Gilmar Mendes: o coveiro da democracia

Por Alexandre Ginzel, no Justificando

Um ministro do Tribunal Superior Eleitoral decidiu pela não cassação da chapa “Dilma-Temer”. É verdade que sua decisão não fora isolada, posto que apoiada por outros três comparsas, mas, decisiva. Não se tratou de uma simples decisão jurídica – é importante ressaltar a palavra “decisão” – sobre fatos da vida privada de um cidadão qualquer. Tratou-se de decidir pela morte da democracia na República. 

Antes de procedermos à autopsia, relembremos o significado desta última palavra: República. É possível atribuí-la dois (até três ou mais, mas prefiro a duplicidade) sentidos na história: o da Roma antiga e o da Revolução Francesa.

O primeiro como “coisa pública” (Res Publica), e o segundo como uma palavra em si ambígua – talvez estranhe o leitor, à primeira vista, a metalinguagem para explicar algo aparentemente óbvio, mas é justamente aí que está a origem do que quero dizer – que coloca em perspectiva justamente o que é “público”; o que é, enfim, ligado à noção de “povo”.

Diremos que em Roma distinguia-se a populos, classe formada pelos autênticos cidadãos romanos, inicialmente apenas patrícios (classe aristocrática), da plebs, composta pelos da classe inferior, que viriam a ter reconhecidos alguns direitos políticos mais tarde. Assim, a res publica era essencialmente ligada à aristocracia.

Sobre a perspectiva francesa, diremos que a burguesia, situada numa divisão estamental de classes, divididas entre nobreza, clero e povo, que àquele tempo pertencia e também se enxergava como povo (ou seja, junto com os proletários) havia conseguido maior poder político perante a Assembleia dos Estados Gerais do Reino da França, igualando-se em poder de voto às outras duas classes. Nobreza e Clero, inconformados, decidiram retirar-se da mesma. Então, Mirabeau, famoso orador burguês, aproveitou-se do momento para questionar a denominação adotada, propondo rebatizá-la de Assembleia do Povo Francês. Juristas questionaram-no: “Que é povo? Populus ou Plebs?”. Respondeu Mirabeau que havia escolhido a palavra por sua ambiguidade.

Nascia uma pretensa, quiçá falsa, tentativa de democratizar a noção de República. Falando-se em democracia, não gastaremos mais do que três palavras para aclarar seu significado: poder da maioria.

Dois séculos após este episódio, o Brasil elaborou, em 1988, a chamada Constituição da Republica, que fundada sobre ideais democráticos, logo em seu artigo 1º estabelece: “todo poder emana do povo”. Enfatizemos!

Como tudo que se comunica, não é sem propósito a menção à burguesia francesa. Também esta foi a responsável pelo desenvolvimento e disseminação de dois monstruosos fenômenos: o capitalismo e o Estado de direito. Pretendeu-se, com a cultura atrelada ao primeiro, o fortalecimento dos particulares e, com o segundo, a limitação do poder estatal.

Para a felicidade daqueles burgueses franceses e infelicidades dos seus semelhantes, a história provou que a finalidade de ambas as coisas não era democrática, mas tão aristocrática quanto seus precedentes. Ou, teria ainda alguém a coragem de afirmar que o poder está na mão de muitos? Ou melhor, da maioria?

Voltemos à pátria e ao direito: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio dos representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Não é só isto, também o mesmo artigo afirma ser a República constituída em um Estado Democrático de Direito, que tem o enunciado acima como um de seus fundamentos.

Gostaria de poupar o leitor desta colocação ofuscante, mas necessária: a coisa pública brasileira se funda no poder da maioria. Mas, basta, basta com essas coisas ofuscantes! O cadáver aguarda a autópsia para sepultamento e não é prudente deixá-lo apodrecer.

Foram três votos favoráveis à cassação e três votos contrários, cabendo o “voto de Minerva” ao ministro Gilmar Mendes. A quem interessar, Minerva era a deusa romana correspondente à deusa Atena, deusa da sabedoria. Ora, trata-se de um voto de sabedoria! Lembro também que a chamada “estátua da justiça”, localizada em frente ao Supremo Tribunal Federal (do qual Gilmar Mendes foi até presidente), é representada grega Diké – de olhos vendados e espada nas mãos. O Direito tem destas peculiaridades com os olhos: é possível ver coisas diferentes das que constam nos autos do processo e na lei (ou até mesmo, não vê-las…).

Por oportuno, este procedimento que chamamos até agora de visão, é chamado pelos juristas de hermenêutica. Esta consiste em ser uma tarefa de interpretação dos textos jurídicos, com o intuito de se lhe atribuir determinado sentido. Assim, quando assistimos aos ministros divergirem quanto a aplicação de determinada lei, ou a imputação de determinada infração ao fato, isto se dá graças à hermenêutica.

Não é, contudo, indesejável que assim seja este procedimento, pois é da natureza das leis possuírem este caráter estático, bem como é da natureza da realidade ser propriamente dinâmica. Logo, quando uma norma é editada em determinada época (no caso das normas constitucionais, em 1988), seu sentido original é aquele dado naquela época, então, se se pretende ter um sistema condizente com a realidade atual, é preciso adequá-la a esta. Daí a importância da hermenêutica: é através desta que se torna possível adequar o sentido original da norma para um sentido atual.

Não se pode – e a negação aqui deve ser feita como a maior das ênfases – permitir, porém, que este sentido ultrapasse as finalidades e os fundamentos que foram estabelecidos pela norma. Portanto, as normas devem ser entendidas como um vetor de significado, com seus fins já orientados por ela mesma, devendo o intérprete cuidar de balizá-los para atingir estes fins, que se encontram sempre e invariavelmente na realidade.

Queriam todos os ministros, os quais aqui nomeio: Herman Benjamin, Rosa Weber, Luiz Fux, Napoleão Maia, Admar Gonzaga, Tarcisio Vieira e o já citado, alcançar estes fins quando proferiram seus entendimentos? Vale uma breve narrativa de seus votos.

O primeiro, que ocupara a função de relator do processo, entendeu ter havido abusos cometidos durante o processo eleitoral que deveriam levar à cassação da chapa, entendimento acompanhado por Rosa Weber e Luiz Fux. Estes, ao afirmarem, respectivamente, sobre a possibilidade de inclusão de novos fatos à ação e a necessidade de se atentar à realidade fática, demonstraram, com clareza, quererem alcançar os fins citados.

De outro modo, os três seguintes votaram pela não cassação da chapa alegando argumentos dos mais diversos: Napoleão, ironicamente, pela defesa da garantia do mandato (defesa esta que não se observou no impeachment); Admar, negando ao Tribunal Eleitoral a responsabilidade de apurar os fatos, creditando-os a outra alçada e Tarcisio Vieira, negando o valor da prova testemunhal.

Não me esquivarei de dizer que o trio também declarou estar perseguindo os mesmos fins que os demais citados, mas não direi mais palavra sobre eles. Quanto a Gilmar? Seria injusto de nossa parte não dedicar um parágrafo inteiro ao mensageiro de Minerva.

Gilmar Mendes, famoso por sua alta qualificação acadêmica e ocupação do mais alto cargo do Poder Judiciário brasileiro, decidiu pela não cassação. Com gestos e tom de voz afetados, bradava não ser cabível a cassação por diversos motivos: prazos judiciais, estabilidade do mandato e até mesmo criticas ao modo probatório dos fatos da ação julgada. Um outro motivo era, por ele, repetido e este mesmo é a causa mortis que buscamos até agora deflagrar: a soberania popular.

Tratamos, até aqui, de fazermos uma incisão neste símbolo “soberania popular”. Extraímos o seu conceito e os seus contextos prévios. Cabe ainda mais um corte, através da seguinte afirmativa: sua soberania popular é romana e francesa! Sua soberania popular é a soberania do Patrício, do burguês em ascensão! Sua soberania é popular, mas não democrática.

Talvez, melhor se diga, agora, há um novo sentido que se deve atribuir à palavra “povo”. Um sentido que se destina aos poderosos, pois os outros já não mais existem para a ordem jurídica, foram enterrados por Gilmar.

Alegrem-se, representantes do povo! O povo está efetivamente exercendo sua soberania por seus representantes. Vocês, do povo, banqueiros, grandes empresários e demais símbolos do capitalismo global, sorriam com a garantia de seus direitos… De sua soberania.

Gilmar Mendes, mais especial e nobre que o próprio foro eleitoral fora sua própria empreitada! Devolveu-nos a noção de populus e prestou garantia aos ideais burgueses da revolução francesa. Quem será agora capaz de dizer que a tarefa de coveiro não é nobre?

Engana-se aquele que quiser atribuir a este texto qualquer cunho político ou jurídico, pois, como dissemos, prestamo-nos apenas a realizar a autopsia.

Podemos agora concluir nosso laudo: Em 09/06/2017, a democracia, já em estado grave, deu entrada no Tribunal Superior Eleitoral. Relata-se, previamente, ter sido vítima de sucessivos golpes, que, por seu turno, fizeram-na perder a consciência. Na mesma data, ao tomar contato com a hermenêutica de Gilmar Mendes, não resistiu aos danos causados e veio a falecer.

Recomenda-se conservar o cadáver nas páginas da história.

Alexandre Ginzel é bacharel em Direito pela PUC-SP. Bolsista de iniciação científica pelo CNPq.

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