Doria ataca novamente a Cracolândia e o absurdo já não nos surpreende mais

Por Roberto Tardelli, no Justificando

No domingo, na madrugada gélida paulistana, o Prefeito Municipal, em pessoa, esteve impondo sofrimento e terror aos moradores de rua, que ocupavam uma praça no centro da cidade. A ação facinorosa se voltava contra a cracolândia, que ele quer e entende que resolverá com bombas, tiros, terror e sofrimento. Entende ele que deverá internar todos os que ali estiverem, involuntariamente. Ou se internam ou morrerão congelados ou caçados nas ruas da loucalópole. Eram seis graus na manhã do domingo e o prefeito agiu porque o terror não descansa, porque no domingo menos pessoas testemunharão a barbárie e seria um dia ideal para mostrar que, nesta cidade, há um João Trabalhador que trabalha sem parar, surfando para os enlouquecidos 80% de aprovação que suas ações anteriores angariaram junto à população.

Nos jornais de sábado, um dia antes da invasão da praça, um psiquiatra de renome defendeu a prática, em um jornal de grande circulação, numa tentativa de validar o que viria, para criar uma base científica para a barbárie. Ninguém sabe se quem defende a uma política desse nível de brutalidade o faz porque acredita no que diz ou porque vai faturar uma nota com essa hotelaria perversa. Sejamos mais cruéis e fiquemos com a pior possibilidade: eles fazem porque acreditam no mal que impõem às pessoas que lá estão. A internação involuntária se tornou a solução para centenas de pessoas, como fosse uma solução fácil, pronta, imediata, rápida. Como ninguém penso nisso antes? Juntar aqueles zumbis todos e interná-los?

Que diabos vem a ser a internação involuntária? Como será isso, caçar as pessoas e enfiá-las em algum lugar para que se “recuperem” e de onde possam devolvidas ao mesmo sem rumo que a fez serem capturadas, decerto para que sejam laçadas novamente, assim internadas, assim liberadas e assim pegas de novo, no ciclo perverso do sequestro do conflito social, no sequestro do conflito das vítimas do neoliberalismo.

A internação involuntária é uma forma aguda de internar pessoas acometidas de “transtorno mental” tão severo que as prive por completo da autogestão de suas vidas. É o que diz a lei antimanicomial, Lei 10.216/2001, que procura estabelecer uma política humanizante de atendimento à saúde mental, tendo por ponto de partida exatamente frear internações em massa. O objetivo da lei e os objetivos do prefeito colidem frontalmente.

Por ser uma forma de privação de liberdade, essa modalidade de internação não pode ser feita, apenas seguindo a vontade higienista de quem quer que seja. Por isso, ela é a última opção a ser considerada. Se o próprio Prefeito, ele mesmo, tem afirmado que nunca nada foi feito para resolver o problema, ele cria um ponto de partida ilegal, porque começa com a internação, como se ela fosse a primeira solução, quando, na verdade, é a última e, ainda assim, “se os recursos extra hospitalares se mostrarem insuficientes” (art. 4º). É preciso haver um reconhecimento de que outras formas de abordagens se mostram inviáveis. O Programa Braços Abertos, que foi laureado internacionalmente, e que atendia os moradores de rua, dependentes do uso de drogas em meio aberto, foi simplesmente cancelado, sem que houvesse uma única e rasa crítica a seus fundamentos e eficácia, sem que fossem contestados seus resultados, de redução de quase dois terços daquela população vulnerável.

A internação involuntária, diz o art. 6º, é “aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro”. Dentre as pessoas que podem pedir a internação involuntária, certamente não está a Prefeitura, ente público, que será quando muito, ré nessa relação, eis que caberá a ela o encaminhamento do paciente. Quando a lei permite que outra pessoa encareça empenho da Administração para internação involuntária, refere-se a alguém, pessoa física, que tenha um liame mínimo com aquele que se pretende internar, exatamente para se evitar o que pretende esse prefeito completamente inebriado pela popularidade fácil: promover internações em massa que afrontam a lei: tratar pessoas humanas como animais em um curral.

Essa sua determinação seria o suficiente para configurar manifesta improbidade administrativa, que o fizesse bancar o macho alfa em outra freguesia. Mas, não é só.

O Poder Público não poderia proibir barracas na praça, porque não há nenhum impedimento para uso de barracas de lona, que, aliás, faz pouco tempo, dominaram, por meses, a fachada do Allianz Park, reduto palmeirense, no aguardo do show de Justin Bieber e não foram incomodadas, pelo contrário, ao que parece porque estivessem ocupadas por adolescentes de classe média, que ali brincavam de aguardar seu ídolo teen e vazio. Quem não os incomodou, acertou em cheio: ter barraca não é proibido, ficar em barraca a fim de se proteger do frio não é proibido; proibido é tomar as barracas de seus donos. É um confisco, algo que a Constituição proíbe, uma forma de expropriação que não se aceita. O prefeito teria determinado que as pessoas na Praça Princesa Isabel ficassem ao relento, ao frio, congelando, sob um pretexto raso de que estaria combatendo o tráfico de drogas. Infantil e ridículo.

A ação do prefeito é, porém, coerente com seu ideário. Não surpreende, ainda que nos estarreça.

Roberto Tardelli é Advogado Sócio da Banca Tardelli, Giacon e Conway.

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