O desafio de superar uma institucionalidade “caduca” das democracias representativas. Entrevista especial com Alexandre Mendes

João Vitor Santos – IHU On-Line

Para o professor Alexandre Mendes, a representação política tal qual está posta nas democracias ocidentais já manifesta, por si só, uma corrupção do sentido de democracia. Para ele, antes de pensar em salvar a representatividade, é preciso conceber outra democracia. “A criação de mecanismos políticos que possam servir para reverter a permanente expropriação institucional realizada nos Estados polimorfos contemporâneos se revela como um ponto central de enfrentamento e, ao mesmo tempo, um permanente enigma”, pontua. Mas como pensar em saídas? Na sua perspectiva, é importante assumir que a participação via conselhos e comitês, por exemplo, é um modelo já esgotado pela apreensão que o poder institucional já fez desse modelo. “Isso significa dizer que as instâncias são atravessadas pela lógica partidária, pelos ciclos eleitorais, pela barganha política e por uma subordinação fortíssima ao próprio poder Executivo”, analisa.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Mendes indica que um caminho possível para sair desse impasse, a chamada crise da representatividade, é olhar para novas experiências do municipalismo. “É vantajoso comparar as experiências cruzadas entre as promessas municipalistas brasileiras e espanholas da década de 1980-90 e os novos problemas colocados pela aposta em um novo municipalismo, que irrompeu com força em várias capitais do país ibérico e, no Brasil, continua ainda bloqueado pela lógica farsesca da representação em crise”, indica. Porém, reconhece que é preciso estar atento e não deixar essa outra perspectiva ser apreendida pela velha institucionalidade. “Se existe um sentido em discutir políticas do comum, seria exatamente este: reconhecer e valorizar o campo direto da produtividade social e produzir rotações que escapem, ao mesmo tempo, das capturas estatais-burocráticas e dos circuitos de valorização do mercado”, pontua.

Alexandre Mendes é professor da faculdade de Direito na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Foi defensor público entre 2006 e 2011. Entre suas publicações, destacamos os livros A vida dos direitos: ensaio sobre modernidade e violência em Foucault e Agamben (São Paulo: Agon, 2008), com Bruno Cava; também organizou A resistência à remoção das favelas no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Revan, 2016) com Giuseppe Cocco; e O Fim da narrativa progressista na América do Sul (Juiz de Fora: Editar, 2016), com Ricardo Falbo e Michael Teixeira.

Recentemente, também em parceria com Bruno Cava, lançou A constituição do comum (Rio de Janeiro: Revan, 2017), que sintetiza o trabalho teórico-político dos autores ao redor da teoria do comum e da multidão, entre eles Antonio Negri, Michel Foucault, Marx, Spinoza.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compreender o conceito de Comum a partir da materialidade do ciclo de lutas global na crise, que começou entre 2010 e 2011 no norte da África e em 2013 chegou à Turquia e ao Brasil, passando pelas praças espanholas, gregas e americanas?

Alexandre Mendes – Podemos afirmar que o ciclo da Primavera Árabe lançou luz a uma dimensão mais radical do comum, com relação, por exemplo, ao ciclo alterglobalização do final da década de 1990. Naomi Klein, em visita ao Occupy Wall Street, em 2012, comentou que, se o movimento dos movimentos daquela década mirava nos “summits” (rodadas) internacionais como alvo, ele agora aparece não mais como eclosão transitória e direcionada, e sim como uma luta permanente, sem prazo certo ou hora para acabar.

Além disso, o movimento global teria saído da lógica do confronto direto com os representantes da aristocracia do poder global, para atingir um novo estágio de enfrentamento, expressado na autovalorização do próprio movimento, na sua capacidade de se constituir como forma de experimentar diretamente uma produção de vida social. As praças de dezenas de países do mundo se transformaram em verdadeiros laboratórios do comum, articulando atividades de ocupação, mídia, apoio jurídico, composição musical e audiovisual, serviço médico e definição de estratégias comuns de resistência.

Um segundo elemento, que guarda semelhança com o ciclo de 1968, foi a radical indiferença, do ponto de vista das lutas, em relação às formas assumidas pelo poder constituído e seus tipos de governo. Os ventos atravessaram, com a mesma intensidade, as longas ditaduras do norte da África, os governos parlamentares europeus, o turno democrata nos Estados Unidos e os governos ditos “progressistas” na América Latina. Usando a terminologia de Deleuze e Guattari, seria possível dizer que as lutas do comum se colocaram no terreno da isomorfia e da polimorfia assumidos pelos Estados como modo de realização de uma mesma axiomática capitalista mundial. Por isso, o comum não aparece aqui como uma ação coletiva e homogênea que assume uma mesma forma geral apesar das diferenças substantivas (a velha tradição do “frentismo”), mas como uma articulação entre diferenças irredutíveis (singularidades) que tecem um plano de composição comum pela lógica informe do contágio e da metamorfose. O que fez tremer os poderes constituídos foi exatamente essa radical recusa dos códigos e das formas tradicionais do fazer-político, daí o pavor e o desejo de restauração que se manifestaram à direita e à esquerda.

IHU On-Line – Qual a importância do conceito de Comum para pensar na chamada crise da representatividade?

Alexandre Mendes – Para começar, podemos invocar a ideia geral suscitada pelo filósofo Antonio Negri no livro O poder constituinte de que a representação é sempre uma corrupção da democracia. Assim, a criação de mecanismos políticos que possam servir para reverter a permanente expropriação institucional realizada nos Estados polimorfos contemporâneos se revela como um ponto central de enfrentamento e, ao mesmo tempo, um permanente enigma.

Nesse sentido, o ciclo da Primavera Árabe pode ser visto como uma intrusão selvagem desse problema e, por isso, revelou um fio de semelhança entre ditaduras, governos técnicos e governos “progressistas”, os últimos alavancados por um neodesenvolvimentismo cuja imagem recorrente é a do “rolo compressor”. Em todos os casos, tratou-se de criar uma turbulência bastante potente através da qual a decisão pudesse escapar dos círculos redundantes do poder. O caso brasileiro merece dois apontamentos.

Em primeiro lugar, Junho de 2013 revelou o esgotamento das experiências participativas que tinham sido um dos motes do ciclo anterior, sob os holofotes dos orçamentos participativos, das chamadas “prefeituras populares” e do Fórum Social Mundial. Uma mensagem do Movimento Passe Livre (SP) é reveladora, merecendo transcrição: “É assim, na ação direta da população sobre sua vida – e não a portas fechadas, nos conselhos municipais engenhosamente instituídos pelas prefeituras ou em qualquer uma das outras artimanhas institucionais –, que se dá a verdadeira gestão popular”. A descrição dos conselhos como uma “artimanha institucional” revela um fenômeno que já estava sendo diagnosticado em uma série de estudos sobre a dinâmica da participação brasileira. Da fase dita apologética, quando a participação institucional era vista como um antídoto contra a representação, passou-se para uma fase bem mais realista, na qual a participação foi considerada como uma forma de prolongamento da representação política.

Isso significa dizer que as instâncias são atravessadas pela lógica partidária, pelos ciclos eleitorais, pela barganha política e por uma subordinação fortíssima ao próprio poder Executivo. Além do mais, a própria escolha do que será considerado “sociedade civil” é realizada através do crivo representativo, privilegiando, em muitos casos, recortes já domesticados da dinâmica social. O outro ponto que não aparece nessas análises, muitas vezes reduzidas a um caso empírico específico, são os efeitos das políticas neodesenvolvimentistas e da realização dos megaeventos no terreno da participação. Está cada vez mais clara a política de retroalimentação existente entre a oligarquia política brasileira, a formação das chamadas empresas “campeãs nacionais” e a realização de uma série de projetos e de grandes intervenções públicas forjados nos gabinetes e empurrados violentamente contra a população.

Por isso, por mais que os governos Lula e Dilma (em menor parte) tenham sido responsáveis por uma ampliação considerável da dinâmica formal da participação institucional, essa pequena brecha foi devorada pela lógica dos grandes projetos pré-fabricados, das grandes máquinas eleitorais, da subordinação dos tradicionais movimentos sociais e do não reconhecimento do desejo de participação introduzido por Junho de 2013.

IHU On-Line – Como, então, repensar uma nova dinâmica da participação que não seja abortada pela lógica da representação?

Alexandre Mendes – Considero que, neste ponto, é vantajoso comparar as experiências cruzadas entre as promessas municipalistas brasileiras e espanholas da década de 1980-90 e os novos problemas colocados pela aposta em um novo municipalismo, que irrompeu com força em várias capitais do país ibérico e, no Brasil, continua ainda bloqueado pela lógica farsesca da representação em crise. A primeira observação é que o problema colocado pelo novo municipalismo é imenso: como investir no terreno vertical das instituições existentes e das disputas eleitorais, sem abrir mão da dimensão transversal, cooperativa e horizontal dos movimentos constituintes? Como inundar a caduca institucionalidade das democracias representativas ocidentais com novas instituições do comum que possam corresponder às formas de vida e de interação que já são praticadas nas cidades e metrópoles?

Do ponto de vista programático, plataformas como o Barcelona em Comum identificaram claramente que a lógica do “municipalismo de transição” que seria a marca do regime constitucional espanhol de 1978 (algo muito parecido com o municipalismo constitucional brasileiro) estava esgotada e demandava uma nova ruptura. O esforço consistiu, então, em recolocar o problema municipalista e lançar as bases de um “municipalismo do comum”, conduzido pelas mareas de várias cores que saíram na rua por uma gestão comum da saúde, da educação, do conhecimento, da água, dos bancos, dos serviços sociais e urbanos etc.

No que se refere à participação social, a proposta é não apenas reorganizar os confusos e ineficazes conselhos temáticos e territoriais, mas garantir que os bairros desenvolvam, de forma transversal, experiências de autogestão e coprodução do urbano que serão consideradas vinculantes para a administração municipal. As propostas de radicalização democrática também contam com a adoção de uma renda mínima garantida para todos, a eliminação da precarização, a valorização da “economia do cuidado”, além da auditoria da dívida e a formação de bancos geridos democraticamente.

Operação fundamental

Sem entrar no debate de como essas propostas estão sendo efetivadas ou frustradas no caso espanhol, acredito que deslocar o campo da participação por delegação, sempre atropelado e esvaziado pelos “tratores” da representação, para o terreno imediato das mobilizações do comum que atravessam dos mais diversos setores é uma operação fundamental. Trata-se de difundir os laboratórios produzidos nas praças para cada área ligada ao governo da vida social e urbana. Se existe um sentido em discutir políticas do comum seria exatamente este: reconhecer e valorizar o campo direto da produtividade social e produzir rotações que escapem, ao mesmo tempo, das capturas estatais-burocráticas e dos circuitos de valorização do mercado.

IHU On-Line – Quais os bloqueios que poderiam ser identificados para uma nova experiência municipalista brasileira? 

Alexandre Mendes – Poderíamos escolher dois pontos para responder a essa pergunta. Em primeiro lugar, o campo de inovação político-social brasileiro está completamente bloqueado pela incapacidade de restabelecermos as mínimas condições para uma ação criativa e autônoma com relação à dinâmica dos poderes constituídos. A lógica da guerra de narrativas se impôs e com ela uma mortificação de todas as possibilidades de se estabelecer um verdadeiro conjunto de problemas reais que sejam articulados transversalmente. O esvaziamento do campo de mobilização é respondido com um fechamento cada vez mais acirrado da oligarquia política (liderada por PTPMDBPSDB e DEM) em torno de si mesma, com propostas de reforma política que dificultam ainda mais o surgimento de plataformas transversais e autônomas. Esse acirramento atinge não só as iniciativas que poderiam ser consideradas à esquerda (as plataformas municipalistas inspiradas no caso espanhol, por exemplo), mas também aquelas que buscam renovar o liberalismo por meio de novas formas de intervenção no campo político (o Partido Novo, na outra ponta). Em ambos os casos, fica visível que qualquer tentativa de tecer uma nova paisagem política passa antes pelo enfrentamento do violento e autocentrado sistema político brasileiro.

No domínio considerado à esquerda, o bloqueio é profundo. Não bastasse a total impossibilidade de se pensar uma nova forma partido (o caso espanhol adotado como nova roupagem para velhas práticas) e a completa falta de imaginação com relação a uma nova geração de políticas públicas (a discussão continua cinicamente voltada para uma defesa de “mais estado” contra “mais mercado”), toda a riqueza de práticas e pensamentos produzidos nos últimos anos para sair dessa miséria foi moída no liquidificador das campanhas falsas (o “Não vai ter golpe” como caso exemplar) e de um nostálgico frentismo de esquerda gerido pelo medo e por um estética caricatural, fulminando as multiplicidades possíveis.

Urbanismo crítico

No campo do urbanismo crítico, e este é o segundo ponto que gostaria de analisar, a crise de imaginação já era enunciada por uma série de sintomas. Ainda presos no ideário nacional-desenvolvimentista, buscando pactos redistributivos via planejamento centralizado, boa parte dos urbanistas do nosso “municipalismo de transição” não conseguem olhar para as novas práticas de produção do comum e para as novas formas de organização política que surgiram nas redes e nas ruas. Nem ao menos o conceito latino-americano de bem-viver penetra nas análises para buscar formas radicalmente alternativas de desenvolvimento urbano. A nostalgia de uma regulação estatal-socialista para o “caos” capitalista nos coloca ainda mais profundamente no impasse. A ineficácia dos instrumentos urbanísticos antes apresentados como aptos a promover as transformações urbanas necessárias não é fruto apenas da “correlação de forças”, mas da própria análise de quais seriam as forças (do comum) existentes voltadas para a radicalização democrática.

Um novo municipalismo

A meu ver, o deslocamento do municipalismo de transição constitucional para um novo municipalismo baseado na constituição do comum pressupõe pelo menos três inflexões: (a) pensar o comum para além da função social da propriedade, caminhando da regulação pública-estatal para a auto-organização do espaços, recursos e serviços sociais e urbanos; (b) pensar a participação social como coprodução e ocupação do urbano, para além do ideário cívico/deliberativo e da delegação e representação nas instâncias participativas. Reconstruir a experiência da participação a partir das novas práticas de encontro, contágio e organização da decisão; (c) pensar as lutas da cidade/metrópole e as novas plataformas de mobilização, transversais e em rede, para além da forma-movimento e da forma-partido tradicionais.

IHU On-Line – Hoje, em meio à crise política e institucional que o Brasil vive, fala-se em silêncio das ruas. O senhor concorda com essa ideia de silêncio? Como compreendê-lo?

Alexandre Mendes – Junho de 2013 pode ser considerado um forte grito polifônico. Ele produziu uma espécie de viração nos discursos tradicionais, nos sujeitos de enunciação que dominavam esses discursos, nas formas institucionais a que estávamos acostumados, nas maneiras de ocupar as ruas e, principalmente, permitiu uma outra visão coletiva sobre o intolerável. É impossível querer voltar atrás. No entanto, são perceptíveis as estratégias concebidas e anônimas de tentar conformar novamente esse grito aberrante nas formas tradicionais que organizam o pensamento, a fala e até os corpos. Uma gestão pelo medo, pela paranoia, pela interiorização subjetiva, pela desesperança, pela disputa entre narrativas reciprocamente falsas foi parcialmente bem-sucedida em produzir um grande silêncio nos elementos de polifonia que marcaram Junho de 2013.

Contudo, existe um silêncio que é ruidoso, uma espécie de grito silencioso, uma vibração sonora contínua que não se atualiza em um vozerio audível ou distinguível. Que a oligarquia política brasileira não se engane. Nunca se falou tanto em política como agora, por mais que os caminhos estejam turvos, nunca se desejou tão fortemente uma transformação profunda, nunca ficou tão claro que precisamos mudar radicalmente a forma como estamos vivendo e todas as instituições que foram criadas sob o pretexto de “organizar” a vida social. Por isso, pensar o comum hoje significa escapar permanentemente das narrativas prontas e confortáveis e enfrentar uma problema anterior ao tradicional “o que fazer?”.

Trata-se, como dizia Deleuze em sua discussão com Antonio Negri, de não pressupor que as condições da ação estão claras e que seria possível encontrar facilmente os sujeitos que estariam em disputa. Trata-se de produzir as condições para que possamos ouvir o inaudível e de criar mecanismos que possam seguir os traços de Junho (um forte desejo de transformação e autonomia coletiva) no seu enfrentamento ao intolerável.

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