Conexão Maputo-Rio de Janeiro Parte 2: Os Desafios Comuns da Regularização e da Gentrificação

Luisa Fenizola – RioOnWatch

Em Maputo, capital de Moçambique, 80% da população vive nos chamados assentamentos informais, também conhecidos por seu nome histórico “caniços”, como mostrou a primeira matéria dessa série. É possível traçar alguns paralelos entre as favelas cariocas e os caniços maputenses, dentre eles o desafio da regularização fundiária.

Em Moçambique, toda a terra pertence ao Estado, herança da administração socialista do país, e não é permitido comercializá-la. O governo concede um Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) semelhante às concessões de uso real no Rio, mas somente cerca de 10% das habitações moçambicanas o possuem, devido à falta de informação e ao tempo, investimento e burocracia necessários para obtê-lo. Na prática, no entanto, o valor da terra acaba embutido no preço de venda do imóvel nela construído.

A posse da terra é garantida majoritariamente por via oral, pelo testemunho de vizinhos. O testemunho oral tem valor legal na resolução de disputas pela terra, mas não fornece outras garantias para além disso. A grande maioria da população não tem acesso a financiamentos habitacionais para construir ou reformar suas casas, já que não pode usar seus terrenos como garantia de pagamento ou mesmo não consegue provar seu endereço fixo. Além disso, essa falta de documentação torna-os mais vulneráveis a remoções, como acontece diante de grandes empreendimentos, para os quais são concedidos terrenos ocupados por caniços por parte do governo, em vista do capital que vão injetar na economia, ou mesmo por troca de favores.

De maneira similar, argumenta-se que, no Rio, a falta de titulação significa dificuldade de acesso a crédito, a emprego e vulnerabilidade a remoções. No Rio, no entanto, a titulação automaticamente significa a integração da residência no mercado imobiliário formal, o que pode se traduzir na cobrança de impostos e um aumento do custo de vida de toda a vizinhança, e por consequência, a chamada ‘remoção branca’, ou gentrificação. Enquanto isso, em Moçambique, o caráter estatal da terra garante a isenção de impostos sobre a terra usada para habitação ou para fins agrícolas. Isso porém é usado como argumento para a baixa arrecadação usado para justificar a baixa capacidade de provisão de serviços públicos–e a falta de infraestrutura ainda é uma característica marcante dos caniços da cidade.

Em ambos os cenários, a regularização fundiária traz com ela o risco da gentrificação. Mesmo diante da proibição da comercialização da terra, o valor dela e de sua localização acaba sendo embutido no valor da propriedade nela construída, e os preços podem se tornar proibitivos para os habitantes originais. Além do risco posto por uma possível regularização fundiária, a gentrificação já é uma ameaça real como resultado de programas de requalificação lançado pelo governo de Moçambique, que contam com o capital privado e, por consequência, os seus interesses. No bairro de Polana Caniço A, o programa existente de requalificação visa reforçar os serviços básicos locais (como construção de valas de drenagem, pavimentação de via de acesso, recuperação de espaços públicos, estabelecimento de coleta de lixo), necessidade real dos atuais moradores, mas prevê também a construção de 30.000 apartamentos de classe média, que podem deslanchar a gentrificação em seguida.

Os atuais moradores, de mais baixa renda, são frequentemente aliciados a deixarem suas casas para abrir espaço para tais empreendimentos imobiliários. Alguns já demonstram saudosismo pelas antigas dinâmicas familiares do bairro, onde todos se conheciam e se cumprimentavam, reforçando não só a sensação de camaradagem, mas como de segurança–sentimento também comumente relatado por moradores de favelas no Rio. Hoje o bairro maputense Polana Caniço A testemunha um aumento da criminalidade, principalmente em assaltos a residência.

Para fazer frente à essa força gentrificadora, existe um projeto não-governamental piloto de requalificação urbana que propõe construir no lugar de uma casa de estrutura precária, duas novas casas geminadas. Em troca da cessão do terreno e de uma pequena contribuição, a família que vivia lá originalmente recebe uma nova casa, enquanto a segunda casa é vendida para famílias de classe média que estão sendo atraídas para o bairro por sua proximidade ao centro da cidade, como forma de financiar o projeto. Todo o projeto está alinhado ao plano municipal para a área, que propôs o adensamento do bairro, hoje com baixa densidade populacional. Chamado de Casa Minha Nosso Bairro, o projeto buscou uma de suas referências no programa do governo federal Minha Casa Minha Vida. Diferente do programa brasileiro, no entanto, trata-se de uma iniciativa privada que precisa ser rentável, mas que possui princípios sociais.

De maneira similar à construção sobre lajes e de puxadinhos no Rio, o projeto prevê o crescimento orgânico das famílias na forma da possibilidade de uma construção incremental: as varandas podem ser transformadas em dois novos quartos, e um novo andar pode ser construído sobre o primeiro ou o segundo, mas tudo feito com assistência técnica e materiais de boa qualidade. A lógica desse crescimento da residência em resposta ao crescimento da família está inserida na lógica da auto-construção que predomina nesses espaços, tanto no Rio quanto em Maputo, na qual não se contrata empreiteira e muitas vezes envolve familiares e vizinhos.

“Auto-construção não é precariedade, é oportunidade”, disse Alfonso Cubrillo, fundador do projeto. Ou seja, se feita com a assistência técnica adequada, a modalidade é uma forma de solução: reduz custos e traz benefícios como processos participativos e alinhados às necessidades do morador, além de criar envolvimento no processo e comprometimento com o resultado final, contribuindo para sua sustentabilidade. No Rio, a lógica da auto-construção já foi aproveitada em programas habitacionais, como foi o caso do Minha Casa Minha Vida – Entidades.

Com base em suas investigações, Alfonso atribui as dificuldades de implementação e de manutenção de programas habitacionais à descentralidade de planejamento: “no Brasil a questão da habitação é do governo central, urbanismo é do estado e mobilidade é do município. Há portanto um problema enorme de coordenação”. Ele defende um modelo único que aborde as diferentes problemáticas do bairro de forma integrada, ao invés de fragmentada em diversos programas.

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