A palavra ‘supremacistas’ é filhote da atenuação de aparências, por Janio de Freitas

Na Folha

O sentimento antinegros nos Estados Unidos não precisa de mais do que a tolerância mal disfarçada que o ampara.

Mesmo depois que Rosa Parks tornou-se uma das maiores presenças do século 20, com a pura e emocionante atitude de sentar-se na área reservada aos brancos em um ônibus, quase vazio.

Com a recusa a ceder o lugar, sem gesto algum de desafio, sem sequer uma palavra grosseira, a um branco imperativo, a simples e heroica humanidade de Rosa Parks obrigou o presidente dos Estados Unidos, general Eisenhower, ao ato esquecido desde Lincoln de mandar ao Alabama tropas em defesa da igualdade entre seres humanos do seu país. Era 1955, há apenas 62 anos.

Kennedy, o sucessor, precisou tomar medidas de igual dureza. O movimento de defesa dos negros acirrou-se, criou grandes personagens da ação pacífica, sonhou com a igualdade pelas armas. Um a um, seus maiores líderes, pacifistas ou não, foram morrendo a bala. De lá para cá, a maioria dos Estados fez concessões importantes. Sem, no entanto, neutralizar a hipótese de que o faziam mais pela imagem desses Estados e do próprio país.

Com leitores/espectadores em todos os segmentos da população e, talvez mais preciosos, anunciantes suscetíveis, a imprensa e a TV influentes não se aplicaram, jamais, em esforços consequentes contra o “apartheid” e suas violências, físicas, psicológicas e morais.

Mudar as evidências negativas da “grande democracia” foi, de fato, o programa nacional, deliberado ou intuído, das instituições e núcleos de atividade pública como a TV, o cinema, a política.

Criada na universidade e injetada no jornalismo, a palavra “supremacistas” é filhote da atenuação de aparências. Supremacismo é, porém, termo aplicável a muitas condições e atividades. Na cabeça brasileira, até ao futebol, a ser visto forçadamente como o superior no mundo, mesmo quando a inferioridade é humilhante.

O sentimento e a ação antinegros nos Estados Unidos são mais do que supremacistas. Seu nome é racismo. Continua sendo e será enquanto exista. Palavra sem máscara. Nome específico, direto, preciso. Consagrado por seu caráter repulsivo, pelo tempo, por quem o porta e por quem o sofre.

Não há razão para acobertar o racismo, prática e nome, com um subterfúgio que só presta serviço aos racistas, de repente maquiados pela dubiedade de supremacistas. Se supremacismo retrata ódios brancos aos negros, alguém seria capaz de dizer que Hitler e o nazismo eram apenas supremacistas por seu ódio aos judeus?

A palavra supremacistas tem, para os racistas e o governo dos Estados Unidos, a mesma finalidade que militares, alguns integrantes do Supremo Tribunal Federal e parte dos meios de comunicação extraíram da palavra “excessos”: nome (e justificativa) da tortura e dos assassinatos políticos nos quartéis.

Em estádios, hoje, torcedores que ofendem jogadores negros são reconhecidos, com unanimidade, como racistas. Porque racismo é racismo onde quer que se manifeste.

Supremacismo, além do mais, é palavra antijornalística –pela imprecisão, quando a precisão é possível; pela utilidade deformadora; e por sua hipocrisia.

Racistas brancos e neonazistas em Charlottesville. Foto: Alejandro Alvarez /Reuters

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