Recomendação do MPF pede que estado priorize contratação de professores indígenas em escolas indígenas

Por Fernanda Canofre, no Sul21

Uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF) de Passo Fundo, na região norte do Rio Grande do Sul, expedida no dia 16 de junho, pede que a Secretaria Estadual de Educação contrate professores indígenas ou candidatos indígenas aprovados em concursos, para lecionar nas escolas indígenas, ao invés de ampliar a carga horária de outros docentes. O documento é endereçado diretamente às 7ª e à 39ª Coordenadorias Regionais de Educação, responsáveis por escolas da região, incluindo a Escola Estadual Indígena de Ensino Médio Fág Kavá, localizada dentro da Terra Indígena de Serrinha, no município de Ronda Alta.

O MPF afirma ter considerado a recomendação “necessária” depois de um inquérito civil apurar a ausência de professores na escola da Serrinha e ainda constatar que o Estado vinha aumentando a carga horária de não-indígenas, em detrimento de professores indígenas que já trabalhavam no local, em contrato temporário.

Há dois anos, a falta de educadores indígenas fez com que Lúcia Fernanda Inácio Belfort Sales tirasse o filho de 12 anos de uma das escolas da Serrinha. Moradora da Terra Indígena, a kaingang disse que o mantinha no local por causa do ensino bilíngue, obrigatório em escolas indígenas por lei. Porém, depois de dois anos sem aulas de kaingang, ela decidiu matriculá-lo em uma escola da cidade. “A qualidade [da escola indígena] está muito prejudicada, se for pra estudar matemática e etc, deixo ele lá fora que as escolas estão muito melhores”, explica.

Fernanda, que também é membro do Instituto Kaingang e foi a primeira indígena a receber título de mestre em Direito no país, conta que a situação se repete há anos e dois professores indígenas – de Inglês e História – estariam sendo preteridos para as vagas, enquanto professores não-indígenas ganham preferência. Ela lembra que em 2012, uma das escolas foi esvaziada porque diversos pais decidiram tirar os filhos da escola indígena e matriculá-los em outras instituições de ensino da região. A decisão gerou conflito com o então cacique do local, Antônio Ming, e alguns pais tiveram de recorrer à Justiça para que as crianças pudessem estudar fora da Terra Indígena.

Segundo a Secretaria Estadual de Educação, o Rio Grande do Sul tem atualmente 6.469 alunos e 17 professores indígenas, em 17 coordenadorias de educação. A Seduc nega que o ensino de Kaingang esteja suspenso na Serrinha e diz que “vem se esforçando para se adaptar à legislação nacional”. Na escola que motivou a recomendação, dos 16 professores, nove são não-indígenas e sete são indígenas.

Um dos problemas alegados pela Seduc seria que “não há professores indígenas com formação suficiente para atender todos os alunos”. “No último concurso público, realizado em 2013, apenas 43 professores da etnia foram aprovados. Diante da impossibilidade de contemplar todos os estudantes, os professores não-indígenas que ocupam as vagas são sempre supervisionados por professores índios para facilitar aos alunos a aprendizagem no seu próprio idioma”.

Procurada pela reportagem, a diretora da escola Fág Kavá disse que estava “proibida de falar” e desligou o telefone em duas tentativas de contato. A assessora de educação indígena da 7ª Coordenadoria Regional de Educação, localizada em Passo Fundo, disse não poder se pronunciar sobre o assunto.

Conflito de legislações é entrave

A questão na escola da Serrinha parece apontar para um problema maior. O conflito entre duas legislações: o que diz a lei estadual sobre educação e contratação de servidores e o que está estipulado para a Legislação Escolar Indígena, do Ministério da Educação. A análise é do assessor do departamento pedagógico em educação indígena, da Secretaria de Educação, Rodrigo Venzon.

“É comum que elas entrem em conflito, porque quando legisladores fazem leis convencionais, nunca pensam nos indígenas. Eles não lembram que existe educação indígena, fazem regras gerais, não contemplam questões de especificidades que estão previstas em convenções internacionais. Justamente por isso que nas conferências nacionais de educação indígena tem se falado em constituir um sistema próprio”, explica ele.

Pela lei do Estado, para que um professor seja chamado para um cargo temporário é preciso que haja vaga mostrando que a turma não está sendo atendida. A contratação é encaminhada pelos próprios diretores das escolas nestes casos, mas a prioridade é sempre para professores indígenas. Venzon observa, no entanto, que “a formação superior dos indígenas tem sido muito restrita”. A maioria dos indígenas que se dedica à licenciatura acaba estudando Pedagogia, o que faz com que a presença de docentes indígenas em séries iniciais seja quase integral na rede indígena gerida pelo Estado gaúcho. Porém, em matérias que exigem licenciaturas específicas há defasagem.

“O que a gente tem feito são termos de cooperação com as universidades, porque a oferta de formação superior indígena é uma atribuição da União. Mas estudantes indígenas a partir do quarto semestre de faculdade, já podem ter preferência no contrato”, explica Venzon.

A Lei de Diretrizes Básicas da educação menciona a educação de povos indígenas em dois pontos, que focam no ensino bilíngue. O artigo 32 diz que embora a educação seja ministrada em Língua Portuguesa, as comunidades têm direito de utilizar suas línguas e processos de aprendizagem. Os artigos 78 e 79, do Ato das Disposições Gerais e Transitórias da Constituição de 1988, também falam de ensino integrado e colocam como dever do Estado oferecer “educação bilíngue e intercultural que (…) proporcione a oportunidade de recuperar suas memórias históricas e reafirmar suas identidades, dando lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico científicos da sociedade nacional”. A LDB prevê ainda formação de corpo docente e material pedagógico especializado. O Plano Nacional de Educação (PNE), assinado em 2001, também traz diretrizes para a Educação Escolar Indígena.

Como alguém que estudou em escola indígena e em escola privada, Fernanda diz que sabe bem a diferença entre as duas e que, para os filhos, quer a oportunidade de uma educação que considere e ampare sua própria cultura. “A diferença é a vivência que você tem de uma história oral que não foi contada. Nosso povo recebeu roupa envenenada com varíola e com doenças há poucas décadas, isso não está escrito nos livros que são mandados para gente. Ali está falando de Duque de Caxias, de Padre José de Anchieta. A vivência dos kaingang foi minada através de atitudes do próprio governo”.

Além da recomendação às duas CRES que atendem à região da Terra Indígena da Serrinha, o MPF também pediu que as demais coordenadorias do estado sejam orientadas para adotar as mesmas providências.

Foto: Maia Rubim/Sul21

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

cinco + 3 =