Em tempos de ódio, batalha por igualdade e dignidade no país avança

A fúria do preconceito ainda encontra muito espaço num país que desconhece sua história. Para o ex-secretário Rogério Sottili, o Brasil vive um momento que precisa enfrentar, para ficar melhor

Por Luciano Velleda, para Revista do Brasil, na RBA

São Paulo – “Ô bando de sem ter o que fazer, de direitos humanos. Leva esses drogados pra porta da sua casa então. Ou melhor, põe dentro da casa de vocês. Vão trabalhar, bando de gente que não tem o que fazer. Vocês são é um bando de quadrilha que defende quem não presta.” A dona deste raciocínio o expressou na seção de comentários de uma reportagem recente do portal G1. O texto anunciava decisão do Conselho Nacional de Direitos Humanos de entrar com uma representação por improbidade administrativa contra o prefeito João Doria (PSDB) devido às suas ações na Cracolândia.

“Cambada de desocupados, que protege a criminalidade e nunca está do lado do cidadão. É o direito dos manos! Vergonha total! O pior é que muita gente ainda contribui com essas organizações, que só prejudicam a sociedade!”, escreve outro, na mesma reportagem. “Esse maldito direitos humanos. Pega aqueles zumbis e põe para morar na sede destes caras”, comentou um terceiro. Naquele dia, a RBA contou mais uma dúzia de frases do mesmo naipe.

O discurso de ódio e preconceito contra pessoas e entidades que promovem e cobram o exercício dos direitos humanos no Brasil é recorrente. Na internet, seja na seção de comentários de reportagens ou nas manifestações em redes sociais, a postura beligerante é amplificada, repercutindo opiniões que podem ser ouvidas diariamente no cotidiano das cidades.

Um fenômeno que, na opinião de Rogério Sottili, ex-secretário nacional de Direitos Humanos e ex-secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo, não é uma particularidade apenas do Brasil e tornou-se uma questão global. Para ele, o preconceito e o desconhecimento estão na raiz das expressões de ódio dirigidas às pessoas de maior vulnerabilidade social e econômica – e às que lutam por elas. “Há uma questão ideológica de fundo”, observa Sottili. “Direitos humanos não interessam para um setor importante da sociedade, seja no Brasil, nos Estados Unidos, na França ou no Paraguai, porque significa mexer em privilégios, mexer na estrutura do Estado. Em última instância, é a busca pela construção de uma sociedade mais humana e solidária.”

No Brasil, entretanto, a situação pode ser um pouco mais grave quando setores hegemônicos da sociedade agem para contaminar o debate, na avaliação de Sottili, ao mesmo tempo em que o país tem uma democracia frágil e patriarcal, onde predomina o discurso ideológico da elite e da manutenção do status quo. Um discurso que cresce e seduz as classes populares.

“Somos um país construído numa cultura de violência e onde nunca ninguém questionou o seu passado histórico”, diz o ex-secretário, citando a Guerra do Paraguai, o genocídio indígena, a escravidão e as ditaduras do século 20. “Nunca falamos sobre isso que aconteceu. A Alemanha contou a sua população o que houve com o nazismo. A Itália, com o fascismo; a Espanha, com o franquismo. Essas sociedades foram elaborando isso. No Brasil, é o contrário, os livros ainda falam dos bandeirantes de uma forma elogiosa e o mesmo acontece com Raposo Tavares, com os ditadores, os escravocratas. Sem essa elaboração, as pessoas não têm compreensão desses processos históricos, o que daria uma base crítica para um melhor entendimento do que são direitos humanos.”

Para Rogério Sottili, uma das principais características dos direitos humanos é questionar o status quo e procurar romper suas estruturas. Ao olhar para o imigrante e vê-lo como uma pessoa de direitos, por exemplo, essa perspectiva é transformada sob um discurso racista e xenofóbico. “O olhar dos direitos humanos questiona e incomoda. É um conjunto de fatores objetivos e subjetivos, psicológicos e ideológicos, que faz com que haja um campo muito fácil de disseminação da cultura de violência, com a participação dos instrumentos do Estado, como a polícia e a educação”, explica.

Segundo Sottili, apesar da forte resistência, a agenda dos direitos humanos tem avançado no Brasil nos últimos 15 anos. “O debate dos direitos humanos assusta o autoritarismo, a elite, quem não quer distribuir renda, o conservadorismo. Isso é um avanço fabuloso e, como reação, muitos se juntaram para bombardeá-lo.”

A arena pública da internet

Rodrigo Nejm, diretor de prevenção e atendimento da SaferNet – organização que há 11 anos se dedica ao enfrentamento de crimes cibernéticos no Brasil –, pondera que a igualdade de direitos e a defesa da dignidade humana nos marcos jurídicos ainda são recentes, tendo como perspectiva histórica a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.

“Vejo essa perspectiva com certo otimismo, um projeto de sociedade que tem um norte a partir da Declaração dos Direitos Humanos. É uma construção e, no Brasil, temos esse desafio refletido”, analisa, destacando que antes da Constituição de 1988 a legislação era “mais voltada a manter privilégios econômicos, privilégios de raça, entre outros”.

Assim como Rogério Sottili, o diretor da SaferNet também avalia que as disputas para a promoção dos direitos humanos provocam tensões sociais e alguns grupos de privilégios são questionados. Como resultado, quem antes detinha o monopólio em certa área, hoje vê a legislação garantindo a igualdade de direitos entre todos. “Isso tira o conforto de alguns grupos que então questionam os direitos humanos”, afirma.

Nesse contexto, a internet se tornou espaço em que as tensões são refletidas e o discurso contra os direitos humanos acaba incorporado inclusive por classes sociais que não são da elite. Segundo estudo da SaferNet, desde 2006 já foram encontradas 2.768 páginas com apoio e incitação ao crime contra a vida na internet brasileira.

Nejm alerta ainda para a visão equivocada e preconceituosa contra os direitos humanos quando se trata de crianças e adolescentes. Também professor na pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal da Bahia, ele lembra que antes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) havia o Estatuto de Menores, uma legislação elaborada para punir menores de 18 anos que cometessem algum tipo de ato violento ou infracional, “com uma carga classista e direcionada a proteger certas partes da sociedade das crianças pobres, chamadas de delinquentes”.

“São pessoas que não têm nenhuma ideia do marco regulatório e desconhecem a noção básica de cidadania, direitos e deveres e o que significa uma civilidade mínima para que tenhamos uma convivência pacífica numa sociedade complexa.”

Com o olhar de psicólogo, Rodrigo Nejm salienta que pessoas que atacam ou condenam o outro agem assim como forma de garantir seus próprios valores. “Isso se reflete nesse discurso de exclusão de qualquer tipo de direito de alguém que está preso ou é de uma religião considerada ‘imprópria’, o que já é uma dificuldade de ver o outro, com a sua diferença, como merecedor dos mesmos direitos e deveres que eu tenho.”

A homofobia é um exemplo clássico do comportamento de desconforto que pessoas sentem diante de uma manifestação diversa da sua. O resultado é a desqualificação das características do outro para reforçar as suas próprias, um conceito da psicologia social. “É um mecanismo primário, mas não estamos fadados a ele. Os direitos humanos vêm como um marco para que a gente possa amplificar essa percepção e reconhecer na igualdade justamente a possibilidade de valorizar minha diferença sem ser em detrimento da diferença do outro. Ao não reconhecer no outro, com sua diferença, os mesmos direitos e dignidade, em termos abstratos você impede a própria manutenção da diferença do seu grupo”, explica.

Para o professor, o discurso de manutenção de privilégios se torna evidente na internet, que acaba sendo um “potencializador” desse pensamento, uma arena pública onde se refletem os conflitos sociais. Por outro lado, na mesma internet existe a possibilidade de dar vozes a pessoas e grupos sociais que antes eram completamente excluídos de outras formas de comunicação pública, o que a torna também uma plataforma de promoção dos direitos humanos. “É uma arena de embate público. Há algumas décadas os grupos minoritários não tinham onde se manifestar. E todo discurso provoca um contra discurso.”

Do ponto de vista legal, Rodrigo Nejm destaca que muitas pessoas veem a internet como “um mundo à parte”, o que para ele não é verdade. “A questão é que a internet pode ser vista como uma ferramenta que favorece o amadurecimento dessas disputas e conquistas, ainda que a mesma plataforma seja também usada para cometer violações”, diz o diretor da SaferNet.

Automatismo e banalização

O machismo, a violência contra a mulher, o racismo, a violação de direitos de homossexuais, que antes já abasteciam a cultura do deboche e da humilhação pública em forma de brincadeira ou piada, encontram agora na rede mais um espaço de “banalização da violação dos direitos humanos”. Um comportamento que se equilibra na linha tênue entre a liberdade de expressão e a violação de direitos.

“A internet é um grande desafio e tem de ser reconhecida como um excelente instrumento da liberdade de expressão, ao mesmo tempo em que as pessoas têm de reconhecer que a minha liberdade de expressão não é somente para expressar minha insatisfação ou ira contra algum grupo social”, diz Nejm.

Em sua visão, o dano causado a uma pessoa que é violentada na internet, tendo, por exemplo, fotos íntimas vazadas, adquire uma escala gigantesca. São casos em que mesmo com eventual punição na Justiça haverá uma desproporção entre o dano e a suposta compensação.

Para complicar ainda mais o cenário, Nejm cita o automatismo e a desumanização como características do comportamento contemporâneo na internet e em outras formas de tecnologia da informação, como o aplicativo WhatsApp. Para ele, o automatismo faz com que as pessoas ajam “sem pensar”, compartilhando violações, enquanto a desumanização banaliza o sofrimento do outro.

No caso do aplicativo de troca de mensagem, ele avalia que há a sensação de arena íntima e, como consequência, as pessoas se sentem mais confortáveis em desrespeitar direitos humanos, mais livres para expressar comportamentos violentos, agressivos e discriminatórios do que se estivessem numa arena pública.

“Quando você não tem uma identificação direta com o outro, esse processo de desumanização é intensificado, porque você não vê o sofrimento do outro como veria numa situação presencial. O problema não é o WhatsApp. É o quanto a gente tem se apropriado dessas tecnologias sem levar em consideração a capacidade crítica de discernimento.”

O ex-Secretário Nacional de Direitos Humanos Rogério Sottili acredita que o país passa por um momento que precisa enfrentar, para ficar melhor. “Tenho certeza de que o Brasil sair dessa crise diferente, com outra qualidade. A experiência que estamos vivendo é marcante. Acho que sairemos desse processo melhores. E parte disso se deve aos direitos humanos.”

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

oito − dois =