Furacão Irma: Após o apocalipse, os ricos herdarão a Terra, por Leonardo Sakamoto

No blog do Sakamoto

O problema é que os pobres são os que sempre se estrepam primeiro quando qualquer teoria se confirma.

A frase de efeito foi dita em uma conversa com um amigo letrado nos paranauês da Inteligência Artificial. Ele me explicava que o debate sobre a evolução das máquinas a ponto delas ganharem consciência (seja ela o que isso for) e, hipoteticamente, se voltarem contra nós, como a Skynet na série ”O Exterminador do Futuro”, é perfumaria de homem branco entediado.

Afinal, se isso acontecer um dia, afetando a vida dos moradores ricos do Vale do Silício, terá sido muito tempo depois dos grupos vulneráveis já terem suas vidas transformadas em inferno pós-apocalíptico pelas máquinas, obedecendo a padrões programados pelos grupos e setores que governam a humanidade.

Um sistema digital de cálculo de risco de seguros, por exemplo, tende a ser programado para dar avaliações diferenciadas para um homem branco e uma mulher negra. O mesmo vale para questões de segurança pública, ou seja, considerando que a quantidade de negros entre as pessoas encarceradas é maior que sua participação na sociedade, uma inteligência artificial pode ser programada para usar essa informação a fim de gerar ”processos mais efetivos de controle de criminalidade”.

O problema é que estará atuando a partir do efeito – vigilância maior de bairros de maioria negra em busca de suspeitos, que é o que já acontece – e não das causas, entre elas um sistema que ignora as vulnerabilidades sociais do grupo em questão e as condições que levaram alguns de seus membros ao crime. Isso somado ao aprofundamento da violação da privacidade, a programas que permitem reconhecimento facial e à utilização de modelos matemáticos, podemos construir uma sociedade semelhante à do filme Minority Report, protagonizado por Tom Cruise (#adoro), em que crimes são impedidos e os envolvidos presos preventivamente.

Mas, nela, o andar de baixo seria sistematicamente mais punido porque o sistema obedeceria às ordens dadas pelo andar de cima, em um processo feito à sua imagem e semelhança.

A partir do momento em que redes complexas usam bases de dados existentes, já programadas com nosso preconceito, racismo, xenofobia, homofobia, transfobia, enfim, para desenvolver-se, pode-se esperar que ela vai reproduzir essas práticas.

Um sinal do que seria isso aconteceu quando a Microsoft foi forçada a desativar um chat bot projetado por ela, para conversar com usuários no Twitter, acionado por inteligência artificial. Como ele aprendia a partir das trocas na rede, acabou por dar declarações racistas, insultar uma pessoa, apoiar Hitler e propagar teorias da conspiração.

Uma sociedade em que inteligência artificial seja usada para organizar a vida cotidiana baseada em como nossa sociedade é hoje, mas sem mediação humana, pode apenas aprofundar a crueldade com a qual tratamos os grupos que tem seus direitos sistematicamente excluídos e são alvo do ódio e da intolerância. Normalmente, os mais pobres.

De certa forma, é o que acontece também com as mudanças climáticas e os desastres envolvendo fenômenos meteorológicos ou sísmicos. Por mais que o planeta inteiro seja afetado a partir do momento em que a raça humana resolve ajustar o termostato do planeta para a posição ”Instalar o Caos Lentamente na Vida dos Idiotas”, os mais ricos sofrerão inicialmente menos impacto.

Eles não terão que marchar em grandes levas migratórias fugindo das secas, morando em campos de refugiados ambientais. Diante da iminência de tempestades cada vez maiores por conta do aquecimento da água do oceano, os mais abonados conseguem sair mais facilmente de avião para um local mais seguro. O que não ocorreu necessariamente com os negros pobres, em New Orleans, atingidos pelo furacão Katrina.

Os ricos não vivem em áreas de risco que deslizam diante de chuvas fortes, como os morros cariocas. O Jardim Pantanal, bairro que submerge em caldo de cocô por conta da incompetência do poder público, é praticamente um depositório de gente que foi parar onde São Paulo acaba mais por falta de opções do que por escolha individual.

Com exceção dos fanáticos religiosos que enxergam sinais da primeira ou segunda vinda do messias (dependendo da religião em questão), apenas os mais míopes não percebem que o mundo está dando o troco. Não estou falando apenas do aquecimento global que facilita a formação de furações e das já irreversíveis mudanças climáticas que vão alterar a Terra nos próximos séculos, mas também dos crimes ambientais que fomos acumulando debaixo do tapete e que, agora, tornaram-se uma montanha pronta a nos soterrar. Ou um caldo de esgoto a nos tragar.

Um grande banco brasileiro me chamou, em 2007, para, junto com outros representantes da sociedade civil, analisar o seu relatório de sustentabilidade. Nele, que foi alterado antes da publicação, fazia uma análise crua, direta, objetiva e fria diante das mudanças climáticas. Claro que lá se vão dez anos, a consciência muda, as coisas mudam. Mas esse pensamento continua presente em boa parte das corporações, portanto, da nossa elite econômica, bem como em nossa elite política. Segue um trecho:

”Do ponto de vista dos impactos diretos das mudanças climáticas, o estudo [conduzido pelo banco, sobre negócios e mudanças climáticas] aponta um risco reduzido na estrutura da rede de agências e na composição do faturamento da organização, dado o horizonte de tempo em que a alteração do clima do planeta deve começar a afetar o Brasil com mais intensidade. À exceção das regiões litorâneas, as mais ameaçadas pelo aumento do nível do mar, o restante do território brasileiro não deve ser diretamente atingido.

A queda de oportunidades de trabalho no campo, o empobrecimento de faixas importantes da população e o consequente fluxo migratório para as grandes cidades poderão acarretar aumento do desemprego, gerando impactos sociais negativos como o crescimento da violência e da favelização e o fortalecimento da economia informal.

Nesse cenário, poderia-se observar uma diminuição da fidelização dos clientes aos bancos, diante do acirramento da concorrência, cada vez mais concentrada em regiões metropolitanas. A importância de se trabalhar melhor a rentabilidade do cliente aumenta. Tais fenômenos implicam a necessidade de cadastro de clientes mais flexível e rapidamente atualizável, uma vez que uma movimentação mais intensa das pessoas amplia as oportunidades de negócio, tanto pelo volume de recursos quanto pelas oportunidades de financiamento.”

A maioria dos que vivem de dividendos ou de salários suficientes para ”contornar os transtornos climáticos” segue escondida no conforto do anonimato, defendendo o seu, fazendo meia dúzia de ações insignificantes para dormir sem o peso da consciência e o resto do mundo que se dane. Não querem mudanças nos modelos de desenvolvimento e de consumo que impactaria o “American Way of Life” que importamos. Acham que basta apenas reciclar latinhas de alumínio. E seguem respondendo de boca cheia que fariam de tudo para construir um mundo melhor.

E enquanto discutimos com negacionistas, o relógio está correndo.

Por fim, antes da Inteligência Artifical criar qualquer Skynet da vida, vai mudar o emprego da população. A morte de profissões e o nascimento de outras é natural. Ninguém mais precisa de um trabalhador para acender as lamparinas de óleo de baleia e iluminar cidades. Mas o esforço de nos preparar para essa mudança, capacitando a mão de obra que será substituída, não tem sido à altura da substituição que já está acontecendo. A utilização de robôs (no sentido amplo da automação, de máquinas a softwares) vai gerar desemprego massivo, produzindo refugiados econômicos.

A verdade é que seja em um futuro apocalíptico ambiental ou tecnológico, os ricos herdarão a Terra.

Mas vão desfrutar o planeta por pouco tempo.

 

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