O ciclo progressista na América Latina acabou? Entrevista especial com Julio Gambina

Patricia Fachin – IHU On-Line

Apesar das críticas recentes aos governos progressistas que governaram alguns países da América Latina na última década, ainda “é prematuro falar de fim de um ciclo”, diz o sociólogo argentino Julio Gambina à IHU On-Line. Na avaliação dele, “o que há e continua a ocorrer é uma disputa entre a ofensiva capitalista, o neoliberalismo, e diversos processos críticos com a pretensão mais ou menos decidida de organizar outra ordem socioeconômica”, porque “as classes dominantes locais e mundiais pretendem reinstalar em ‘nossa América’ a agenda da liberalização como forma de superação da crise capitalista, emergente desde 2007/2008”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gambina avalia rapidamente as políticas dos governos brasileiro, boliviano e equatoriano, os quais “não necessariamente” são “comparáveis”, diz. “Uma coisa é a experiência da Bolívia e o caso do Tipnis, que habilita o governo boliviano a avançar na construção da rota que já foi projetada e que está atrasada por decisão oficial. Outro caso é o do Equador, especificamente na relação entre governo e as comunidades indígenas relacionadas ao Yasuní”. No caso do Brasil, assevera, “nunca se propôs a mudar de rumo econômico, além de ter designado Lula e Dilma como representantes do grande capital à frente da política econômica”. Sobre o “desafio mundial da esquerda”, adverte, “as dificuldades se encontram na definição de políticas para um novo modelo de produção e de desenvolvimento que seja anticapitalista e anti-imperialista”, e “o principal é pensar o poder a partir dos trabalhadores e do povo, não a partir dos governos”.

Julio Gambina é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. Atualmente é professor na Universidad Nacional de Rosario – UNR, presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas e diretor do Centro de Estudos e Formação da Federação Judicial da Argentina.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Parece haver um consenso entre os analistas de que houve um ciclo de governos progressistas na América Latina, e que este ciclo terminou. Você concorda com essa análise? A que atribui o fim deste ciclo? Se o ciclo acabou, é possível vislumbrar o que está surgindo em seu lugar?

Julio Gambina – O que há é a luta de classes, que, fundamentada nas manifestações populares dos anos 1980 e 1990, permitiu processos de mudança política na América do Sul e, juntamente a outros processos na América CentralNicarágua e El Salvador, habilitou novos fenômenos econômicos e sociais para pensar alternativamente a organização econômica da sociedade. Entre eles, uma nova integração regional que, junto a Cuba e Venezuela, gerou esperanças de uma organização não capitalista da economia.

Junto a esses fenômenos nos anos 1980 e 1990, surgiram governos com discursos críticos às políticas e hegemonias, como os casos do BrasilUruguai e Argentina, países que fortaleceram o processo de mudança antes descrito. Nem os golpes de Honduras, Paraguai ou Brasil, e a mudança de governo na Argentina, em 2015, encerraram as experiências na Bolívia, na Venezuela e em Cuba, assim como as experiências de outros associados como o Equador, a Nicarágua ou El Salvador. Por isso é prematuro falar de fim de um ciclo. O que há e continua a ocorrer é uma disputa entre a ofensiva capitalista, o neoliberalismo, e diversos processos críticos com a pretensão mais ou menos decidida de organizar outra ordem socioeconômica.

As classes dominantes locais e mundiais pretendem reinstalar em “nossa América” a agenda da liberalização como forma de superação da crise capitalista, emergente desde 2007/2008.

IHU On-Line – Mas os governos progressistas da América Latina receberam muitas críticas pela adoção de políticas neoliberais. Qual é a sua leitura sobre esses governos, especialmente os de Bolívia, Colômbia e Peru? Será que eles, de fato, adotaram políticas neoliberais? Quais foram os acertos e os erros desses governos, ou as suas principais inflexões?

Julio Gambina – BolíviaColômbia e Peru não são comparáveis. O governo da Bolívia se autodefine como em “processo de mudança” em relação ao anterior governo neoliberal, que permaneceu de 1985 a 2006, e em mais de uma década da presidência de Evo Morales (2006-2017) são importantes as mudanças de política econômica para modificar a situação do país; destaca-se, em primeiro lugar, a nacionalização dos hidrocarbonetos para a acumulação do setor estatal e a distribuição progressiva destes impostos, sendo esses os principais acertos. Entre os limites, pode-se encontrar a insuficiência no estímulo a uma industrialização que não seja dependente e as dificuldades do lento avanço da integração alternativa. Destacam-se as suas formulações em prol do bem-estar social e o socialismo comunitário.

Nem a Colômbia nem o Peru se propuseram a criticar as políticas neoliberais e o desenvolvimento capitalista, tendo sido conspícuos defensores do modelo pela liberalização e o afiançamento do capitalismo subordinado à lógica das transnacionais e aos principais estados da ordem mundial, especialmente os EUA.

IHU On-Line – O governo da Bolívia foi criticado por suas políticas em relação ao Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Secure – Tipnis, assim como o governo do Equador foi criticado por causa da exploração de petróleo no Parque Nacional Yasuní, e os governos de Dilma e Lula no Brasil foram criticados por causa da construção de usinas hidrelétricas em áreas de comunidades indígenas. Diante desse cenário, você diria que a esquerda tem dificuldades em lidar com as questões ambientais que envolvem povos originários? Por quê?

Julio Gambina – Todos são casos muito diferentes e não necessariamente comparáveis. Uma coisa é a experiência da Bolívia e o caso do Tipnis, que habilita o governo boliviano a avançar na construção da rota que já foi projetada e que está atrasada por decisão oficial. Outro caso é o do Equador, especificamente na relação entre governo e as comunidades indígenas relacionadas ao Yasuní.

Tanto Bolívia quanto Equador são países com grande parte de população indígena e que se propuseram a fazer alterações na Constituição para defender os direitos da natureza associadas a formulações relacionadas à tradição indígena do Bem Viver, ou do Bom Viver. Muito diferente é o caso do Brasil, que nunca se propôs a mudar de rumo econômico, além de ter designado Lula e Dilma como representantes do grande capital à frente da política econômica.

As dificuldades se encontram na definição de políticas para um novo modelo de produção e de desenvolvimento que seja anticapitalista e anti-imperialista, ou seja, o desafio mundial da esquerda.

IHU On-Line – Qual é a sua análise do atual governo de Macri? Quais são as suas principais orientações políticas e em quais aspectos esta gestão difere do governo anterior?

Julio Gambina – É um governo com um claro perfil de direita, de subordinação à lógica mundial do capital, que pretende subordinar a lógica da acumulação local à ofensiva mundial do capitalismo. Sua orientação é contra os direitos sociais e sindicais dos trabalhadores, a reforma trabalhista e previdenciária, e se diferencia do governo anterior, especialmente em nível internacional, na orientação subordinada à lógica da liberalização. Por isso a Argentina promoverá a reunião da OMC, em dezembro, e do G20, em novembro de 2018.

IHU On-Line – Diante de uma série de críticas à esquerda, especialmente no Brasil e em alguns países da América Latina, como o pensamento da esquerda deveria ser retomado ou renovado? Neste sentido, que contribuições a esquerda pode oferecer nas áreas social, econômica e de desenvolvimento na América do Sul e na América Latina?

Julio Gambina – O principal é pensar o poder a partir dos trabalhadores e do povo, não a partir dos governos. As mudanças devem ser associadas às mutações das relações sociais de produção. É preciso produzir para satisfazer necessidades e não para o mercado. O programa é o da soberania alimentícia, energética e financeira para mudar o modelo produtivo e de desenvolvimento que estão subordinados à lógica do capital.

IHU On-Line – Particularmente no Brasil muitos analistas avaliam que a esquerda está completamente distante da realidade. Você também tem essa percepção? Quais são os impasses e os desafios da esquerda latino-americana hoje?

Julio Gambina – Não há perspectiva dentro do capitalismo. Necessita-se construir as condições subjetivas para uma luta anticapitalista e uma nova sociedade. O principal é o poder popular.

IHU On-Line – É possível pensar em um tipo de civilização que não seja regida pelos parâmetros nascidos dos processos de financeirização? Quais seriam as principais consequências desse processo, na sua opinião? Dentro do sistema capitalista atual, qual seria a rota de fuga da financeirização, hoje?

Julio Gambina – O capitalismo, hoje, funciona assim. Não há contradição entre a produção e a circulação financeira, mas esta é a forma atual de funcionamento do capitalismo. Só é possível criticar o capitalismo para tentar construir o anticapitalismo. Não há fuga, mas luta contra o capitalismo.

IHU On-Line – Entre as propostas para resolver os problemas sociais decorrentes das mudanças no mercado de trabalho, especialmente após a Revolução 4.0, alguns economistas e sociólogos propuseram discutir uma renda básica universal. Como você enxerga esse tipo de proposta?

Julio Gambina – É um paliativo adequado, mas é necessário ir contra a exploração capitalista da força de trabalho.

IHU On-Line – No Brasil há uma crítica de que os governos de esquerda “absorveram em sua estrutura” os movimentos sociais, os sindicatos e, neste sentido, uma parte dos intelectuais brasileiros, e ao invés de analisar a realidade social de maneira crítica, segundo a perspectiva da Sociologia Clássica, assumiu a perspectiva de que era necessário atuar junto aos partidos. Além das consequências sociais desse fenômeno, você diria que isto gerou consequências inclusive no modo de fazer Sociologia nos últimos anos?

Julio Gambina – O capitalismo disputa o consenso ideológico através dos meios de comunicação e pela subordinação de profissionais e acadêmicos para reproduzir a lógica de dominação. As classes subalternas necessitam de uma intelectualidade própria que sistematize as práticas alternativas do movimento popular para avançar em processos de emancipação.

IHU On-Line – Você já declarou que é necessário reler O Capital, de Marx. Por que e de que maneira esta obra pode oferecer respostas aos problemas dos dias atuais?

Julio Gambina – Há 150 anos da publicação do primeiro volume de O Capital, de Karl Marx, sua leitura e estudo segue sendo imprescindível, já que o teórico revolucionário sistematizou pela primeira vez a origem do excedente econômico e a sua apropriação por parte da burguesia. Assim, ele definiu a exploração capitalista e a lógica de acumulação e dominação da classe proprietária dos meios de produção sobre os trabalhadores e trabalhadoras, com absoluta validade no presente.

Toda a teoria econômica precedente e posterior a Marx, clássica e neoclássica, ignorou a espinhosa questão da origem do excedente. Assim se reitera a vulgaridade da fórmula trinitária, mediante a qual os proprietários da terra têm direito a receber a renda, os envolvidos no capital têm direito a receber os lucros, e os trabalhadores, o salário. Com isso se omite o caráter da exploração de trabalhadores e trabalhadoras sobre a base de compra da força de trabalho realizada pela classe capitalista.

A mais valia é a categoria essencial do Volume I de O Capital, sustentada no desenvolvimento da teoria do valor. Com a mais valia, compreende-se a razão do modo de vida burguês, a acumulação e valorização de capitais, como a reprodução da dominação capitalista. Assim, é revelado o mistério cotidiano de um modo de vida que naturaliza a exploração e distancia todo o pensamento acerca de formas diferenciadas de organização econômica da sociedade.

Os economistas clássicos e suas fontes esboçaram a teoria do valor de trabalho sem elucidar a exploração. Com Marx é exposto precisamente que os trabalhadores vendem sua força de trabalho e não o seu “trabalho”, o que permite descobrir o tempo de trabalho necessário e o trabalho excedente. Este último é apropriado em seu benefício pela classe capitalista como um todo.

É uma questão válida no presente e ratifica a necessidade da continuidade da Crítica da Economia Política. A economia política foi e é apologética da ordem burguesa, enquanto a crítica permite a condição de possibilidade sobre outras formas de organização econômica da sociedade.

Marx, em O Capital, explica o processo de produção capitalista no Volume I, o processo de circulação no Volume II e a produção e circulação em conjunto no Volume III. A base explicativa é a expansão do mercado capitalista e o fetiche da mercadoria e do dinheiro, exacerbada em nossos dias com a extensão global do mercado capitalista e os usos do dinheiro. Com Marx associamos riqueza com o acúmulo de mercadorias (bens e serviços) e a produção destes como bens de troca baseados na utilidade (bens de uso), o que permite discutir a possibilidade de uma produção de bens de uso para satisfazer as necessidades muito além do intercâmbio capitalista.

Marx também descreve a transformação do dinheiro em capital a partir da decomposição do investimento em capital constante e variável, resolvendo a incógnita da origem das receitas e lucros das classes proprietárias.

teoria do valor e a da mais valia, desde o surgimento de O Capital, elimina o segredo do excedente e fundamenta a possibilidade de organizar a sociedade além e contra a ordem capitalista. Isso ainda é uma temática pendente na trajetória de tentativas revolucionárias, desde a Comuna de Paris, em 1871, ou a Revolução de 1917, na Rússia.

A origem, o presente e o destino do capitalismo

O enfoque teórico da Acumulação Originária, no Volume I de O Capital, permite encontrar pistas históricas e sociais, mas não naturais, sobre a origem do capitalismo.

Enquanto Marx refere-se à realidade europeia e, mais especificamente, à realidade britânica, a desapropriação é o que permite definir o “trabalhador livre” de seus pertences, seja a terra ou as suas ferramentas, como base social imprescindível e precondição necessária para o investimento capitalista. O investimento dos proprietários de dinheiro tem fim na produção de mercadorias e de capitais, bem como na reprodução da lógica capitalista.

Por isso, pensar na origem do capitalismo em “nossa América” supõe pensar no longo processo de desapropriação colonial e as tentativas de submissão da população à necessidade dos investidores capitalistas. O genocídio indígena é uma parte necessária da posterior construção do capitalismo, conjuntamente à submissão dos sobreviventes, ou as políticas de imigração, o que fundamenta a origem do processo de formação da relação entre o capital e o trabalho em nossos territórios.

sociedade capitalista é construída sobre o genocídio e exploração, e suas atuais formas são a militarização e a criminalização da sociedade, a fome e a desnutrição, a pobreza generalizada que explica a concentração da riqueza e o crescimento do fosso da desigualdade. O capitalismo surge jorrando sangue, como sustenta Marx, e é explicado hoje a partir da expansão das relações mercantis e de exploração, aprofundando suas formas criminosas com o narcotráfico, a venda de armas ou tráfico de pessoas, dentro de um quadro de transnacionalização produtiva e financeira sustentada pela especulação, o endividamento público, a evasão e a fraude fiscal.

Toda a obra de Karl Marx foi escrita para criticar o capitalismo e fundamentar o direito dos explorados à expropriação dos exploradores, a revolução. Continua a ser uma necessidade contemporânea a perspectiva anticapitalista, anticolonial e anti-imperialista que permite ir contra o patriarcado, o racismo e todas as formas de discriminação na busca de um novo modelo de produção e desenvolvimento que atenda às várias necessidades sociais em harmonia com a Natureza.

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