Aurora e o muro, por Oiara Bonilla

Até a guerra é cotidiana.
Marguerite Duras

Tu que puedes, vuélvete
Me dijo el río llorando
Los cerros que tanto quieres
-me dijo-
allá te están esperando.
Atahualpa Yupanqui

Por Oiara Bonilla, na DR

Um país andino, subúrbio de capital, manhã de julho. Faz frio. A humidade é cortante. A ideia é subir um morro, até um muro. Imenso. Que divide e rasga a paisagem, atravessando vidas, montanhas, separando ricos e pobres. Não conheço o lugar. Curiosidade antropológica, sempre no limite da indiscrição, curiosidade pelo muro, pela gente, pela vida que agita o lugar. Que o lugar apaga.

O muro. Sem sombra.

Subida. Dizem que nessa época o céu é sempre cinza. Difícil enxergar vida onde céu e terra se confundem. Uma cor só, bege, cinzenta, infinita, parda, uníssona. Um morro alto. Os cerros. O deserto. Casinhas que se amontoam, algumas coloridas. Nem todas, mas a maioria. Azul, verde, amarelo, branco, vermelho. Nenhuma cor dissolve o mar de lama cinza que cobre tudo, inexoravelmente. Nem as roupas no varal, nem a chuva que nunca chega, nem as cisternas de plástico azul plantadas cá e lá.

O cachorro magro. A lama.

A morte. Como será a vida aqui? Sem água. Sem luz. Sem árvore. Sem pássaro. Apenas um único tom de cinza cobrindo tudo. O ar, a terra, o céu, os cachorros, o esgoto, as valas, o lixo, o cemitério.

A porta do cemitério é verde.

Señor de los Milagros. Talvez a morte é que seja colorida aqui.

Crianças correm ao pé do muro. Na quadra cinza, jogam bola. O frio penetra, implacável, nos meus ossos. Nenhum sol desponta, nada. Só os gritos das crianças. As risadas. Do outro lado do muro outras crianças talvez estejam jogando outro futebol, num clube, no condomínio, entre outros muros, a salvo. Talvez elas riam também. Talvez. Mas não importa, porque o muro se ergue e corta. Frio, cinza, com as garras de arame para fora, vigiando do alto as crianças daqui, a bola furada, as risadas, o futebol, o céu. O cachorro. A ferida.

Houve um tempo em que se derrubavam os muros. Agora só nos resta o estancamento abrupto dos fluxos e das conexões.

Estancar relações. O corte. A surdez. A separação. O silêncio. A indiferença.

Os muros.

Aurora, 90 anos. Surge no caminho, subindo. Passo a passo. Uma alma ao pé do muro. Carrega uma sacola colorida: “eu junto garrafas”, ela diz. “Todo dia subo e desço, e junto garrafas. Esse é meu trabalho. Não trabalho do outro lado, moro aqui embaixo”. O muro.

“Que muro? ela pergunta. “Não vejo nenhum muro”, clama alto, virando as costas para ele.

A cegueira momentânea de Aurora.

“Esse muro ali? É dos gringos, não é nosso”. Ela ri. “É que eles têm medo”. O riso explosivo contagia.

O riso de Aurora. Colorido.

A resiliência. E o humor.

O muro.

Cicatriz trinchando a alma e o território. Cicatriz de guerras perdidas, faz tempo.

O riso de Aurora, para sobreviver. A resistência. E o movimento (sempre o movimento) que permite sonhar, de pé, e de costas para um mundo mutilado. Para os muros dos outros. Dos que levantam muros.

Lidar com aqueles que erguem os muros de cada dia. Na política, na vida, nas relações, no nosso dia a dia surdo e tagarela.

Lidar com o medo visceral que assola os que levantam os muros, escondidos nos condomínios particulares de seus desafetos. Protegidos. Pelas guaritas. Pelas cercas. Pelo encastelamento das fragilidades. Cultivando a indiferença, silenciando. De preferência, abruptamente. Num corte que desarma toda a potência afetiva alheia.

Assim nascem os muros.

Erguem-se muros pra não “sustentar” relações. Nenhuma delas.

Aviso: “Este muro foi construído para a segurança dos condôminos.

Está claro. Cultiva-se a indiferença como qualidade, o desapego como virtude, a segurança como horizonte. O desprendimento. Sempre mais confortável que a coragem do vínculo. Do acolhimento e da escuta. Da palavra.

Dona Aurora se despede: “agora vou visitar mis amiguitas, nos vemos no ano que vem, ou outro dia, quem sabe?”. Gargalha e segue. No caminho.

A lama cinza que escorre. Ladeira abaixo. O medo. A muralha.

Desabamentos.

O riso das Auroras. Trombetas que fazem ruir muralhas. Luz.

Jericó

Constantinopla

Sete vezes

Derrubar os muros erguidos sobre os escombros da (in)diferença. Demolir.

Invadir.

Escapar, pular os muros (exercite-se sempre), dinamitar o silenciamento.

Executar os que erguem os muros. Executar o medo.

Num paredão, de preferência.

Desenho de Oiara Bonilla: “Aurora va de visita”, Pamplona Alta (2017)

 

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