A Justiça que serve a Abdelmassih e Andrea Neves é cega para presos ‘comuns’

Por Helena Borges, no The Intercept Brasil

Dois casos icônicos de prisão domiciliar chamaram a atenção do Brasil esta semana: a do estuprador Roger Abdelmassih, já condenado, e a de Andrea Neves, suspeita de corrupção que ainda não foi julgada. As duas situações são extremamente diferentes, porém refletem uma mesma lógica perversa: dentro do sistema penitenciário as desigualdades sociais, que do lado de fora formam um conjunto de privilégios, tornam-se uma engrenagem em que ricos conseguem a liberdade e pobres são esquecidos em celas superlotadas.

O problema não está na concessão das prisões provisórias a Abdelmassih ou a Andrea. Ambos os casos são garantidos pela lei. A questão é: por que esta mesma justiça que chega aos dois passa ao largo de incontáveis presos comuns?

Aproximadamente um terço da população carcerária do país é de presos provisórios; pessoas que, como Andrea, não foram julgadas ainda e que poderiam responder em liberdade. Além deles, há também idosos e doentes, como Abdelmassih, que definham e morrem dentro das celas. Ferramentas legais usadas por esses “presos de luxo” permitem que eles usufruam de direitos que ficam inacessíveis à maioria dos internos. No sistema penal, as desigualdades mantidas do lado de fora se ampliam e podem distinguir quem é preso e quem é solto.

Artigo 319 do Código de Processo Penal

“CAPÍTULO V

DAS OUTRAS MEDIDAS CAUTELARES

Art. 319.  São medidas cautelares diversas da prisão:

(…)

V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

(…)

IX – monitoração eletrônica.”

Este foi o fragmento do CPP utilizado por Andrea Neves e Frederico Pacheco, irmã e primo do senador Aécio Neves (PSDB-MG). Eles são suspeitos de corrupção e organização criminosa, mas, como ainda não foram julgados, sua prisão preventiva está sendo cumprida de casa.

O artigo 312 do CPP afirma que a prisão preventiva poderá ser decretada, entre outras situações, “quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. Durante a votação do Supremo Tribunal Federal sobre Andrea Neves, a ministra Rosa Weber e o ministro Edson Fachin chegaram a afirmar que havia evidências o suficiente para mantê-la na prisão.

Já o ministro Luís Barroso se mostrou mais preocupado com outro nome envolvido no inquérito: o do assessor parlamentar Mendherson Souza Lima, apontado como operador de Aécio. Para o ministro, não apenas o réu terá poder para atrapalhar as investigações, como também há provas o suficiente para que seja mantido na prisão: “Não há dúvida da autoria e da materialidade, está gravado, está filmado, todo mundo viu o recebimento do dinheiro”.

“A regra é a liberdade e a privação da liberdade é a exceção à regra”, disse o ministro Ayres Britto, em 2012, quando ele presidiu um julgamento no STF sobre a prisão preventiva automática de réus acusados de tráfico de drogas. A prisão preventiva, segundo o Código Penal, só seria necessária nos crimes dolosos com pena máxima maior que quatro anos, ou caso a pessoa já tenha histórico de condenação por crime doloso, ou em casos de violência doméstica e familiar.

A prática jurídica de encaminhar suspeitos de tráfico diretamente para a prisão provisória se tornou comum por uma interpretação da Lei de Drogas. O STF decidiu que a interpretação é inconstitucional por ir de encontro com o princípio constitucional da presunção de inocência.

O  Brasil tem 221 mil presos provisórios, dos quais 29% são suspeitos de tráfico. Por falta de critérios que possibilitem distinguir tráfico de uso pessoal, as cadeias têm se abarrotado de réus sem antecedentes e não violentos. Isso está diretamente conectado a outro reflexo da desigualdade: a falta de condições para pagar um advogado, sobrecarregando a defensoria pública.

A cientista social Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Cidadania na Universidade Candido Mendes (CESeC), explica que muitos desses presos provisórios passam longos e desnecessários anos na cadeia (a média vai a dois anos e meio):

“Fizemos várias pesquisas e mostramos que cerca de metade desses, quando julgados, acabam recebendo penas alternativas ou são absolvidos. A verdade é que se a grande maioria dos presos que estão aguardando julgamento no Brasil tivessem de fato advogados acompanhando seus casos, como alguns desses presos famosos têm, a história seria diferente.”

Outro motivo para que os presos provisórios mais pobres não consigam a prisão domiciliar é a dificuldade em entregar um comprovante de residência. Muitas pessoas não têm endereços formais nem CEP, outras moram em áreas de periferia dominadas pelo tráfico, onde oficiais de Justiça não entram. Desta forma, não há comprovante de residência e a Justiça entende que, não tendo um endereço comprovado, não há como cumprir prisão domiciliar. Ou seja, eles acabam indiretamente condenados pelo fato de morarem em áreas informais, como favelas. Foi o que aconteceu com Rafael Braga, morador da Vila Cruzeiro, único condenado no contexto das manifestações de 2013.

Artigo 318 do Código de Processo Penal

“Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:

I – maior de 80 (oitenta) anos;

II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;

III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência;

IV – gestante;

V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;

VI – homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos.

Parágrafo único.  Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea dos requisitos estabelecidos neste artigo.”

Esposa do ex-governador Sergio Cabral, Adriana Ancelmo, deixa a 7ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro após depoimento à Justiça Federal, maio de 2017. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Esta foi a ferramenta legal utilizada por Adriana Ancelmo, mulher do ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB-RJ). Presa provisoriamente sob acusações de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, Ancelmo conseguiu mudar sua prisão para domiciliar alegando que seus filhos não poderiam ser privados do convívio dos dois pais.

Assim como a ex-primeira-dama, inúmeras são as internas do sistema prisional brasileiro que são mães, quando não dão à luz na cadeia. Para estas mulheres, no entanto, a possibilidade de cumprir pena em regime domiciliar para ficar com os filhos é apenas um sonho. A coordenadora nacional da Pastoral Carcerária para a Questão da Mulher, Petra Silvia Pfaller, criticou a seletividade da Justiça à época da liberação de Ancelmo:

“O Poder Judiciário age de uma maneira seletiva, privilegiando as mulheres com maior poder aquisitivo. A Justiça no Brasil não é cega, ela olha realmente a pessoa. A criminalização da mulher pobre é bem visível. Como estrutura, o Judiciário é reprodutor da desigualdade social. As cadeias estão cheias de mulheres pobres.”

Em nota oficial criticando a desigualdade de tratamento entre mulheres julgadas, a instituição lembra que 30% das mulheres no sistema penitenciário não possuem condenação, portanto poderiam responder em liberdade. Marcelo Naves, vice-coordenador da Pastoral Carcerária na Arquidiocese de São Paulo, explica que não é raro ver casos de adoção à revelia da mãe, ou de perda de guarda, apesar de o Estado não fazer um levantamento sobre quantas detentas teriam filhos, com quem estariam estas crianças ou quantos anos elas teriam.

Artigo 117 da lei de execuções penais

“Somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de:

I – condenado maior de 70 (setenta) anos;

II – condenado acometido de doença grave;

III – condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;

IV – condenada gestante.”

 

Esta foi a lei à qual recorreu Roger Abdelmassih, que tem 74 anos, doenças cardíacas e inflamação nos pulmões. O mesmo recurso foi utilizado pelo ex-deputado federal José Genoino (PT-SP), condenado por corrupção ativa no processo do mensalão do PT. No fim de 2013, foi concedida prisão domiciliar após o ex-deputado passar mal por problemas cardíacos. Genoino teve sua pena extinta pelo Supremo Tribunal Federal em 2015, após um indulto de Natal da ex-presidente Dilma Rousseff, e assim pôde sair da prisão domiciliar.

O ex-médico Roger Abdelmassih, 70 anos, sendo preso em Assunção, capital do Paraguai, por agentes ligados à Secretaria Nacional de Antidrogas do governo paraguaio com apoio da Polícia Federal brasileira; ele também foi condenado por estupro. Foto: Secretaria Nacional De Antidrogas do Paraguai

Outro ex-deputado condenado no processo, Roberto Jefferson (PTB-RJ) tentou usar da mesma ferramenta jurídica, mas os laudos médicos produzidos no Instituto Nacional do Câncer não comprovaram que ele tivesse uma doença grave o suficiente para impedir sua estadia no presídio. A defesa do político alegou, na época, que Jefferson tinha histórico de obesidade, hipertensão e câncer, que já tinha sido operado há um ano.

O maior problema enfrentado por presos doentes é ter acesso ao laudo médico. Presos ricos conseguem contratar especialistas ou pedir aos seus próprios médicos para elaborarem o documento, já quem só conta com médicos do estado enfrenta problemas. O coordenador de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel Queiroz, explica que é muito difícil provar a condição de saúde desses presos aos juízes:

“Há uma dificuldade enorme em produzir laudos que demonstrem a situação decrépita de saúde desse ser humano, que não justifique que ele continue preso. Os médicos do sistema penitenciário relutam em afirmar que não há condições técnicas de cuidar daquele interno. Tenho senhores idosos, cadeirantes, senhores de fraldas que sobrevivem dentro do sistema pela solidariedade de outro interno e que, mesmo assim, existem inúmeros laudos afirmando que eles conseguem se cuidar sozinhos.”

Foto de um interno do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, em Bangu RJ), no dia 24 de abril de 2017; o pedido de prisão domiciliar para esta pessoa, que estava com tuberculose, não foi apreciado antes dele morrer, no dia 25 de maio de 2017, aos 31 anos. Foto: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro

A imagem acima parece tirada de um campo de concentração, mas se trata de um homem preso no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, em Bangu, Rio de Janeiro. Ela foi feita no dia 24 de abril pela Defensoria Pública do Estado, órgão que também fez um pedido de prisão domiciliar para este interno, que estava com tuberculose. O pedido não foi apreciado a tempo pela Justiça, e ele morreu dentro da cela um mês depois de a foto ser tirada. Ele tinha 31 anos.

O defensor Emanuel Queiroz conta que o homem da foto, que tem a identidade protegida pela Justiça, é icônico das dificuldades passadas por muitos dos internos inválidos e que seu caso foi levado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

A média de incidência da tuberculose entre a população brasileira é de 33 casos para 100 mil habitantes, um dado que já é considerado alto, e o Brasil é um dos 20 países do mundo com mais alta carga da doença, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, nos presídios esse número salta para 932. A superlotação, a falta de ventilação e de iluminação nas unidades prisionais favorecem a disseminação da doença. Um único caso de tuberculose pode infectar de quatro a dez pessoas.

“É frustrante que estejamos diante de uma doença benigna, fácil de ser diagnosticada, com tratamento de boa qualidade e, mesmo assim, tenhamos esse universo perverso no sistema carcerário no Brasil”, afirma a pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Margareth Dalcolmo.

Número de mortes em cadeias fluminenses aumentou 70%

Um levantamento feito pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro em parceria com o Instituto Igarapé mostrou que, apenas nos presídios do estado do Rio, 5 detentos morreram a cada mês entre janeiro de 2010 e junho de 2016, mais de 60% dos óbitos foram por doenças, hemorragia interna ou insuficiência respiratória. O número de mortes dentro das cadeias fluminenses saltou de 51 casos em 2014 para 87 em 2015. Os números de 2016 ainda não foram completamente fechados.

A pesquisadora do Instituto Igarapé Ana Paula Pellegrino explica que o sistema de informações sobre as pessoas em presídios não segue os padrões internacionais: “tivemos muitos problemas para analisar esses dados, porque eles não respeitam os padrões internacionais de análises de óbitos. Muitas mortes são consideradas doenças, como insuficiência pulmonar. Não é doença?” Muitas causas de morte de presos ficam incertas nas estatísticas, dificultando as análises. No caso de hemorragia interna, por exemplo, não se informa se a causa da hemorragia foi um acidente, uma violência sofrida ou uma doença.

Segundo o Ministério da Justiça, somente 37% das unidades prisionais do país têm módulos de saúde. No Rio de Janeiro, apenas uma em cada dez penitenciárias têm o serviço, mas nenhuma delas possui médicos em suas equipes, compostas por auxiliares de enfermagem.

Pellegrino lembra que as doenças que acometem os internos também deixam vulneráveis os servidores públicos que lá trabalham e os familiares e amigos que os visitam. Em sua pesquisa, foram apontados 31 mil visitantes cadastrados apenas na cidade do Rio. Ou seja, quando a população de uma cadeia adoece,  a cidade adoece junto.

Ato Liberação Presos Politicos, em julho de 2014, pedia a liberdade para Rafael Braga, morador da Vila Cruzeiro, único condenado no contexto das manifestações de 2013. Foto: Mídia Ninja

Por que os direitos concedidos às elites são inacessíveis aos presos comuns?

Em diferentes entrevistas com especialistas de variadas áreas, a mesma resposta ecoa: a prisão eleva as disparidades sociais a um nível pernicioso. O acesso a advogados que possam se dedicar adequadamente ao caso ou a peritos especializados é crucial e custa caro. Enquanto réus ricos conseguem pagar por estes serviços — e, assim, garantir seus direitos — os pobres são colocados no sufoco de celas superlotadas.

Julita Lemgruber resume a situação:

“O pobre, o negro, aquele que depende da defensoria, mesmo quando acusado de crimes não violentos, vai mofar na cadeia. Agora, se você pertence à elite, mesmo quando acusado de crimes que hoje surpreendem a nação, mesmo essas pessoas acabam recebendo prisão domiciliar. Assim o judiciário cumpre o papel que a elite espera dele: manter preso o negro pobre e manter liberto o membro das elites.”

***

Atualização em 24 de junho, 13:20:

Nota de resposta da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro:

“A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro recebe com perplexidade as declarações da pesquisadora Julita Lemgruber na reportagem, tendo em vista que reproduzem discurso que culpabiliza valorosos defensores e defensoras pela superlotação prisional. A velha lógica dos “bons advogados” dá a entender ser uma questão de que apenas estes dominam os “bons argumentos” capazes de evitar a inclusão massiva e manutenção automatizada no cárcere de milhares de jovens negros, pobres, periféricos e de baixíssima escolaridade com frágeis vínculos sociais.

Espanta que essa leitura continue sendo sustentada por profissionais experimentados e conhecedores das mazelas e da seletividade do sistema de justiça criminal brasileiro.
Tal visão elimina da equação o fato de que a Defensoria Pública é responsável pela defesa de cerca de 75% dos acusados e apenados do Estado de Rio de Janeiro, isentando de responsabilidade os demais atores do sistema de Justiça, inclusive aquele que detém o poder efetivo de prender e de soltar e que muitas vezes o faz de forma autômata e divorciada de sua vocação ancestral, a contenção do poder punitivo.

Passa da hora de deixar de lado o obscurantismo conveniente e distribuir as responsabilidades de modo a respeitar as forças, funções e o papel de cada uma das instituições envolvidas e comprometidas com a solução dos graves problemas enfrentados nessa área.

Cômodo é arvorar-se a vocalizar a defesa da sociedade, mas incômodo e necessário é compreender que a defesa de uma sociedade desigual equivale a promover a defesa da desigualdade social.”

Cela superlotada de prisão em Vila Velha (ES), em 2009. Foto: Wilson Dias, Agência Brasil

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