A forte transformação das heterogêneas periferias brasileiras. Entrevista especial com Cibele Rizek

Patricia Fachin – IHU On-Line

As periferias brasileiras, além de serem heterogêneas, estão em forte transformação. “Há um conjunto de fenômenos mais ou menos recentes que mudaram a face desses territórios – a presença do crime (ou do mundo do crime) e o crescimento muito importante das denominações evangélicas. Há também uma explosão dos coletivos de cultura que se transformaram em alternativa de obtenção de alguma renda, apesar dos financiamentos estarem cada vez menores. Outra novidade é um crescimento importante de parcelas de jovens adultos que graças aos Programas da era lulista fizeram cursos universitários em escolas particulares”, resume Cibele Rizek na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.

Segundo ela, a redução da pobreza e o incentivo ao consumo durante o governo lulista não só transformaram os padrões de vida das periferias, mas transformaram “as periferias em nichos de negócios e em territórios produtivos via ‘empreendedorismos’ de todos os tipos: social, cultural, pequenas empresas com altas taxas de informalidade etc.”

Cibele também comenta o desenvolvimento das atividades culturais nesse período e a centralidade do tráfico nas periferias, o qual constitui um “mosaico de códigos que acabou conformando um modo de existência e de sociabilidade”. E acrescenta: “A gestão dos ilegalismos, das fronteiras entre legalidades e ilegalidades – ela sim é central para o governo da pobreza”.

Cibele Rizek é graduada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestra em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutora em Sociologia pela USP. Atualmente é professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania, também da USP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual sua compreensão das periferias paulistas?

Cibele Rizek – É difícil fazer um único diagnóstico das periferias – elas são heterogêneas e estão em forte transformação. Assim há um conjunto de fenômenos mais ou menos recentes que mudaram a face desses territórios – a presença do crime (ou do mundo do crime) e o crescimento muito importante das denominações evangélicas. Há também uma explosão dos coletivos de cultura que se transformaram em alternativa de obtenção de alguma renda, apesar dos financiamentos estarem cada vez menores.

Outra novidade é um crescimento importante de parcelas de jovens adultos que graças aos Programas da era lulista fizeram cursos universitários em escolas particulares. Essas alterações reconfiguraram as periferias, ainda que por exemplo, a periferia sul da metrópole paulistana seja bem diferente da periferia leste e ainda que se possa perceber diferenças entre as periferias consolidadas – como Itaquera e as zonas mais fronteiriças, ainda em forte ebulição.

IHU On-Line – Quais as principais consequências dos oito anos de lulismo na vida das periferias?

Cibele Rizek – Durante o período lulista houve uma tentativa importante de redução da pobreza e de integração pelo consumo. Crédito, aumento dos índices de consumo e programas sociais transformaram fortemente padrões de vida e transformaram as periferias em nichos de negócios e em territórios produtivos via “empreendedorismos” de todos os tipos: social, cultural, pequenas empresas com altas taxas de informalidade etc.

IHU On-Line – Tem havido um crescimento de propostas de intervenção cultural nas periferias paulistas nos últimos anos, seja por parte do poder público ou das ONGs? Em que sentido? Como essas propostas são elaboradas e aplicadas junto aos moradores da periferia?

Cibele Rizek – ONGs, OSs [1] e programas públicos durante o período dos governos Lula e Dilma e durante as prefeituras petistas incentivaram fortemente as atividades culturais especialmente, mas não exclusivamente, entre os jovens. Há grupos de teatro, slums de poesia, saraus, grupos de RAP e outras atividades. Alguns ativistas acabaram por engrossar esses coletivos ou fundar novos. As dimensões identitárias – movimento negro, as questões de gênero, as dimensões LGBT acabaram também por se conformar em novas pautas e agendas de lutas urbanas.

Talvez se possa pensar a primavera secundarista que sacudiu o país como um dos resultados dessa ebulição. Se por um lado o estímulo ao protagonismo juvenil foi uma iniciativa de agências multilaterais e de seus financiamentos sem compromisso com as dimensões emancipatórias, por outro lado, como uma espécie de paradoxo das consequências (Weber), esse protagonismo de fato veio à tona contra a Reforma do Ensino e o desmonte ainda maior dos conteúdos nas escolas públicas (ocupadas), mas também nas escolas privadas.

IHU On-Line – Por que, na sua avaliação, nas comunidades em que há atividades culturais como forma de inclusão social, há uma justaposição entre mercados ilegais e formas de violência? Por que isso acontece?

Cibele Rizek – A justaposição entre violência, ilegalismos e cultura permeia toda a sociedade brasileira e não está presente apenas nas comunidades que têm atividades culturais. A questão é que as práticas culturais não são suficientes para interromper nem a “violência”, nem a gestão cotidiana dos ilegalismos.

IHU On-Line – Quais diria que foram as consequências dessas intervenções culturais e sociais como tentativas de inclusão social?

Cibele Rizek – Considero que a luta pelo financiamento público da cultura é fundamental para preservar alguma autonomia da produção cultural e artística. Os financiamentos e arbitragem privados têm uma função de acomodar e pacificar, de tornar governáveis corpos e corações. ONGs e OSs não têm necessariamente um compromisso com os processos de emancipação, discussão, debate, ações públicas. Elas frequentemente são de natureza empresarial ou privada. Assim é necessário distinguir o que aparece como face indistinta, como mundo do indistinto ou da indistinção.

O tráfico, sua centralidade e sua presença de certo modo se constituem em um componente de um mosaico de códigos que acabou conformando um modo de existência e de sociabilidade. A gestão dos ilegalismos, das fronteiras entre legalidades e ilegalidades – ela sim é central para o governo da pobreza.

Nota:

[1] Organização Social (O.S.): Tipo de associação privada, com personalidade jurídica, sem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de relevante interesse público. A expressão “organização social” designa um título de qualificação que se outorga a uma entidade privada, para que ela esteja apta a receber determinados benefícios do poder público, tais como dotações orçamentárias, isenções fiscais ou mesmo subvenção direta, para a realização de seus fins.

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