Jogar água fria em morador de rua não pode virar política pública, por Jacques Távora Alfonsin

No Sul 21

Ouvido por órgãos de comunicação sobre o fato de moradores de rua terem sido vítimas de jatos de água fria lançados contra eles na praça da Sé em São Paulo,  na madrugada de 19 deste julho, o prefeito João Doria qualificou a ação como “descuidada”, esclarecendo que “o secretário das prefeituras regionais, Bruno Covas, foi alertado para que os trabalhos de limpeza sejam feitos com mais cuidado”, conforme se lê no site 247.

A agressão foi feita por empregados de uma empresa contratada pelo Município para prestar serviço de limpeza em espaços públicos da cidade. Estando, pois, a serviço de São Paulo, não é de estranhar-se o interesse da mídia em ouvir o prefeito.

Uma ação descuidada, com o agravante de ter sido praticada em manhã fria, molhando, constrangendo, incomodando, humilhando pessoas pobres e miseráveis, sem outro lugar para dormir que não uma praça, não pode ter a identificação dos responsáveis pela sua prática reduzida a uma desculpa chinfrim como a de um descuido.

Em prestação de serviço devido ao povo pela administração pública, ação descuidada equivale a negligência, imprudência e, quem sabe, até imperícia, justamente três formas de responsabilidade não excludente de imputação civil e penal por quem o presta. Se um dos deveres do Poder Público é o da eficiência, como determina a Constituição Federal, um serviço público deficiente tem de ser responsabilizado por isso.

Oferecer cobertores depois, às vítimas desse “descuido”, como   providenciará o Município, segundo notícia de outras fontes, constitui reparação notoriamente insuficiente, um esparadrapo de emergência numa ferida inflamada há muito tempo não só em São Paulo, como em várias outras capitais do país.

O/a morador/a de rua, além do desprezo, por vezes até do nojo que provoca em outras pessoas, não é considerada/o nem tratado como cidadã/o. Suas urgências não merecem a atenção devida a qualquer pessoa e isso, com muito maior razão, é inaceitável quando parte do próprio Poder Público.

Bem denunciou o Padre Julio Lancellotti, da Pastoral do Povo da rua, Arquidiocese de São Paulo, em entrevista gravada para a Rádio Brasil Atual, num áudio que já circula pela internet, a responsabilidade do Município de São Paulo pelo que aconteceu: em vez de o prefeito se preocupar em doar cobertores às/aos moradoras/es de rua, deveria ordenar que não lhes subtraíssem até os pobres pertences com que se cobrem e abrigam. Era certamente a lembrança de uma acusação feita por ele em maio passado, ao que acontece com os colchões, as cobertas, as roupas e utensílios de cozinha e até com as carroças que essas/es moradoras/es de rua recebem em doação e são levadas para lugar ignorado como coisa de ninguém.

À sina dessa gente pobre isso ficou conhecido como “rapa”, uma operação que, dependendo do local onde ela consegue firmar o pé e deitar o corpo, perde tudo, bastando considerar-se como um local onde alguma autoridade com poder para tanto, entenda incômodo para a vizinhança ou para a vista das outras pessoas que não são vítimas da mesma necessidade…

Padre Julio concedeu essa entrevista logo depois da celebração de uma missa em memória de outro morador de rua falecido. Sua indignação, porém, inclusive fortemente crítica das ações da Polícia militar de São Paulo, a quem chamou de “esquadrão da morte” contra esse povo pobre, revela uma diferença notável com a postura das autoridades responsáveis pela solução de problemas dessa gravidade.

O escândalo que as agressões sofridas pelas/os moradoras/es de rua  provoca na sociedade e nos órgãos públicos não dura muito e os seus efeitos, as providências prometidas para impedir a sua repetição, quase sempre ficam prorrogadas por prazo indeterminado, quase nenhuma pressão em sentido contrário obtendo força para se fazer valer. O drama delas/es não é coisa de agora nem a sua frequência tem conseguido resposta e solução adequadas.

Pedro Demo, autor da obra “Pobreza da pobreza” (Petrópolis, Vozes, 2003), salienta, com rigorosa fidelidade às condições reais de vida dessa população, as causas segundo as quais ela mal sobre-vive, e a manifesta insuficiência das medidas tendentes a eliminar essa injustiça:

“Ser pobre não é apenas não ter, mas sobretudo ser impedido de ter e sobretudo de ser, o que desvela situação de exclusão injusta. O cerne da pobreza é o massacre da dignidade humana, observado mais fácil ou imediatamente através de indicadores quantitativos, que escondem, por trás, problemática muito mais complexa e profunda. Por isso, política social não pode reduzir-se à distribuição de benefícios geralmente muito residuais, porque passa  ao largo do problema mais duro que é a condição de massa de manobra do pobre. Bem olhando, as políticas sociais compensatórias tendem, em particular no capitalismo periférico, a alimentar o problema, a medida que servem apenas para “amansar” o pobre, conservando-o a margem do acesso aos seus direitos.” (pág. 38)

O cobertor que o prefeito João Doria ofereceu às/aos moradoras/es de rua certamente vai servir para, quem sabe, “amansar” em parte, a revolta que sentem pela água fria vinda da mesma fonte. Enquanto o direito de não sentir frio, todavia, continuar dependente de um presente desses, sendo-lhes negado por uma política econômica excludente, opressora e irresponsável como a nossa, a coberta prosseguirá insuficiente para mitigar a dor da água fria.

*Jacques Távora Alfonsin é Procurador do Estado aposentado, Mestre em Direito pela Unisinos, advogado e assessor jurídico de movimentos populares.

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