Histórias de vida e morte de mulheres negras: uma reflexão Sankofa

Por Amarílis Costa, no Justificando

Antes de tratar especificamente do tema proposto escolhi explicar exatamente o que me trouxe aqui.

Na verdade, muitas pessoas me conduziram até este lugar. Uma ancestralidade forte, brincadeiras e risadas da infância, o afeto de minha família, o suor das testas de minhas avós.

Pesquisar a história de vida e morte de mulheres negras é reescrever a história de nossas avós, mães, tias e irmãs.

A palavra Sankofa1 tem uma conotação simbólica.

Sankofa significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”.

Em outras palavras, volte para as raízes e construa sobre elas para o desenvolvimento, o progresso e a prosperidade de sua comunidade em todos os aspectos da realização humana. Através deste texto, pratico Sankofa.

Durante muito tempo não soube explicar exatamente quais as razões que me levaram a investigar mortes e as histórias de racismo institucional vivenciado por mulheres negras em ambientes hospitalares.

Muito recentemente compreendi que a história dessas mulheres é a minha história.

Seja pelo falecimento de minha avó em um hospital público logo após ter sido medicada com um remédio que não deveria ter sido aplicado naquele momento do tratamento de emergência; seja pelas lacunas inexplicáveis existentes na história do nascimento de minha irmã caçula que até hoje carrega sequelas daquele evento. Ela nasceu no mesmo hospital em que minha avó começou a morrer, onde ambas foram marcadas pela violência estrutural e falhas médicas.

Essas situações experimentadas por minha família, muito provavelmente ficaram gravadas em mim. Busquei abordar o tema e compreender de modo mais específico a origem e como que essas opressões são convertidas em verdadeiras políticas de extermínio.

As histórias de mulheres negras têm páginas repletas de passagens repetidas, a estrutura de opressão e sofrimento que o sistema impõe faz com que exista uma espécie de “ctrl+c e ctrl+v“ em nossas trajetórias.

Abordar o tema através desse viés pode fazer parecer que nenhuma de nós tenha motivo para sorrir ou qualquer feito de que possamos nos orgulhar. Essa interpretação seria absolutamente equivocada. O movimento de Mulheres Negras do Brasil reivindica há muito tempo o Bem Viver. Trata-se de uma forma de ser, estar e permanecermos vivas sem sofrer as violências a que somos submetidas. No mês de julho, milhares de nós marcharam pelo país reivindicando o Direito de Bem Viver.

Comumente, as desigualdades sociais experimentadas pela população negra são o motivo de nossas mortes. Este genocídio está entranhando na história do país e constitui a chaga mais profunda de nossa sociedade.

O caso Alyne Pimentel é um daqueles casos que demonstram como diversas opressões e as múltiplas faces da violência de gênero se cruzam. Justamente a ideia de análise que propõe o feminismo negro interseccional. A história de Alyne foi marcada por violações de Direito gravíssimas que foram cometidas em razão de sua raça, cor e gênero. O ciclo de violações de Direito experimentado por mulheres negras é demasiadamente singular e assustadoramente cruel.

As pesquisas que abarcam a temática das desigualdades em saúde no Brasil têm revelado que as mulheres de pele negra, quando comparadas às de pele branca, apresentam múltiplas desvantagens sociais, principalmente, no que tange ao acesso e utilização dos serviços de saúde.

Esse quadro de desigualdade entre pessoas negras e brancas está relacionado tanto a fatores estruturais – como escolaridade e renda – quanto à discriminação racial que por vezes é uma prática institucional.

Em 2008 o Brasil foi representado e condenado perante o Comitê CEDAW pelo cometimento de diversas violações ao direito humano à saúde da mulher em razão da morte de Alyne Pimentel, brasileira que veio a óbito por conta de complicações no parto.

Alyne da Silva Pimentel Teixeira tinha 28 anos, era negra, de classe socioeconômica baixa, mãe de uma menina de 5 anos e estava grávida de 6 meses (27 semanas de gestação).

Em 11 de novembro de 2002, sentindo náusea e dores abdominais, Alyne Pimentel procurou uma unidade de saúde do Sistema Único de Saúde, foi atendida por um médico ginecologista, não foram feitos quaisquer exames laboratoriais ou de ultrassonografia. Foi mandada de volta para casa, mesmo apresentando fortes dores. Alyne procurou novamente a Casa de Saúde, pois as dores abdominais haviam aumentado muito. Foi atestada a morte fetal.

Em que pese a grande urgência da situação, pois já era sabido que o feto estava morto há, no mínimo, 5 horas dentro do corpo da paciente, os procedimentos de indução ao parto só tiveram início horas depois. O parto normal induzido não foi bem sucedido, uma cirurgia de curetagem foi realizada, não antes que transcorressem 14 horas da realização do parto. Alyne Pimentel não pode receber visita de qualquer familiar.

Reconhecendo a incapacidade de lidar com o caso, a equipe médica da Casa de Saúde procurou outros hospitais que pudessem receber a paciente. Após oito horas foi transferida para o hospital, sendo que nas últimas duas horas de espera a paciente já apresentava sintomas de coma. Ao chegar ao hospital, foi tratada em uma maca colocada no corredor da emergência, pois não havia leito disponível.

A Casa de Saúde não enviou os registros médicos da paciente relativos ao período em que ela foi atendida na unidade hospitalar. No lugar dos registros foi feito um breve relatório oral que omitiu que a paciente havia estado grávida.

Ainda sem o registro médico que informasse a condição prévia da paciente, a equipe do Hospital pediu à mãe de Alyne Pimentel que fosse até a Casa de Saúde e trouxesse o prontuário médico. A Casa de Saúde, por sua vez, a mandou esperar. Mas Alyne já havia esperado demais, não resistiu e faleceu, deixando órfã uma filha de 5 anos.

Ao todo, Alyne Pimentel aguardou aproximadamente 21 horas para receber cuidados médicos que deveriam ser imediatos.

A autópsia determinou como causa da morte hemorragia digestiva. Sabe-se que Alyne morreu em decorrência do parto mal sucedido e dos vários erros médicos, caracterizando uma morte materna, termo que deveria constar em seu atestado de óbito.

Alyne da Silva Pimentel Teixeira era uma mulher negra e pobre que morreu em decorrência de falta de atendimento médico adequado e condizente com sua condição específica de mulher. Outra mulher negra, também diretamente atingida por esta tragédia, a Sra. Maria de Lourdes da Silva Pimentel, mãe de Alyne, buscou ajuda junto a organizações de direitos humanos com o intuito de fazer justiça em face das violações sofridas por sua filha. Seu ímpeto possibilitou a condenação do Brasil e a realização de diversas reparações coletivas por parte do Estado.

O caso mencionado é emblemático, pois denota a existência de fatores de racismo estrutural e de racismo institucional além da ocorrência de violência obstétrica. É necessário afastar o debate das práticas de racismo institucional do campo hipotético, pois isso é dura realidade da maior parte das mulheres negras do país.

Todos os dias, mulheres negras são impedidas de obter acesso a direitos e garantias estritamente em razão dos fatores como classe, raça e gênero. É preciso refletir seriamente acerca dessas questões.

Amarílis Costa é Advogada, Mestranda em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades na USP, coordenadora de curso no Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBBCRIM).

[1] Visualmente, o conceito – originário dos povos Akan (Gana, Togo e Costa do Marfim) – é expresso pelo símbolo Adinkra de um pássaro mítico que voa para frente enquanto olha para trás.

Foto: Daniel Ferreira /Metrópoles

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