paternidade do homem.  É importante falar o óbvio às vezes e para toda mãe sozinha há sim, na grande maioria das vezes, um pai folgado, egoísta que simplesmente não quer estar lá.

Historicamente na vida de muitas mulheres negras, a figura masculina (pai, namorado, marido) pauta mais dor do que aconchego ou qualquer tipo de proteção. Ainda não sabemos nos relacionar. E o homem negro pouco aprendeu a se relacionar sem podar, sem destruir. Ele também por vezes é massacrado. Escrevi um pouco sobre isso nesse texto intitulado “Corporeidade masculina e a crise do afeto”.

Retomando, aqui falo de pai e mãe porque é assim que se estabelece nesse caso essa relação para mim. Mas isso vale para qualquer configuração de família. Não há desejos de paternidade/maternidade sufocados por causas externas. Quem quer ser presente é, quem quer doar seu tempo doa, quem não tem dinheiro, dá o que tem. Seja o tempo, o afeto, a paz.

“Na sociedade contemporânea, estabeleceu-se que criar uma criança é obrigação de pai e mãe. Quando um deles se ausenta, a responsabilidade recai de maneira integral nas mãos do que ficou. E quem fica historicamente são as mulheres.”

Esperam delas que reneguem o mundo. Que se virem. Já quando o homem fica ele é louvado. ‘Um paizão’, dizem ao ver o cara fazendo o mínimo. Sem o pai presente no cotidiano, tenho sorte de ter uma rede preciosa de apoio, mas nunca será suficiente porque a responsabilidade é apenas minha.

Esse peso de ser a única responsável pela criação de uma criança dá uma angustia sufocante. Um peso que parece extremo demais para uma pessoa só. E é. Criar uma criança, como já ensinaram meus ancestrais, é trabalho da aldeia toda. Porém, nessa sociedade patriarcal e machista que vivemos, essa aldeia é composta de uma só mulher, por vezes triste e sempre cansada.

A sensação é de impotência. O problema não é apenas a dificuldade que é criar um ser humano são de mente e corpo, mas de continuar sendo humana enquanto sou mãe.

A minha humanidade é constantemente descartada e minhas necessidades ignoradas. Sou apenas o  ser que trabalha e o ser que sustenta.  E o trabalho? Ah, o trabalho. Basta ler o desabafo que Beatriz Marinelli, mãe e ativista, postou nas redes sociais sobre como é tratada em entrevistas de emprego.

Se é difícil trabalhar, o que dirá sonhar e ter projetos concretos que dialoguem com a minha subjetividade e que nada tenham a ver com o fato de ser mãe. É fato que a maternidade me preenche de tantas formas. Sim, é muito amor, mas também é muita renúncia.

Se me permito sonhar um pouco, é por conta dessa rede que criei, mas a realidade é que mesmo assim consigo apenas sobreviver. Explico: graças à rede consigo trabalhando em janeiro, quando não há atendimento nas creches de São Paulo. Mas se um dia a mãe resolve que precisa curtir um happy hour, sair para se distrair um pouco, um sambinha de leve, uma paquera, uma transa, com quem fica a cria?

“Quem cuida do seu filho quando você precisa se cuidar? Quem cuida para você estudar, ir fazer um curso diferente, terapia, aula de dança ou de língua estrangeira? Mesmo que ninguém fale, fica submetido que quem pariu Mateus, que o balance sozinha.”

“Deixa essas coisas pra depois, espera o menino crescer”. “Você sabia que ia ser assim quando escolheu ser mãe’’ são frases recorrentes que mães costumam ouvir. O dolorido é saber que o nível de renúncia que esperam das mães é absurdamente maior do que o que esperam dos pais.

E como falar em escolha real no contexto em que vivemos? Onde a maioria das mulheres não tem acesso a métodos contraceptivos, quando muitos homens dentro de relacionamentos forçam a barra para transar sem camisinha, quando o aborto seguro não é uma opção quando se é pobre?

No meu caso, quando ouço que escolhi isso penso: não, eu escolhi ser mãe, mas não escolhi fazer isso sozinha. Enfim….

Certa vez tentei explicar para pessoas próximas como para mim sair para dançar às vezes, ter um tempo sem o meu filho, é uma questão de sanidade. Mas quem liga se você está sã ou não? Se tiver amargurada e vivendo um quadro de depressão, desde que não fale sobre isso, tudo bem…

Sei que há grupos de mães que se conversam e cuidam uma das crianças das outras para que haja momentos de cura e liberdade como esse que citei. São poucos ainda porque temos muita dificuldade de nos deixar cuidar. De entender que não dá para ser boa mãe doente, triste, desiludida. De deixar a culpa de lado.

Ao meu redor conheço muitas mães negras de pais ausentes que carregam o mundo nas costas. Não é normal ter que suportar esse peso sozinha, não pode ser.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2013), os dados sobre estado civil em mulheres de 18 a 59 anos apresentou que 48% das mulheres brancas são casadas, enquanto as mulheres negras são 33,3%. 55,1% delas são solteiras.

Os dados sobre Nascidos Vivos do DATASUS (Sistema de Informação do Ministério da Saúde) também reafirmam o que percebemos por aí. Entre as mulheres que tiveram filhos em 2013, ao contar raça/cor vemos que as negras solteiras representaram cerca de 43,6%, enquanto as mulheres brancas 34,8%.

Embora todos os textos dessa coluna versam sobre a minha existência no mundo vista de forma coletiva, esse é o texto mais autoral que escrevo. Um desabafo e um pedido que pode servir para melhorarmos o sentido de comunidade: olhem para as mães que estão ao seu redor! Ofereça ajuda, insista. Esteja lá. Cuide dela, nas pequenas coisas.

“Olhe para as mães lembrando que são pessoas que sonham e têm diversos desejos. Não alimentem essa estrutura machista e misógina que anula a mãe do convívio social. Crie espaços pensando nas mulheres que têm filhos.”

Dos lugares de lazer a espaços de militância. Vá visitá-las, chame para passeios que englobem seus filhos e filhas.

No ano passado, no dia 25 de julho  (Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha) foi organizada uma marcha pelas mulheres negras de São Paulo. Durante todo o evento havia uma creche para crianças à disposição das mães que queriam estar presentes na marcha. A ideia surgiu de uma mãe e militante chamada Fernanda Gomes de Almeida. A mesma Fernanda, junto com uma porção de outras mulheres negras lésbicas organizam uma festa chamada “Sarrada no Brejo”, onde durante toda a balada, as mulheres com filhos/as podem deixar seus bebês na creche coletiva. São algumas as iniciativas que ajudam mães, mas ainda é pouco.

E você irmã negra sem filhos, precisamos muito do seu apoio. Faça dessa questão algo importante para você também. Paute isso nos espaços que nós mães não estamos porque não podemos levar nossos filhos ou não temos com quem deixá-los. Paute isso quando namorar o cara descolado cheio de filhos, que não paga pensão, que não dá suporte emocional nenhum, mas vive no rolê.

Quando não tinha filho não fiz isso. Nem ao menos tinha ideia da complexidade e solidão envolvidas numa situação como essa. Um afago sincero para as mães que nunca ajudei por pura falta de sensibilidade e ignorância.

As mães de hoje estão criando o nosso futuro, que precisa ser melhor e mais harmônico. Pessoas doentes não criam pessoas sãs. Precisamos cuidar de quem cria o nosso amanhã.

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