Como a desigualdade social prejudica a sua vida. E quem lucra com ela

Sob falsos apelos à liberdade e um louvor ao egoísmo, busca-se legitimar a desigualdade social. Mas ela, além de gerar mal-estar, corrói as liberdades.

Devemos repudiar a alegação de que as instituições sejam sempre falhas porque a distribuição dos talentos naturais e contingências da circunstância social são injustas, e essa injustiça deve inevitavelmente ser transferida para as providências humanas. Eventualmente essa reflexão é usada como uma desculpa para que se ignore a injustiça, como se a recusa em aceitar a injustiça fosse o mesmo que ser incapaz de aceitar a morte.
A distribuição natural não é justa nem injusta; tampouco é injusto que as pessoas nasçam em uma determinada posição na sociedade. Esses fatos são simplesmente naturais. O que é justo ou injusto é a maneira como as instituições lidam com estes fatos.
(John Rawls, em “Uma Teoria da Justiça”)

Uma magnífica e comovente animação brasileira chamada “O Menino e o Mundo” apresenta em um de seus momentos um cenário distópico extremamente pertinente para tomarmos cuidado com certas armadilhas retóricas amplamente armadas contra nós.

Se trata da odisseia de uma criança pobre peregrinando pelo país em busca de seu pai, que havia migrado para trabalhar, passando por vários ciclos no caminho de sua busca. Ela passa por colheitas em lavouras até chegar em um morro de favela. Despencando de um monturo em um dos aglomerado da favela, o menino, que estava em um ciclo pela busca do seu pai, acaba caindo em um contêiner de mercadorias e embarca em uma viagem de navio de carga. Mais à frente é transportada e içada com a carga até uma cidade aérea onde viviam os mega-ricos, no topo de uma pirâmide social de um mundo para a qual a base cumpria com encargos funcionais.

A cena soma-se a uma família de vários quadros visionários sobre esta “saída” para uma sociedade que chega a um clímax extremo de desigualdade, chegando a falar de colônias em outros planetas para lidar com a situação “inevitável”.

O topo da pirâmide é avesso ao convívio social quando a desigualdade é impossível de ser ignorada, assim como não quer arcar com o “preço do progresso”, cobrado com impactos ambientais e sociais sobre os que “ficaram para trás”. Alguns assinalam medidas para freá-la, diagnósticos são feitos, mas o fato é que ninguém ainda sabe o que fazer direito. Assim, acreditam que não há alternativa que não mexa em seu status quo e, temendo os efeitos da instabilidade, buscam se blindar, se cercar, escapar, fugir da realidade…

Bairros, cidades, fortalezas, países, com provimento autóctone de serviços e milícias particulares de ponta. Mas claro que é insustentável apenas contar com a força. Precisa-se também da legitimação. E as iniciativas neste sentido avolumam-se. Outra arena se dá na construção de mitos e falácias em torno de “naturalidade” deste estado de coisas, apelando à eficiência, à meritocracia ou, de forma mais cínica, à “liberdade”.

Tal situação demanda milícias ideológicas e retóricas que a legitimam e que será consumida por quem se beneficia dela, num ciclo em que a ideologia do “melhor dos mundos possíveis” alimenta uma minoria privilegiada e vice-versa. Como o arquétipo dos mordomos e governantas que projetam sobre si a imagem de serem os senhores e proprietários, repousando nisto seu senso de valor pessoal. Pessoas de classes médias que sentem-se ultrajadas de não serem aristocratas vitorianos, extravasando uma necessidade da desigualdade para se sentirem recompensados na vida. Estes se encarregam de dizer que a realidade moldada pelas fortalezas da ponta da pirâmide é justa porque no ambiente da ponta se consegue ter mais liberdade e, se o restante também quisesse ou se o “Estado” não atrapalhasse, também chegaria lá. Mas, daí então não seria pirâmide mais? Cabe todo mundo?

Está forjado o discurso de que as cidades e ilhas do 1% no topo são terras de liberdade, por isso os que ali moram merecem ser venerados. Vejamos como este mal se manifesta no Brasil.

Sociedade em erosão: as consequências da desigualdade social

Um campo de estudos na psicologia [1] serve para explicar muitos fenômenos na sociedade brasileira, analisada à luz de sua formação histórica. É o campo que estuda a “agressividade deslocada”: a necessidade de redirecionar uma agressão, física ou moral, ou sentimento de ultraje e vergonha a alguém em posição inferior. É uma espiral segregadora, que estimula o esnobismo e gera angústia. A maior desigualdade tende a acirrar os preconceitos sociais. Em sociedades mais desiguais, as pessoas se orientam por lógicas de domínio e pela necessidade de obter status [2].

Isso ajuda a entender o porquê de, em um dos países mais desiguais do mundo, encontrarmos muitas pessoas se sentindo feridas só de pensar em menos desigualdade, como se a realização da vida delas dependesse da garantia de que poderão sempre olhar de cima as demais pessoas. Por isso a ideia de algo mais igualitário fere a auto-estima delas, sentem-se como se fossem diminuídas. Por isso diante de tensões diversas muitos se voltam colocando a culpa nos mais pobres, mas não expõem isso diretamente, afinal, pode pegar mal. Fazem isso de forma mais sutil defendendo a sonegação, caricaturalizando a tributação progressiva, elegendo como heróis os devedores milionários anistiados, tudo na tentativa de inviabilizar as políticas sociais que dependem de recursos públicos.

Tal fenômeno foi identificado em estudos especializados, apontando o forte grau de relação entre a desigualdade social e a ansiedade patológica relacionada à autoafirmação e status [3]; também reportam a forte ligação entre a desigualdade e mecanismos que propulsionam desordens mentais (sobretudo depressão) e mal-estar psicológico [4].

Compreendemos assim uma forte razão para a grande burocracia em tudo no Brasil: a fragilidade dos laços e vínculos sociais devido a uma sociedade em eterno conflito consigo mesma, estratificada e assim impossibilitada de desenvolver uma identidade. A falta de confiança devido ao histórico de “trapaças” em acordos e contratos fomenta a desconfiança e leva a que estes contenham muitas cláusulas a respeito, implicando também em restrições de meios de pagamento. A desigualdade afeta e mina a confiança a nível social e dificulta as condições para o apoio mútuo na recuperação de crises coletivas [5].

Segregações sociais também formam obstáculos injustos para a ascensão econômica, prejudicam o desempenho educacional das crianças [6] e são a principal causa da nossa criminalidade: muitos crimes absurdos se originam da necessidade de afirmação de orgulho e busca de status entre seus pares no ambiente de segregação de onde provêm os agentes criminosos [7], misturado com a explosiva realidade daqueles que têm pouco ou nada a perder [8]. A desigualdade afeta o comportamento social tornando o ambiente mais propício para a violência [9].

Pergunta-se: as alternativas seriam ampliar as oportunidades para todas as camadas sociais e regiões, para que se sintam incluídos socialmente, logo tendo muito a perder na criminalidade, ou como muitos querem, uma “limpeza” social (sem fim?)?

Até quando o mecanismo retórico de mandar “vá pra Cuba” vai servir pra abrigar a mentalidade da Casa Grande? Esse coringa já não queimou o baralho?

Mas… não haveria países muito pobres com baixa desigualdade? Seria uma situação melhor do que em países ricos? Esta é uma forma espúria de encaixar as coisas. Em primeiro plano, as economias nacionais e regionais dos países são elementos funcionais do Sistema Mundial. Logo, elementos em desiguais posições no mesmo, não elementos independentes. Depois, a forma estatisticamente adequada de fazer a análise é estratificar e agrupar em blocos os países por níveis. Compara-se os países no centro do Sistema de acordo com seus níveis de desigualdade; compara-se os países na semiperiferia e os países periféricos entre si.

Cães, Lobos e as Relações Sociais

Um artigo chamado “Oxytocin gaze positiveloop and the coevolution of human dog bonds” (a versão em vídeo você pode conferir aqui) levanta questões filosóficas muito pertinentes. Nele examina-se as bases bioquímicas envolvidas nas interações de expressões visuais entre cães e pessoas. Analisa as questões evolutivas implicadas no tocante ao desenvolvimento de algumas das aptidões comportamentais dos cães para a convivência com os humanos.

Desde os primeiros ancestrais caninos domesticados pelo homem, há mais de dez mil anos, se processou um desenvolvimento evolutivo com mecanismos hormonais, operando especialmente a oxitocina, que age no processamento da empatia.

Este hormônio atua também vínculos afetivos humanos em graus variados, desde mães e bebês, até relações de confiança e olhares de cumplicidade. As variações no nível da oxitocina constatadas nas interações visuais entre cães e seus donos na pesquisa foram semelhantes às constatadas em trocas de olhares entre humanos. Mas não foi constatada em experimentos com lobos. Estes não apresentam o mecanismo de variação hormonal que ocorre com os cães domésticos e que permite sua domesticação. Pensamos que os cães mais facilmente domesticáveis podem ser classificados como “mais inteligentes” numa hierarquia que é eminentemente convencional. Não necessariamente é assim.

Não se pode afirmar que houve uma elevação do nível cognitivo dos cães. Houve uma adaptação da sua natureza para um outro ambiente com elementos, situações, sujeitos, necessidades diferenciadas. As mesmas propriedades não seriam muito importantes nem confeririam competência para os contextos com que os lobos se deparam; também as destes, respectivamente, não lhes habilitariam muito para o contexto de vida dos cães.

Temos recentemente mais revelações importantíssimas sobre a vida das alcateias que subvertem estereótipos do senso comum. Dentre elas, o “macho-alfa” não é um mero valentão egoísta, dominador e narcisista. Antes, é cuidadoso, especialmente com os pequenos, empático, atencioso e abnegado pelo bem comum do bando. Cabe ao círculo das fêmeas também decisões estratégicas vitais, sobre a hora de caçar, o momento de descansar, o caminho a seguir.

Há a inteligência e há as inteligências. Inteligências diferenciadas para “mundos” diferenciados. Formas diferentes de processamentos da cognição para um conjunto de condições diferentes em termos mente-corpo e corpo-relações sociais. Inteligências que capacitam para diferentes habilidades, e essas habilidades são mais ou menos requeridas e favorecidas – ou dispensadas e desfavorecidas – de acordo com circunstâncias dissemelhantes.

Na história humana, variaram significativamente os atributos e características que seriam mais ou menos valorizados, que seriam bem ou mal sucedidos, recompensados ou mesmo punidos. Se as condições socioambientais do mundo sofressem alterações extremas, graus de inteligências e habilidades funcionalmente aptas variariam.

Em outros mundos, poderíamos conceber que outras inteligências poderiam existir, não apenas outras “formas de vida inteligente”. Por isso é complicado padronizar nossas racionalidades e formas de inteligência, contingenciada em dado grau para o nosso momento histórico, ao pensar e balizar o que seria a vida inteligente em outro planeta. Em graus menores isso também vale para sistemas históricos.

Também a forma que enxergamos algo inusitado, após um estranhamento, passa por um processo de “ajustamento” para moldes e padrões prévios, o mais aproximado que conseguirmos, que já constavam desenvolvidos em nossa experiência. Observe-se que tendemos a “antropomorfizar” as expressões dos cães e atribuir-lhes qualificações que aprendemos a atribuir aos humanos. Seus olhares e expressões. Os lobos não as desenvolveram, não porque possuem “menos consciência” ou teriam cognição ou sensibilidade inferiores, além de serem bem menos passivos para serem condicionados.

Ocorre o mesmo quando pensamos em termos de “inteligência artificial”. Não seria pertinente imaginar que uma “inteligência artificial” que se desenvolvesse pudesse ter outros parâmetros e quadros de referência? De certa forma era essa a provocação que o cientista Alan Turing levantava.

Mais um fenômeno que deve ser considerado na “naturalização” que fazemos a respeito das propriedades do momento e contexto em que vivemos. Olhamos ao redor e pensamos que o que estamos vendo simplesmente “é”, como se fosse quase impossível concebermos que tudo poderia ser diferente dez anos atrás ou dez anos à frente. E que a “natureza humana” fosse própria para existir e florescer apenas em uma dada condição. Fica difícil enxergar outras configurações alternativas. Se existem ideologias, podemos chamar isso de a Ideologia.

Mas como o neurocientista Antônio Damásio lembra em depoimento, este transcurso mente-corpo-sociedade-história ainda está em fluxo, inacabado.

Mas a razão (se existe) é ou um objeto (por exemplo, um objeto de estudo) ou um sujeito agente. A natureza do objeto “razão” torna-se clara depois que o sujeito agente “razão” agiu. Uma teoria da razão, se tomada seriamente, restringe a possibilidade de ações da razão – torna-a conforme às imagens especulares de um de seus graus. E se a razão não se conforma? Então, diz o teórico, a teoria deve ser ajustada. Tudo parece estar no lugar – todas as teorias são constantemente adequadas aos fatos novos. Nesse caso, a adequação ocorre a cada volta da história, o que significa que temos uma teoria só de palavras; o que temos efetivamente é uma evolução, uma história.
(…) Diversas formas de vida e de conhecimento são possíveis porque a realidade permite e encoraja, e não porque “verdade” e “realidade” sejam noções relativas. (Paul Feyerabend, em “Diálogos sobre o Conhecimento”)

A desigualdade não é natural

Experiências acompanharam chimpanzés em cativeiro que aprenderam a administrar cocaína sobre si mesmos, fazendo registros à medida em que foram desenvolvendo maior hierarquia social e no domínio dos recursos entre si. Os dominantes tiveram aumento na atividade de dopamina no cérebro, e os dominados passaram a usar muito mais cocaína para compensarem o impacto do aumento da desigualdade e queda na hierarquia [10].

Os chimpanzés tendem a resolver suas questões de organização social por meio de papéis, competições sexuais, alocação de recursos e estratificação hierárquica. Os seus (e nossos) “primos”, os bonobos, usam brincadeiras e sexo, vivendo em sociedades mais cooperativas, com um papel mais proeminente das fêmeas e maior cuidado com os mais frágeis (velhos, doentes, machucados, etc.) [11].

Nas sociedades humanas, ao longo da história, o “padrão-chimpanzé” preponderou, embora isso não se deva nem a uma suposta “natureza humana egoísta” (a seção do DNA humano que rege a regulação social, sexual e parental apresenta a configuração similar à do Bonobo [12]) nem devido às necessidades primeiras de nossas comunidades.

Boa parte do período humano – anatomicamente moderno – no planeta foi vivido em sociedades igualitárias, partilhando o alimento, operando trocas com reciprocidade, se presenteando e tendo “estratégias de contra-dominação” e “partilha vigilante” em que monitoravam-se comportamentos que ameaçassem o status igualitário ou buscassem impor um desigualitário [13]. Tampouco se reporta o desigualitarismo à nossa estrutura cognitiva, porque nossos neurônios-espelho aprendem por imitação e nos equipam para a empatia e identificação; temos também as redes neurais de recompensa que servem para incentivar a reciprocidade e mutualidade, freando a tentação de agir de forma sacana e implacavelmente egoísta [14].

Se deve às espirais de violência, hierarquização e desigualitarismo que ganham corpo e se alimentam transmitindo essas pulsões para os descendentes desde sua infância [15]. Isto explica também como nossa sociedade mantém isto e permanece tão obstinadamente recalcitrante a mudar, com roupantes explosivos de reação e esnobismos repulsivos.

Não se freia espirais nem se sai dela seguindo o percurso. Espirais assim têm de ser desfeitas para novas rotas serem possíveis.

Apartamento do “Survival Condo Project”, condomínio subterrâneo no Kansas, nos EUA, para bilionários que querem se prevenir contra catástrofes ambientais ou sociais. Cada um custa em torno de US$ 3-4,5 milhões.

O atual Sistema Mundial se alimenta da Desigualdade

Muitos vão se lembrar que após a notícia escandalosa, de não muito tempo, da especulação extrema em cima do medicamento Daraprim – o aumento seu valor em torno de 5400% – por parte de Martin Shkreli, um plutocrata especulador de mercado de risco que havia adquirido a patente desse remédio utilizado no tratamento do vírus HIV, houve repulsa generalizada. Na época, alguns cinicamente tentaram dissociar tal fenômeno com o processo de funcionamento próprio da economia capitalista. Estes grupos, em suas táticas de buscar cooptar pessoas comuns, usando o momento de descontentamento com o país, cuidam sempre para que sua panaceia seja intangível a qualquer falseabilidade para poderem continuar panfletando sua ideologia.

Mas a retórica deles é uma falácia desprovida de qualquer consistência. O sistema de propriedade intelectual atende demandas intrínsecas do mercado moderno [16], como qualquer curso de economia, manual de economia e modelos de mercado apontam.

Os argumentos que empregavam são calcados em petições de princípio. Afirmam que não é um instituto de propriedade “natural”, mas “artificial” e arbitrário imposto pela promiscuidade do Estado com agentes privados. Mas, ora só, as instituições da propriedade privada modernas são construtos artificiais, reguladas e mantidas pelo Estado. E os direitos de propriedade intelectual funcionam, como vários dos principais apologistas [17] do capitalismo contemporâneo argumentam – levado em consideração seu amplo mundo intelectual [18] – para maximizar a transformação em mercadoria em todas as relações sociais. Igualmente quanto ao cumprimento de contratos assegurado pelo Estado, do contrário a ordem do faroeste.

A Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial foi uma articulação totalmente voltada para lidar com a dinâmica e funcionalidade capitalista, não de “justiça social”. Assim, a propriedade intelectual – cuja área de abrangência é de desde a propriedade industrial, direitos autorais a programas computacionais – é uma construção intelectual que gera um bem excludívelrival e congestionável para que seja objeto de busca de maximização de valor de troca no mercado. É capitalista por excelência, transformando algo, cuja base é um bem público, de acesso aberto ou não, em um bem privado, gerando contratos e mitigando a ação de oportunistas que poderiam incrementar os custos de transação.

Como acentua um dos expoentes da escola da “Nova Economia Institucional”, Ronald Coase, que se dedica a estudar os aparatos institucionais que potencializam um funcionamento adequado dos mercados, aqueles que pintam um quadro idealizado de um mundo mercadológico onírico desconectados de realismo definem a economia como “indivíduos solitários que fazem intercâmbio de nozes e frutinhas nas margens da floresta”.

Não existe um acordo de livre comércio no mundo, seja multilateral, regional ou bilateral, que as partes não se veem obrigadas a respeitar o sistema de propriedade intelectual, no máximo se discutem flexibilizações pontuais ou determinados limites.

A lógica da acumulação autorreplicante do capital e a saúde humana

Diversos instrumentos financeiros contemporâneos maximizam o curto prazo na expectativa e na exigência de geração de retornos e tornam a economia mais instável. Dada a liquidez dos ativos, a reação à mudança é extremamente imediata por parte dos detentores, havendo uma enorme defasagem do “setor real” na velocidade de acompanhamento, sobretudo com projetos de maturação no longo prazo e maior ponto de equilíbrio econômico.

O absurdo caso do medicamento Daraprim deixa claro como essa lógica do lucro pode ser fatal na comercialização de medicamentos, sendo os pobres, que dependem de saúde pública, os mais prejudicados. Os ativos podem ser deslocados e reorganizados em segundos. Fora também a ação de especuladores que colocam e retiram ativos de acordo com oscilações do mercado de risco como derivativos, o qual hoje gira em  torno de setecentos trilhões de dólares.

Então é imprescindível para o bem comum a ação de instituições públicas, ações embutidas de racionalidades não mercadológicas e não presas à lógica da maximização do valor para os acionistas, podendo operar com taxas internas de retorno menores ou sustentando oscilações para maturações a longo prazo, sendo menos inconstantes e mais “pacientes”. Fomenta-se objetivos que não seriam priorizados de outra forma, com menos incentivos para a maximização de lucro no curto prazo e evitando a excessiva e intensa mobilização de recursos mediante economias de custo.

Desta forma vemos como no mundo corporativo da indústria da doença, a vida humana não passa de um mero detalhe, sobretudo a dos mais pobres. Como Bill Gates já dizia, “capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que em doenças como malária, que afetam majoritariamente as pessoas mais pobres”.

Logo, a luta contra essa lógica mercadológica, especialmente na questão da propriedade intelectual, implica em adotar medidas compensatórias que garantissem o cumprimento dos Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Cíveis, além da Justiça Ambiental.

A  Desigualdade Social como uma ameaça à Vida

Em um texto em seu blog na revista Veja, o jornalista e apologeta de direita Leandro Narloch tenta se contrapor a uma encíclica do Papa Francisco (“Sobre o Cuidado da Casa Comum”), na qual ele faz duras e consistentes críticas ao capitalismo, devido à sua ação destrutiva no meio ambiente. Na tentativa de rebater a crítica do Papa, o conservador Narloch invocou uma hipótese da economia representada como Curva de Kuznets, para afirmar que a desigualdade no sistema econômico vigente produziria uma elite consciente, a qual, a partir de determinado crescimento econômico, desenvolveria sua sensibilidade e implementaria ações reparatórias e conservacionistas. Desta forma, o sistema atual conteria em si a lógica da sustentabilidade.

No entanto, Narloch faz uma grande confusão a respeito do que seria a Curva de Kuznets, e talvez proposital, contando que o seu público habitual não se interessaria em conferir os conceitos que ele utiliza. Na verdade, tal curva trabalha com a hipótese de que o processo de crescimento implica necessariamente em uma grande agressão ao meio ambiente, mas que se estabiliza e pode refluir em um patamar que propicia que a tecnologia e a elasticidade-renda agreguem mais valor aos bens naturais e às qualidades de serviços ambientais. É um postulado de reivindicação empírica e ainda submetido ao debate de alcance estatístico. Não é um “fenômeno” cientificamente comprovado que funciona como uma lei, ou seja, Narloch se valeu de uma hipótese e ainda distorcida para cometer um grande blefe.

Há várias questões não consideradas na também conhecida como Curva Ambiental de Kuznets. Uma que, considerando que o trabalho empírico concernente à Curva de Kuznets incide sobre medidas de fluxos de processos ecossistêmicos e não de estoques de bens naturais, pode ocorrer que a Curva represente que a riqueza ambiental foi menos explorada, mas não necessariamente que a qualidade tenha melhorado, como é bem retratado na literatura especializada [19].

Outrossim, não ocorre este “ajustamento” automático inerente à esfera do mercado. O acúmulo das pesquisas especializadas apontam para a necessidade de políticas públicas reguladoras mesmo em situações de presença mensurada da Curva [20].

Mais crítico ainda é o fato de que o atual sistema trabalha em cima de populações e grupos humanos usados como “bois de piranha”, que pagam o preço dos projetos de desenvolvimento econômico no mundo, como visto no relatório da Christian Aid, o qual, em 2007 apontava que 65% dos refugiados foram vítimas de projetos deste gênero, que geram as cifras monetárias retoricamente empregadas depois pelos defensores da desigualdade social. Em 2009, o Relatório do Impacto Humano problematizava que as mudanças climáticas impunham um custo anual de US$ 125 bilhões.

A desigualdade entre países também fora tratada no mesmo relatório: “os países em desenvolvimento carregam nove décimos da carga da mudança climática: 98% dos seriamente afetados e 99% de todas as mortes relacionadas a desastres meteorológicos, com 90% do total de perdas econômicas”. Quadro trágico em sintonia com o quadro de injustiça ambiental que o quadro da ONU em 2007 desvelava: “mais de 90% de pessoas expostas a estes desastres vive em países em vias de desenvolvimento e mais da metade das mortes provocadas por desastres naturais acontece em países de baixo índice de desenvolvimento humano”.

Isto implica em distribuição desproporcional de externalidades negativas entre grupos humanos com diferentes dotações ou vulnerabilidades econômicas. Estes fatores, por sua vez, acarretam diferentes pesos de custos marginais externos nas atividades de quem sofre esse impacto e sua capacidade de suportar as consequências dele [21].

Cada pessoa, em condições tão díspares, tem capacidade única de arcar com os custos implicados sobre os bens públicos, a despeito de quanto cada um valoriza ou depende do acesso ao bem. O fator da “macrodistribuição” é um fenômeno que tem origem se “o mercado é extremamente eficiente a produzir bens de mercado, mas muito pobre em produzir ou preservar bens públicos, então, com o tempo os bens públicos inevitavelmente tornar-se-ão mais raros em relação aos bens privados” [22].

Os “valores” morais implacavelmente egoístas que norteiam a defesa da injustiça social, com base em um falso e cínico apelo à “liberdade econômica”, requerem isolar países subdesenvolvidos e dizer que sua situação ecológica crítica é porque eles são pobres por não terem competência para se desenvolver, e, assim, os países que se enriqueceram com suas matérias-primas ficam isentos do passivo ambiental que causaram sobre os outros.

Considerações Finais

Cada um de nós é mais do que um indivíduo. Cada um de nós é uma pessoa, com nossas dimensões de individualidade e sociabilidade, incompletos sem uma e outra.

Liberdade é liberdade para algo, por isso deve-se pensar em termo de “liberdades”. Relaciona-se com a capacidade da pessoa querer fazer ou não fazer algo e, efetivamente, poder fazer ou não fazer. Na contingência de pessoas coexistindo num meio social, liberdades devem ser encaradas como possibilidades concorrentes, em contexto de conexões de poder, de relacionamentos, de mediações institucionais, vínculos, reprodução social.

Igualdade e liberdade, na esfera social, da mesma forma que limitam-se reciprocamente, são pré-condições uma para a outra. Se limitam e se requerem.

Vimos aqui várias exemplos da investida daqueles que apelam a uma suposta ética humana guiada pelo individualismo egoísta inexorável. Desta forma eles justificam uma lógica cega de mercado em detrimento dos valores sociais e pautam as faculdades humanas pela necessidade da reprodução da desigualdade social, de forma que as pessoas se sintam recompensadas pelos seus esforços.

Contra essa ideologia doentia, apenas a solidariedade e a recuperação do sentido de uma vida em sociedade poderia sobrepô-la, podendo assim a vida ser preservada e a esperança retomada.

Onde a justiça é negada, onde a pobreza é imposta, onde a ignorância prevalece e onde qualquer classe sente que a sociedade é uma conspiração organizada para oprimi-la, roubá-la e degradá-la, nem pessoas nem propriedade estarão em segurança. (Frederick Douglas, Discurso no 24º aniversário de emancipação, Washington D.C., 1886)

Notas e Referências

[1] Displaced aggression is alive and well: a meta-analytic review

[2] Social dominance theory and the dynamics of intergroup relations: Taking stock and looking forward

[3] -TEWNGE, T.W. The age of anxiety? Birth Cohort Change in anxiety and neuroticism, 1952-1993. Journal of Personality and Social Psychology 79(06). 2007, p. 1007-1021.
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[4] WHO International Consortium of Psychiatric Epidemiology, Crossnational Comparisons and the prevalence of correlaties of mental disorders.Bulletion of the World Health Organization 78(04). 2000, p. 413-426.
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[5] All for All: Equality, Corruption, and Social Trust

[6] – MASSEY, D. S. The age of extremes: concentrated affluence and poverty in the tewnty-first century. Demography, 33. 1996, p. 395-412.
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– McLOYD, V.C. The impact of economic hardship on black families and children: psychological distress, parenting and socioemotional development. Child Development, 61(2). 1990, p. 311-46

[7] Income inequality and economic residential segregationHow the Growth in Income Inequality Increased Economic Segregation

[8] The relative contribution of income inequality and imprisonment to the variation in homicide rates among Developed (OECD), South and Central American countries e  FAJNZYLBER, P. LEDERMAN, et al. Determinants of Crime Rates in Latin America and the World: An Empirical Assesment. World Bank, 1998.

[9] SANTOS, M.J. KASSOUF, A.L. Estudos Econômicos das Causas da Criminalidade no Brasil: Evidências e Controvérsias. Economia, Brasília(DF), v.9, n.2, p.343–372, mai/ago 2008
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[10] Social dominance in monkeys: dopamine D2 receptors and cocaine self-administration.

[11] WAAL, Franz de. Bonobo: The Forgotten Ape

[12] Microsatellite instability generates diversity in brain and sociobehavioral traits

[13] What Primate Behavior Can Tell Us about Human Social Evolution e Egalitarianism and Machiavellian Intelligence in Human Evolution

[14] THE MIRROR-NEURON SYSTEM A Neural Basis for Social Cooperation

[15] In Defense of Intellectual Property

[16] As Origens da Ordem Política: dos tempos pré-humanos à revolução francesa

[17] The Institutional Structure of Production

[18] DIETZ, Simon; ADGER, W. Neil. Economic Growth, biodiversity loss and consevation effort. Journal of Environmental Management, v.68, p. 23-35, 2003.

[19] CULAS, Richard; DUTTA, Dilip. The underlying causes of deforestation and environmental Kuznets curve: a crosscountry analysis. In: Econometric Society of Australasia Meeting (ESAM02). Anais da Econometric Society of Australasia Meeting (ESAM02).

[20] Human tide: the real migration crisisRelatório de Desenvolvimento Humano 2009 (ONU, GEO-4, 2007, p. 316); Environment and Disaster RiskTerra entrou em novo período de extinção em massa, diz pesquisa

[21] DALY, Herman e FARLEY, Joshua – ECONOMIA ECOLÓGICA – PRINCÍPIOS E APLICAÇÕES  (2004, p. 220)

Destaque: Garoto entre o “E-Waste” (lixo tecnológico) em Gana, um dos países africanos que serve de depósito do lixo tóxico produzido pelos países ricos que se dizem ambientalmente “limpos”.

 

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