A televisão a serviço da tecnologia do racismo

“…que foi que ocorreu, para que o mito da democracia racial tenha tido tanta aceitação e divulgação? Quais foram os processos que teriam determinado sua construção? Que é que ele oculta, para além do que mostra? Como a mulher negra é situada no seu discurso?”  (GONZALEZ, 1984: 224)

Por Joice Berth, no Justificando

Os meios de comunicação, todos eles, têm sido braço direito e esquerdo na propagação das tecnologias da estrutura racista. Isso é uma verdade que pode-se comprovar com absoluta facilidade em todos os veículos de comunicação disponíveis, em especial a televisão.

O poderoso e influente jornalista Assis Chateaubriand foi o responsável pela primeira transmissão televisiva no Brasil em 18 de setembro de 1950, pela TV Tupi em São Paulo. No ano seguinte, seria a vez do Rio de Janeiro ser contemplado com essa novíssima ferramenta cujos recursos que viabilizaram sua implantação foram importados dos EUA. O Brasil então, passa a ser o quarto país do mundo a operar esse tipo de veículo, ficando atrás apenas da Inglaterra, França e do próprio EUA.

O país seguia há pouco mais de meio século de pós-abolição. Um pós-abolição que ora tentava se livrar das sobras humanas que a lei agora não permitia mais a exploração explicita,  ora se valiam da fragilidade dessas sobras vivas para prosseguir com os acúmulos de riqueza construída as custas da exploração histórica e não reparada.

Nesse contexto, a televisão foi a um só tempo o molde perfeito para os anseios capitalistas pautados pelo controle social via alienação e seletividade da informação passada e, como instrumento de altíssima performance que consolidaria o projeto de branqueamento de nossa sociedade mestiça, mostrando ao mundo que o país era branco ao mesmo tempo em que minava a formação da identidade e subjetividade dos povos negros e indígenas, entre outras minorias.

“Entende-se que um processo de construção de identidade de um povo se dá através de aparelhos sociais, como a educação e a comunicação. É inegável que esses aparelhos são determinantes de valores, influenciam atitudes e formam consciência, na medida em que transmitem valores étnicos, estéticos e outros elementos que contribuem para a composição de uma identidade étnica. O ato ou efeito de identificar-se implica no reconhecimento, em si próprio, de algo que se percebe em alguém (e vice-versa), funcionando esses aparelhos como espelhos refletores da sua imagem e semelhança.” (Roberto Carlos da Silva Borges e Rosane Borges, Mídia e Racismo). 

Mas a atuação da televisão foi firme e sutil na manipulação do já suficientemente racista imaginário social, que necessitava trabalhar simultaneamente com telespectadores brancos e negros, de modos diferentes mas relacionados entre si. Não podia, por exemplo, garantir uma representatividade negra quantitativa necessária para o fortalecimento positivo da imagem de sujeitos negros, trabalhando com muita habilidade a ciência de que a formação da subjetividade perpassa, inadvertidamente pelo reconhecimento de si mesmo através da imagem do outro e isso se dá garantindo a quantidade e a qualidade da representação humana em todas as suas possibilidades existenciais.

O processo de rejeição racista da existência de sujeitos negros não foi iniciada com o advento da criação da televisão. Já era a sequência do que foi iniciado quando os primeiros negros pisaram na América, pois para garantir a exploração de escravizados era necessário um ralo para escoamento da culpa acumulada por uma moralidade cristã e foi justamente o movimento de desumanização do sujeito negro que serviu nesse sentido.

O sistema racista, ao longo de quase quatro séculos de escravização, criou um lugar para o sujeito negro. Esse lugar era exatamente o depósito de todas as incongruências e imperfeições humanas que o pensamento brancocêntrico nunca ousou confrontar.

O quartinho dos fundos, o lugar das bagunças, onde sujeitos brancos poderiam ocultar seu eu indesejado, seu lado assombroso e negativo com o qual não saberia lidar.

Mas esse lugar não poderia ser apenas um espaço vago, em se tratando de sujeitos e suas subjetividades, seria necessário dar corpo a esse lugar criando uma existência que abarcasse o contingente existencial indesejado e reprimido que amedrontava o ego excessivamente frágil dessa categoria social, a branquitude, que se afirma enquanto ser humano às custas da coisificação marginal de outras categorias sociais que não compartilha das mesmas características físicas que as suas.

“O racismo nos usa como depósito de algo que a sociedade branca não quer ser. Algo que é projetado em mim e eu sou forçada neste mise en scene, nesta encenação, a ser protagonista de um papel que não é meu e com o qual eu não me identifico.” Grada Kilomba para Carta Capital

Mas também seria necessário ancorar a existência branca pautada pela superioridade autoproclamada, consolidando a recriação desse sujeito de tal forma que corresponda de maneira eficiente à idealização de si mesmo.

Assim se seguiu ao longo da história da televisão brasileira a imagem estereotipada e distorcida do sujeito negro, começando pela escassez (quase) total de sua presença e passando pelo exercício de inferiorização (quase) sutil, garantindo assim que a representação fosse sempre prejudicada o suficiente para que o sujeito negro não sentisse orgulho de si mesmo, ao mesmo tempo em que garantia ao sujeito branco a possibilidade de expressar seus ideais de superioridade através da compaixão e da aceitação desse sujeito contrário no seu meio social.

Os serviçais negros de ambos os sexos, sempre pacíficos embora tremendamente ignorantes e desprovidos de cultura e bons modos brancos, são um exemplo comum dessa técnica de manutenção do lugar criado para o sujeito negro exercido pela televisão.

O mito da democracia racial foi amplamente propagado, visto que sempre nas telenovelas, negros e brancos conviviam de forma pacífica, o que alicerçou na mentalidade do sujeito negro uma aceitação inexistente da negritude, pois, essa convivência era claramente hierarquizada, sendo que estabelecia sem nenhum constrangimento quem era “superior” e portanto mandava e quem era “inferior” e portanto obedecia.

E não se tratava de uma questão de classes, uma vez que a representação de brancos da classe pobre ainda apontava privilégios que incluíam ter um serviçal negro/a e podemos reparar a quase inexistência de uma classe média negra representada na televisão, seja nas novelas ou nas peças publicitárias.

É bem verdade, que o conteúdo televisivo é pautado pela opinião pública. Entretanto cabe observar friamente que estamos diante de uma ferramenta de comunicação que reflete mas também forma opinião. O que encerra em um exercício sutil de manipulação, se valendo dessa desculpa para continuar exercendo as tecnologias opressoras do racismo, apoiando-se na isenção de posicionamento e em uma falaciosa obediência ao que demandam os telespectadores e anunciantes.

Podemos discorrer muito mais a respeito da participação ativa e decisiva da televisão brasileira na manutenção das tecnologias do racismo. Mas em 2017, se esse assunto ainda não foi solucionado é possível afirmar que estamos no caminho de outra personalidade para a televisão brasileira que possa se redimir de sua atuação demagoga e tendenciosa a cerca das questões raciais, aprendendo timidamente a ouvir e encaminhar o que está sendo dito há anos por especialistas e estudiosos das questões raciais.

Talvez por ter perdido espaço importante com a proliferação de vozes negras que encontraram na web um canal para extravasar o grito de revolta conjunta e ancestral e que tem feito isso a contento, garantindo inclusiva alguma representatividade que sempre foi negada pela própria televisão brasileira.

Joice Berth é Arquiteta e Urbanista pela Universidade Nove de Julho e Pós graduada em Direito Urbanístico pela PUC-MG. Feminista Interseccional Negra e integrante do Coletivo Imprensa Feminista.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244

Mídia e racismo / Roberto Carlos da Silva Borges e Rosane Borges (orgs.). Petrópolis, RJ: DP et Alii; Brasília, DF : ABPN, 2012. 248p.

 

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