“Encarceramento não reabilita ninguém”

Natalia Timerman reúne no livro Desterros as histórias dos detentos que vão ao CHSP, o único hospital-prisão de São Paulo

Clichetes

A médica psiquiatra Natalia Timerman estava no meio de uma pesquisa de mestrado sobre liberdade. A compreensão do que significava liberdade mudou completamente para ela a partir de sua experiência no CHSP, o Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo, em 2012. Localizado no Carandiru, na zona norte da cidade, onde ficava a prisão que foi demolida, é o único hospital que atende os mais de 200 mil presos do Estado.

O projeto ganhou outro rumo, mas rendeu a Natalia uma coleção de histórias de detentos e detentas que agora estão publicadas no livro Desterros — Histórias de um hospital-prisão, lançado pela editora Elefante. O livro reúne relatos diferentes de quem foi condenado ao confinamento, seja por um motivo justo ou não, a uma pena pesada ou não.

Entre as muitas histórias, uma tem espaço especial e segue como fio condutor do livro: trata-se da personagem Donamingo, angolana que foi presa no Brasil por tráfico internacional de drogas. Ela foi paga para trazer de seu país de origem uma mercadoria que ela alega não ter conhecimento do que era. Ela acabou presa. Na prisão, descobriu que estava grávida.

Como Donamingo, ao dividir suas histórias os personagens do livro mostram que não são apenas mais um número no sistema penitenciário do Estado. São pessoas. Um destempero que fez alguém até então calmo cometer um crime. O preso que não se lembra de nada até descobrirem que ele tem uma cratera no cérebro. O pai que espera reencontrar o filho, sendo que ambos estão presos. A mãe que se vê obrigada a se separar do seu bebê. O detento que se apaixona pelo outro sem nenhuma chance de ter seu amor correspondido. Alguém esquecido na prisão. E sim, há os mais agressivos, covardes, autores de atos imperdoáveis.

O livro nos mostra duas coisas: a prisão, este lugar onde as pessoas são confinadas sem nenhuma expectativa de melhora ou recuperação, não reabilita ninguém. E outra, bem importante para quem acha que não tem nada a ver com essa questão: quem está lá dentro não é tão diferente de quem está do lado de fora.

Há quanto tempo você está no CHSP e o que te levou a fazer esse trabalho?

Estou no CHSP há 5 anos e meio. Quando fui conhecer o hospital, ainda não tinha certeza de que trabalharia lá, mas já então me surpreendi com a diferença entre meu imaginário e a realidade. Na hora eu não sabia, mas agora penso que encarar essa diferença e colocar meus preconceitos em questão foi uma boa forma de me rever. Me senti convocada pelo desafio, e continuo lá por isso, porque nunca fica mais fácil.

Escrever este livro mudou algo no seu modo de ver seu trabalho e os que estão presos?

Escrever este livro foi a maneira que encontrei de refletir sobre quem está lá, o que presenciei e acontece lá e também sobre mim. Certamente mudou minha forma de ver tanto meu trabalho quanto as pessoas que estão presas. Vou dar um exemplo bem prático: quando fui escrever a história de Donamingo, me dei conta das lacunas narrativas que meu acompanhamento psiquiátrico tinha deixado. Uma conversa que busca sintomas ou fatos de uma vida relacionados apenas a eles, por mais que seja até eficiente em um sentido, em outro, percebi, pode ser muito pobre. A escrita do livro foi, e espero que a leitura também seja, um esforço para que aquelas pessoas sejam olhadas como pessoas. Parece pouco e banal, mas infelizmente não é.

A história de Donamingo não é tão incomum no Brasil. O que te chamou atenção para colocar a história dela como eixo do livro?

A história de Donamingo é bastante comum e justamente por isso emblemática, carrega em si a terrível sina de tantas mulheres desterradas e de seus filhos nascidos na prisão. Mas também é única: o olhar, a voz daquela mulher, o rosto de seu filho, seu sorriso, são muito nítidos para mim até agora. É única também porque são poucas as mulheres que conseguem o que ela conseguiu, sair da prisão para cuidar do filho. Porque ele precisava dela, e uma das belezas dessa história é que ela também precisava dele. A história de Donamingo não é incomum, mas nem por isso deixa de ser forte e marcante. Toda a equipe do hospital se mobilizou muito. É uma história que pedia para ser contada.

Como foi recolher esses depoimentos? Como você lidou com a questão do que era verdade ou não nos relatos?

Alguns depoimentos foram colhidos quando o livro ainda era uma dissertação com um propósito específico, me aproximar de como as pessoas presas pensam a liberdade. Ninguém se recusou a contar sua vida. Outras histórias eu escrevi com base na minha memória, sempre com o cuidado de tornar essas pessoas, agora personagens, não-identificáveis. Eu abordo no livro a questão de saber se o que me dizem é ou não verdade quando conto a história da mulher que, dependendo do que precisasse, me contava uma versão diferente da sua vida. Toda mentira tem um sentido, não necessariamente pejorativo e que pode até fazer parte da história a ser contada, mas uma história só pode ser contada quando há um encontro desinteressado. Alguém que mente para obter benefícios se retira enquanto personagem de sua história possível.


As pessoas e suas histórias

Quando comecei a trabalhar como psiquiatra no CHSP, Alexandre já estava no meio de seu fim. Ele foi uma das primeiras pessoas de quem me aproximei; presenciou meu olhar receoso do início, meus gestos contidos, o medo que eles denunciavam. Medo de que minha ingenuidade no trato com o mundo penitenciário aparecesse, e certamente aparecia; medo de que percebessem que eu não falava a língua da malandragem; medo de que as pessoas que eu iria atender, os presos internados, pudessem me fazer algum mal. Porque nos primeiros dias de meu trabalho eu ressoava tudo o que havia escutado das pessoas que, como eu, não sabiam minimamente o que seria trabalhar dentro da prisão, e que se assustavam um pouco do meu medo quando eu lhes contava o que começaria a fazer. Não sabiam o que seria passar pela “revista” para entrar, atravessar diariamente o detector de metais, escutar o barulho das grades, sentir cheiro de hospital misturado ao que eu agora passava a conhecer como cheiro de prisão. Não sabiam, como eu, o que era a obrigatoriedade de atender de portas abertas os presos, sempre vestidos de calça bege e camiseta branca, sempre andando lentos, com os braços sempre para trás, a cabeça sempre baixa, o olhar sempre mirando o chão. Como eu, não sabiam que, diante de tudo isso, existe o risco de nos esquecermos de que quem está por trás daqueles gestos todos, obrigatoriamente mais contidos que os meus, são pessoas. Como eu.

Trecho do livro Desterros


Você descreve diferentes histórias. Para cada crime há uma sentença; no entanto, todos acabam no mesmo lugar, sob as mesmas condições. O encarceramento é a punição mais efetiva para fazer justiça ou reabilitar um criminoso?

Você tocou num ponto muito importante, esse da pena comum para todos os crimes. Para o indivíduo, isso já é ruim. E como sociedade, o que fazemos é colocar juntas pessoas que têm diferentes graus de envolvimento com o crime organizado. Não à toa, a prisão é chamada de “escola do crime”. Além disso, quem sai da prisão tem muito mais dificuldade em se reinserir socialmente, em conseguir trabalhar, por conta do estigma e de empecilhos práticos (por exemplo, o próprio estado que prende é o que pede certidão negativa de antecedentes criminais para contratar). O resultado disso nós vemos na alta reincidência de prisão: quanto mais uma pessoa é presa, mais chance ainda ela tem de ser presa de novo. É a prova de que o encarceramento não reabilita ninguém, pelo contrário. E quanto a fazer justiça, precisamos pensar muito nessa palavra no Brasil hoje em dia. A justiça no nosso país, no nosso tempo, está completamente esvaziada de sentido, e quem sofre com isso na prática são sempre as mesmas pessoas, as que estão mais longe do poder.

Em alguns momentos do livro você argumenta sobre motivos que fazem você gostar deste trabalho. Você já tem uma resposta definitiva pra essa questão?

Não tenho ainda, continuo apenas com esboços de respostas: gostar de escutar a história das pessoas, me sentir desafiada, sair de mim através de estar diante do outro. Talvez quando chegar a uma resposta definitiva, que não me deixe brechas para pensar e não me instigue mais, trabalhar no hospital penitenciário perca o sentido.

O livro destaca a questão da maternidade na prisão. Se a criança deve ficar ali com a mãe ou se ambos devem ser soltos… A lei hoje, com uma mudança a partir de 2016, prevê prisão domiciliar paras as presas com filhos até 12 anos. Você acha que essa é uma boa opção?

Sim, acho que é uma boa opção. Primeiro, porque o filho não tem que pagar por uma pena que não é sua, ou seja, estar sem sua mãe. Segundo, porque é importante para a sociedade como um todo que essas crianças sejam cuidadas por suas mães, para que não sejam colocadas tão precocemente numa trilha de sucessivas faltas que também pode desembocar na prisão, como um ciclo vicioso. E terceiro, porque para a mulher também deve valer aquilo que infelizmente não vale, de haver diferentes penas para diferentes crimes.

Alguém citado no livro teve a oportunidade de lê-lo? Se sim, o que te disseram?

Eu li alguns trechos do livro para Donamingo. Nos encontramos para almoçar, ela estava com o Zaki. Fomos a um restaurante africano, camaronês, no centro da cidade, o mesmo, aliás, que fez as comidas do lançamento do livro, se chama Biyou’Z (e é delicioso). Foi muito emocionante, acho que para nós duas. Eu lia, ela sorria e acenava com a cabeça que sim, e dizia, com os olhos brilhando, é isso mesmo, é isso mesmo. Não disse mais nada.

E Donamingo, você ainda tem notícias dela e do Zak?

Há tempos não falo com ela. Das últimas vezes que tentei ligar, a ligação não completou. Talvez seja hora de tentar de novo.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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