Marcha racista e neonazista nos EUA deve ter animado muita gente no Brasil, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

Sabe a humanidade? Então, ela deu errado.

Centenas de racistas e neonazistas marcharam, na noite desta sexta (11), em Charlottesville, nos Estados Unidos, carregando tochas e entoando palavras de ordem contra negros, migrantes, homossexuais, judeus, como relata o repórter Ricardo Senra, pela BBC Brasil. Bradaram que ”Vidas brancas importam”, uma referência ao movimento ”Black Lives Matter”, contra a morte de negros pelas mãos do poder público. Sem pudor algum.

Considero um insulto alguém dizer que brancos são vítimas de preconceito estrutural e se compararem a negros ou outros grupos historicamente explorados, tanto aqui como lá. Aliás, quando alguém reclama de ”racismo contra brancos” na verdade está insatisfeito com a reação desses grupos contra a opressão. Ou se manifestando contra a aplicação das já tímidas políticas públicas, adotadas por pressão da sociedade civil, para reverter um quadro de injustiça social crônica.

A marcha foi lá, mas deve ter animado muita gente por aqui. No Brasil, há um genocídio de jovens pobres e negros nas periferias das grandes cidades, homossexuais são vítimas preferenciais de assassinatos e espancamentos e migrantes sofrem preconceito e são escravizados – sejam em grandes fazendas, na construção civil ou em oficinas de costura.

Há um pessoal que não se indigna diante do fato da mulher negra ganhar, em média, muito menos que o homem branco para uma mesma função. Indigna-se com quem diz que racismo existe. Não fica revoltado diante da morte de jovens pobres e negros. Revolta-se com a filha negra da empregada se sentar no mesmo banco de faculdade que eles. Não acha preconceito dar porrada no sujeito que foi acusado de roubar o próprio carro no estacionamento de um supermercado por ser negro. Para ele, preconceito são cotas.

Seria cômico se não fosse trágico o perigo representado por um grupo branco (com direitos assegurados) que se manifesta de forma organizada – e, por vezes, violenta – diante da luta de outros grupos por sua dignidade.

Lembrando que ”maioria” e ”minoria” não são uma questão numérica, mas dizem respeito ao nível de efetivação da cidadania, uma maioria reivindica a manutenção de privilégios, garantindo, dessa forma, o espaço que já é seu (conquistado por violência, a ferro e fogo).

Ir contra a programação que tivemos a vida inteira, através da família, de amigos, da escola, da mídia e até de algumas igrejas em que pastores pregam que ”africanos são amaldiçoados por Deus” é um processo longo pelo qual todos nós temos que passar. Mas necessário.

Todos nós, nascidos neste caldo social de sociedades de herança escravista, como os Estados Unido e o Brasil, somos potencialmente idiotas a menos que tenhamos sido devidamente educados para o contrário. Pois os que ofendem uma jornalista de forma tão aberta, como foi o caso da apresentadora Maria Júlia Coutinho, da TV Globo, só fazem isso por estarem à vontade com o anonimato (Hanna Arendt explica) e se sentirem respaldados por parte da sociedade.

Toda a vez que alguém trata da questão da desigualdade social e do preconceito que negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente reafirmada de um 13 de maio de 1888 que significou mais uma mudança na metodologia de exploração da força de trabalho, pois não permitiu bases para a autonomia real dos trabalhadores africanos e seus descendentes), é linchado em redes sociais.

Pois, como todos sabemos, não há racismo no Brasil. ”Isso é coisa de negro recalcado.” Ou exploração sexual de crianças e adolescentes. ”As meninas é que pedem e depois a culpa é dos homens?” O machismo? Uma mentira ”criada por feminazis para roubar nossos direitos”. E a homofobia, uma invenção ”daquela bicha do Jean Wyllys”. Não há assassinatos relacionados a questões étnicas. ”Eles é que estão no lugar errado e na hora errada, pois os ‘homens de bem’ seguem a lei e nada acontece com eles.”

”Nós devemos manter o ‘mal’ fora de nosso país!”. Em fevereiro deste ano, Donald Trump respondeu dessa forma, em sua conta no Twitter, a uma decisão do Tribunal Federal de Seattle que suspendeu temporariamente o seu decreto impedindo a entrada de pessoas de sete países de maioria islâmica.

A ideia de ”mal” usada por ele tem significados que se desdobram: A princípio representa o terrorismo de algumas organizações que ele afirma tentar evitar – apesar de nenhuma pessoa dos países barrados ter cometido atentados nos EUA. Mas ao baixar uma proibição indiscriminada a todos os cidadãos desses países, Trump os torna suspeitos simplesmente porque foram proibidos de entrar. E a percepção do que seja o ”mal” se estende, metonimicamente, aos inocentes. É a tática do linchamento: se adoto uma punição contra você é porque você fez algo errado.

Mesmo que isso esteja longe de corresponder à realidade. Mayra Cotta, pesquisadora da New School for Social Research, em Nova York, mostrou, em artigo neste blog, que 64% dos ataques com armas em espaços públicos nos Estados Unidos foram causados por homens brancos que nasceram naquele país. Homens brancos, frequentemente supremacistas brancos, que entraram armados com sua ideologia racista em jardins de infância, escolas, universidades, cinemas, igrejas, repartições e escritórios e começaram a matar as pessoas ao se redor, sem necessariamente um alvo específico.

E Trump não se refere a eles como o ”mal”. Até porque seria muito difícil explicar a seus eleitores – pelo menos os que buscam soluções fáceis para o medo que sentem – que parte da violência em seu país está ligada a desvios e questões mal resolvidas de sua própria sociedade. Como o racismo que segue sendo uma chaga aberta, tornando, mais de 150 anos após a abolição da escravidão por lá, necessária uma campanha a fim de deixar claro que ”Black Lives Matter” – vidas negras importam.

Ou as intervenções militares norte-americanas em outras sociedades que, sob a justificativa de garantir o respeito aos direitos humanos, criam montanhas de cadáveres e fluxos de refugiados para, ao final, sair com vantajosos contratos para extração de petróleo e de recursos naturais e exploração de mercados consumidores. Em maior ou menor grau, esse é o modus operandi de sucessivas administrações norte-americanas, incluindo a festejada e já saudosa gestão Obama.

O problema de Trump é que ele escancara isso sem mediações e estica a corda, ultrapassando o limite da racionalidade e atingindo pilares da democracia. E, num cálculo racional, ao eleger inimigos e tachá-los (mexicanos ladrões e estupradores, muçulmanos terroristas, chineses desleais…) e afirmar que eles estão apodrecendo a sua sociedade, transfere o problema para terceiros e enfraquece a possibilidade de reflexão sobre os problemas causados pelo país e sua elite dominante. O ”mal” é sempre o outro, o islâmico, o negro, o migrante, o homossexual, o que não se parece com a nossa elite, nunca nós mesmos.

E isso, por fim, empodera muita gente. Que sai às ruas com tochas. Cultivando ódio. Lembrando a abominável Ku Klux Klan. E, sem que o ato seja devidamente repudiado pelo governo, o monstro cresce. Sem sabermos até onde ele pode ir.

Um sentimento de vergonha alheia, muito maior do que sair pelado na rua, com purpurina dourada no corpo, com um cabrito imolado nas mãos, toma conta de mim quando vejo esse povo branco, hétero e homem dizer que se sente oprimido por negros, gays, lésbicas, transexuais, migrantes, judeus.

Nessas horas, só posso citar a sabedoria presente na mitologia cristã, uma das melhores passagens de toda a bíblia, em minha humilde opinião.

Evangelho de Lucas, capítulo 23: Pai, perdoai. Eles não sabem o que fazem.

Centenas de supremacistas brancos e neonazistas marcham em Charlottesville. Foto: Alejandro Alvarez/Reuters

 

Comments (1)

  1. O artigo é bom. Mas a persistência do autor em designar os humanos de cor preta por ´negros´ e denominar os humanos da cor branca de ´brancos´ atesta o racialismo cultural impregnado na sua forma de pensar. ´Negro´ não é sinônimo de preto.

    A palavra ´Negra´ é a designação da ´raça negra´ aquela que o racismo no século 18 diz ser a ´raça inferior´ aquela a quem se legitimava a escravidão exatamente pela subalternidade da hierarquia ´racial´. Nos EUA ou África, somos ´blacks´, e a designação ´Nigger´ é uma onfesa equivalente a dizer: você é um ´escravo por natureza´ tal como afirmava o filósofo aristotélico Juan Ginés de Sepúlveda nos debates com o Bispo de Las Casas – primeiro Bispo de Chiapas – no histórico Tribunal de Valadollid (1551-1552): para o filósofo espanhol, baseado na equivocada doutrina de Aristóteles, os nativos das Américas ou da África eram ´escravos por natureza´. ´

    Etimologicamente a palavra “negro” em grego significa nekros: “morte”, “morto”, “cadáver”. Do latim niger e nigur, negro vem a significar: sombrio, tenebroso, tempestuoso, infeliz, de mau agouro, enlutado, fúnebre, triste, maldito, infeliz, melancólico, mau, perverso, malévolo, pérfido.

    O autor tem ciência que a língua é usada para dominar, manipular, distorcer.

    Segundo o dicionário a palavra “negro” também trás em si uma origem maldita, funesta: “destino negro”, “magia negra”, “peste negra”, “fome negra”, “buraco negro”, “lista negra”, “câmbio negro”, “mercado negro”, “ovelha negra”, “humor negro”, “passado negro”, etc.

    Existem muitas palavras do radical grego nekros: “necrotério”, “necromancia”, “necropsia”, “necrose”, “necrofilia”, “necrópole, etc. Assim deve ficar mais fácil de entender o que se quer dizer com a palavra “denegrir”.

    Relacionar a palavra “negro” a uma pessoa, criança principalmente, é um erro. É acolher a lógica e reforçar o racismo. Pense nisso!

    Os humanos possuem cor da melanina na pele. E as cores são preta, branca, vermelha, amarela e marror (dos miscigenados), portanto, a designação com respeito à dignidade humana é que os pretos são pretos e os brancos são brancos. Simples!!!

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