Os povos do Sul do Amazonas pedem socorro

Por Núbia Vieira

Segundo os dados do Prodes, que monitora o desmatamento na Amazônia Legal, a região Sul do Estado do Amazonas foi a que apresentou a maior área desmatada em 2016, sendo os municípios de Lábrea, Boca do Acre, Apuí e Manicoré os recordistas na destruição da floresta. Localizado na foz do Rio Acre com o Rio Purus, o município de Boca do Acre está a 223 quilômetros de Rio Branco, cujo acesso se dá pela BR-317; além dela, está inscrito na área de influência do município a rodovia BR-364, em sentido diagonal, liga o Acre a Rondônia.  Já a rodovia BR-317, em sentido transversal, dá acesso à Estrada do Pacífico, pela tríplice fronteira Brasil-Peru-Bolívia. Segundo dados do IBGE, Boca do Acre é um dos dez municípios do Amazonas com o maior rebanho bovino do Estado, dado que se liga ao do desmatamento; segundo o mesmo órgão, quase 100% da área desflorestada é destinada à atividade da pecuária.

A viagem de Rio Branco até a cidade de Boca do Acre pela B-317 deixa evidente a marca da expansão da frente pecuarista pela Amazônia. Um cenário de devastação, em que em alguns percursos depara-se com algumas manchas de capoeira: uma floresta secundária rala que teima em reerguer-se. Essas capoeiras encontram-se nos trechos sem asfaltamento, que são justamente Terras Indígenas. O motivo é que por falta de acordo entre o DNIT e os direitos indígenas previstos no processo de licenciamento ambiental, os trechos não puderam cumprir com o asfaltamento. Nos demais trechos, segue o asfalto e à margem da estrada a presença de grandes áreas de pastagens. Do cenário de destruição se avistam castanheiras solitárias, que já sequer fazem sentido. O capim e o boi então substituem a diversidade da floresta.

À luz do dia é possível avistar caminhões, sem placa, arriados com as toras de madeira na carroceria. A extração ilegal de madeira é concomitante ao processo de grilagem. O madeireiro retira a madeira de interesse econômico, e o grileiro marca os lotes para o início da especulação da “terra”. O Programa Terra Legal, que regulariza a posse da terra na Amazônia, diante da problemática que envolve o poder sob a “terra” no Brasil desde a escala local à nacional, tem contribuído para legitimar essas áreas griladas, vale dizer que esta já não é, sem dúvida, uma conclusão nova na região. Com o asfaltamento da BR-317, iniciado em 2003, o desmatamento e a grilagem de terra no município foi tornada mais intensa, sendo o “Terra Legal” um verdadeiro instrumento da “legalização” da grilagem. São as terras públicas que se encontram em disputa, e a “destinação” para a grilagem tem ocorrido sob um contexto de conflito agrário cada vez mais sério, tanto em Rondônia quanto na direção Sul do Amazonas ao Acre.

Em 2015[1], a CPT por via de uma Nota Pública, denunciou a relação entre projetos de manejo de madeira com as invasões em territórios tradicionais de castanhais no município de Boca do Acre, caso do Projeto Agroextrativista – PAE Antimary, situado ao Sul do município, com acesso terrestre pelo Ramal 25 de Sena Madureira/AC que liga à BR-364 e é vizinho ao perímetro atual da Resex Arapixi. Segundo a CPT, a colheita de castanha de comunidades tradicionais reduziu de 28.000 baldes, em 2010, para 9.000 baldes de castanha, em 2014. “Isto significa, literalmente, que o castanhal está indo para o chão”.

A Resex Arapixi é uma das Unidades de Conservação presentes ao longo do Médio curso do Rio Purus na abrangência do município de Boca do Acre. Com 133.637 hectares tem no seu entorno desde Terras Indígenas, Unidades de Conservação, fazendas e o Projeto de Assentamento – PAE Antimary. A área tradicionalmente ocupada como área de extrativismo das comunidades da Resex ficou ao Sul da Unidade de Conservação e dentro do perímetro do PAE Antimary. Os moradores relatam que com o anúncio da criação da UC, o próprio INCRA teria incentivado os invasores a retirar madeira, prevendo o pedido de ampliação no sentido da área ao Norte do Assentamento. Esta é a área de cabeceira dos afluentes que deságuam naquele curso do Rio Purus, por isso mesmo sempre fora preservada pelas comunidades extrativistas, como uma área de criatório animal e de concentrada diversidade de espécies vegetais. Os seringais, castanhais, açaizais, entre outros, concentram-se ali. Com a expansão da invasão os pastos aproximam-se cada vez mais, e o desmatamento já chega dentro do perímetro da Resex.

Os moradores da Resex Arapixi reivindicam a ampliação da Unidade, e vêem com preocupação e angústia o seu destino enquanto sociedade da floresta. A luta pela criação da Resex é ancorada pela comunidade daimista São José, liderados pelo Padrinho que ensina a ver a natureza como fonte de espiritualidade, e assim de evolução humana. É preciso destacar que a região Sul do Amazonas possui considerado patrimônio cultural, tendo em vista os modos de vida e cosmovisões próprias ali desenvolvidas por estas sociedades da floresta. Representado desde populações indígenas como os Apurinã, Jamamadi, ao Movimento Daimista, o qual possui estreita relação com a luta ecológica das comunidades extrativistas na região. De sociedades seringueiras à convivência íntima com a floresta, a religiosidade do Daime representa o sincretismo caboclo de uma maneira de “sentir” e “ser” floresta. A expansão da frente pecuarista tem se dado via um montante de crimes que vão desde o desmatamento ilegal, trabalho escravo, assassinatos, grilagem de terras públicas à invasão atual de Áreas Protegidas. Sendo assim, o patrimônio ecológico e cultural do Sul do Amazonas precisa ser visto, precisa ser defendido com urgência. O grito destas comunidades é mais do que nunca de socorro!

Segue carta redigida pelas comunidades da Resex Arapixi após a oportunidade de encontro para a realização da Reunião do Conselho Deliberativo da Unidade de Conservação. O problema das invasões na área de extrativismo cuja porta de entrada é o PAE Atimary representa a maior preocupação destas comunidades, e a maior ameaça ao seu projeto de futuro.

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Carta – Pedido de socorro dos Povos da Resex Arapixi

A luta pela criação da Resex Arapixi iniciou ainda nos anos 1990, quando sentimos a necessidade de garantir uma área de floresta para viver e trabalhar. Nesse tempo estavam chegando os fazendeiros que desmatavam grandes áreas e também foi quando alguns de nós começamos a sofrer ameaças de morte. Nossos antepassados, desde o início do século XX, já viviam nesses seringais. Então organizados entorno do trabalho com a produção de couro vegetal e extração de castanha, fundamos em 1998 nossa primeira Associação, Associação de Moradores da Comunidade São José, a fim de instrumentalizar a luta pelo direito a terra e a floresta. Isso porque a nossa relação com a posse da terra era pelo trabalho e não pela aquisição através do dinheiro. E esta forma de possuir a terra estava associada ao desmatamento, o que era contrário a nossa forma de vida e trabalho. Vimos na luta pela criação de uma Reserva uma possibilidade de direito a continuar a viver na floresta e de forma livre, sem a servidão aos patrões da seringa e livres da ameaça dos fazendeiros. Foi então em 21 de junho de 2006 que foi expedido o Decreto de criação da Resex Arapixi. Por não conhecer nossos direitos, até a criação da Reserva pagávamos renda aos seringalistas, aqueles que se diziam donos dos seringais, 20% de tudo que produzíamos era pago a estes patrões. Até a criação da Resex os líderes da comunidade estavam ameaçados de morte, além da frequente ameaça de expulsão de toda a comunidade São José. O cartório de Boca do Acre sempre mandava ofício para as lideranças alegando que aquela terra tinha dono e que éramos nós os invasores. Enquanto isso esses falsos donos da terra retiravam grandes quantidades de madeira e mandavam a polícia militar até a nossa comunidade para nos amedrontar.

Quando saiu o Decreto de criação da Resex fomos obrigados a levar o documento a uma audiência pública no cartório para provar que aquela área era uma Reserva Extrativista reconhecida legalmente, porque antes disso a juíza local havia expedido um mandato de despejo de toda a comunidade São José. Nosso lugar está localizado na região Sul do Amazonas, no Médio Rio Purus, no município de Boca do Acre, próximo à divisa com o Estado do Acre. A região Sul do Amazonas é hoje umas das mais conflituosas, as invasões e desmatamento ilegal são crescentes, além do alto índice de assassinatos no campo aqui registrado nos últimos anos. Estamos a cada dia mais cercados por pastagens feitas à base de grilagem, desmatamento ilegal e assassinato de posseiros.

O processo de criação de uma Resex envolve estudos feitos pelo ICMBio, órgão responsável, nós pensávamos que a nossa área de extrativismo, que estávamos pagando a renda indevidamente para o patrão entraria no decreto de criação.  Quando saiu fomos ver que os castanhais ficaram de fora do limite da Resex. A área que ficou fora está localizada ao Sul do território da Resex Arapixi, onde se localiza a área do Projeto de Assentamento Extrativista – PAE Antimary. Mas, antes de criar o PAE já utilizávamos, desde os nossos antepassados aquela área. As moradias do PAE estavam até então bem longe dessa área, quem a utilizava éramos nós. Ali está um estoque de árvores úteis como a seringa, copaíba, açaí, Pequi, Patauá, Bacaba, Cedro, além de “barreiros” de animais silvestres, que é um barro ingerido pelos animais para cortar efeito de frutas venenosas, por exemplo. Essa área é também repleta de nascentes de afluentes do Rio Purus. Lá se formam lagos naturais que são um local de reprodução dos peixes. É, portanto, um local de reprodução dos animais, um refúgio, para as plantas, para os bichos e para nós que optamos por conviver, por ter amizade com a natureza. Hoje essa área está sendo invadida, a entrada é o PAE Antimary. Estão derrubando castanheiras exatamente para descaracterizar nosso território de extrativismo. Ao derrubarem árvores como a seringueira, andiroba, pequi, açaí matam também os peixes que se alimentam das flores e frutos que caem na água. Foi de 2007 em diante que a invasão se tornou mais intensa, e nos últimos dois anos a invasão que significa desmatamento, tem chegado dentro da Resex.

A destruição dessa área de floresta, a mais rica, tem sido a maior tristeza das nossas vidas, significa para nós a destruição do nosso alimento, da nossa renda e do nosso projeto de futuro. A gente se pergunta como vai viver as próximas gerações. O pedido de ampliação da Resex é antigo e até hoje nada de efetivo foi feito por parte dos órgãos responsáveis.

Na Resex Arapixi vivem comunidades Daimistas, evangélica, umbandista e indígena. A natureza para nós representa além de um meio de vida, nossa fonte de espiritualidade. Com o Padrinho do Daime aprendemos que devemos mirar longe e não buscar a verdade no material, porque a verdade está no espiritual, e portanto, na natureza, na harmonia com toda criatura que é viva.

Esta carta representa um grito de socorro perante a destruição do que para nós é o verdadeiro!

“Da Floresta eu recebo
Forças para trabalhar
Da Floresta eu tenho tudo
Tudo, tudo Deus me dá”.
(Hino do Daime)

Assinam,

Lideranças representantes das Comunidades São José, Bosque, Porta Alegre, Alto Douro, Maracajú I, Maracajú II, Maritiãn, Vista Alegre, Caquetá, São Honorato, Nova Amélia e Fé em Deus, da Reserva Extrativista Arapixi.

Boca do Acre – AM, 01/09/2017

[1] https://www.cptnacional.org.br/publicacoes/noticias/articulacao-cpt-s-da-amazonia/2969-nota-publica-boca-do-acre-um-municipio-em-disputa-na-amazonia

Foto: Núbia Vieira.

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