Convergência

Para especialista em segurança pública, ‘três falas distintas, aparentemente não interligadas’ de autoridades mostram que a ditadura militar ainda vive

Por Guaracy Mingardi*, especial para Ponte Jornalismo

As últimas semanas revelaram uma tendência de buscar saídas para a segurança pública que lembram a ditadura militar. Três falas distintas, aparentemente não interligadas, mostram como algumas pessoas do aparelho repressivo do estado têm saudades desse passado que pensávamos ter deixado para trás.

A fala menos importante, pelo menos do ponto de vista do cargo de seu autor, foi do atual comandante da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar). Numa entrevista desastrosa ao UOL, o tenente-coronel assumiu o que todos já sabem, que a PM atua de forma diferenciada na periferia e nos bairros mais chiques. Segundo ele se um policial abordar pessoas num bairro pobre da mesma forma que faz nos Jardins ele não será respeitado. Outra pérola é que se o policial usar a linguagem da periferia num bairro chique vai ser uma grosseria, irá ofender as pessoas. Ou seja, não temos uma polícia, mas duas diferentes, uma para os pobres e outra para os ricos. Isso não é novidade para ninguém que transita nos dois mundos, todos perceberam que a polícia nas “quebradas” é muito mais truculenta. Só não sabem disso os indivíduos que se fecham em suas conchas de classe média ou alta. A única surpresa foi a admissão do fato pelo oficial, pois há muitos anos o discurso institucional é outro. O comando sempre fala de Polícia Comunitária, valores democráticos, etc. Ao que parece estamos vendo a volta das ideias que marcaram a Polícia Militar dos anos mais duros da ditadura, quando foi criada a ROTA, que tinha como função suprimir os inimigos do regime militar.

A segunda fala também é paulista, e vem do TJM/SP (Tribunal de Justiça Militar de São Paulo). Seu presidente, o Juiz Silvio Hiroshi Oyama, assinou uma resolução que determina que a PM deverá apreender todos os objetos que tenham relação com a apuração de crimes contra a vida de civis. Em outras palavras os policiais militares devem recolher os objetos nos locais onde haja confronto entre PMs e civis que resultem em morte. Na prática isso significa acabar com toda e qualquer investigação dos chamados “autos de resistência”. Quando os peritos chegarem não haverá mais possibilidade de reconstituir os acontecimentos que levaram a morte de uma ou mais pessoas. E como a Corregedoria da PM não atende todas as ocorrências de tiroteios no estado, muitas vezes as provas materiais serão recolhidas por colegas de batalhão, ou mesmo da companhia, dos envolvidos na ocorrência. É importante ressaltar que a maioria dos casos de morte praticados por policiais em serviço não têm testemunhas. Somente alguns corpos e a guarnição envolvida na ocorrência. Portanto a única forma de chegar a uma descrição dos fatos é através da reconstituição feita pela perícia. E a alegação de que a própria PM cuidará disso é no mínimo estranha.

Na década de 90 foi criada a Superintendência de Polícia Científica, tirando da Polícia Civil o comando sobre os peritos. E uma das principais alegações para isso é que essa medida iria evitar que os delegados influenciassem os peritos na confecção dos laudos. Lembro-me da fala de um promotor de justiça, ex-policial militar, que afirmou que a perícia tinha de ser independente, livre de interferências institucionais. E agora o TJM pretende dar à PM aquilo que, depois de muita disputa, foi retirado da Polícia Civil. Outro ponto a ser considerado é que, segundo determinação da Secretaria de Segurança, todos as mortes envolvendo policiais são investigadas pelo DHPP (Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa), e que vai acabar sendo alijado do inquérito, porque essa medida vai impossibilitar qualquer investigação. Talvez seja o primeiro passo para retornar aos tempos da ditadura, quando as mortes cometidas por policiais eram “investigadas“ pela PM e julgadas pela Justiça Militar. Atualmente, essas mortes vão para o tribunal do júri, como quaisquer outras. O que não significa que mais policiais sejam condenados, principalmente porque o júri é composto de indivíduos de classe média que tem mais em comum com o policial do que com o morto, e deixam sua subjetividade ditar a sentença. Mas isso é outra história, que não cabe nesse artigo.

A terceira fala também é institucional, só que de um escalão mais alto. Há algumas semanas o Comandante do Exército Brasileiro, General Villas Boas, publicou no Twitter a seguinte mensagem: “A Op GLO no RJ exige segurança jurídica aos militares envolvidos. Como Cmt tenho o dever de protegê-los. A legislação precisa ser revista”. Traduzindo para o português corrente, o general está defendendo um projeto de lei que remete para a justiça militar os casos de morte contra civis praticados por militares durante as operações no Rio de Janeiro. Ou seja, se um recruta atirar numa civil, ele será julgado pelo exército, não pela justiça comum. Aliás essa proposta tramita no Congresso e está com toda a pinta de que vai passar. O que nos traz de volta, mais uma vez, aos anos da ditadura, que achávamos que haviam sido legados a lata de lixo da história. Essas três pessoas citadas possivelmente nem se conhecem, pertencem a esferas diferentes e têm carreiras muito distintas. Suas falas, porém, convergem de forma assustadora num momento muito difícil para o país, quando saudosistas do regime militar vem a público falando dos “velhos bons tempos”. Esquecendo os 223% de inflação de 1984, último ano da ditadura, e que a primeira grande organização criminal brasileira, o Comando Vermelho, nasceu e floresceu sob o regime militar, escondida sob um manto de censura à imprensa.

*Guaracy Mingari é analista criminal autônomo, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas. Foi investigador de polícia e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, entre outras atribuições.

Foto: Daniel Arroyo /Ponte

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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