Descobrir outras formas de gozo pode quebrar nossos tabus e dogmas, por Vladimir Safatle

Na Folha

“Nosso futuro de mercados comuns encontrará sua balança na extensão cada vez mais dura dos processos de segregação.” Esta é uma frase do psicanalista francês Jacques Lacan escrita em 1967, quando a existência de grandes mercados comuns ainda era apenas algo mais próximo de uma promessa.

No fundo, a frase lembrava que estávamos no interior de um processo de desenvolvimento social e econômico que não caminhava em direção à ampliação das relações à diferença, assim como à ampliação dos horizontes de experiência social, como muitos gostariam de acreditar. Na verdade, e isso Lacan dizia em 67, nosso destino era ver, de forma cada vez mais dura, processos de segregação aparecerem novamente.

Essa era sua forma de dizer que nossas sociedades capitalistas construiriam um espaço comum que tinha como contrapartida necessária a alimentação contínua de certa forma de violência.

Não porque essa segregação seria a reação contra um modelo de espaço comum incapaz de levar em conta a ligação “natural” das pessoas a territórios, a costumes e a particularidades de suas próprias histórias. Como se fosse questão de acreditar que o desenvolvimento inexorável da modernidade capitalista global produzisse reações regressivas de comunidades refratárias a nossa tolerância liberal.

Na verdade, a ideia era que nossa estrutura de mercados comuns necessitava dessas segregações, ela produzia tais arcaísmos. Pois ela precisava construir uma dicotomia, uma ideia de que haveria apenas duas posições possíveis: ou nossa forma de tolerância ou um espaço de arcaísmos que era continuamente alimentado. Ou nossa modernidade ou a regressão que parece, muitas vezes, vir dos rincões mais recônditos, dos espaços mais esquecidos.

Só que Lacan insistia ainda em outra coisa, que hoje é mais do que atual. O eixo dessas segregações não eram apenas diferenças culturais de toda sorte, religiosas, raciais e outras. O que nos era impossível de aceitar, seja no interior da tolerância dos mercados comuns, seja na forma da intolerância de suas segregações, era que um outro tivesse outro modo de gozo.

Ou seja, no fundo, deixar ao outro seu modo de gozo era algo insuportável em nossas sociedades. Pois gozar de outra forma significa descobrir alguém que ignora nossos tabus, dogmas e separações, que torna possível relações que para nós são impossíveis. Por isso, a simples existência de outro gozo significará sempre a confirmação de que nossa forma de ser é contingente, de que ela poderia ser radicalmente outra. Para muitos, um outro gozo será assim sempre um desrespeito.

Mas parece então que há um problema de avaliação aqui. Afinal, nossas sociedades de mercado comum não procuram exatamente integrar a diversidade, dar espaço à pluralidade? Não é isso que parecemos ver? Notem, no entanto, uma coincidência expressiva, dentre tantas outras coincidências expressivas.

Foi exatamente no mesmo momento em que tal “integração da diversidade” se transformou em política multicultural de Estado que essas mesmas sociedades começaram um processo brutal de patologização de comportamentos, de construção de categoriais clínicas de descrição de patologias cada vez mais extensas, de tipificação cada vez maior de condutas sexuais. Nunca a psiquiatria foi tão normativa quanto hoje.

Como se a integração dessa diversidade tivesse um preço, o de nos afastar da diferença efetiva. Pois a diferença efetiva tem uma característica perturbadora: ela nos é interna, ela nos implica. De certa forma, ela nos é próxima. A verdadeira diferença é algo insuportavelmente próximo, tão próximo cujo contato pode nos mudar, pode nos contagiar, modificando nossa direção, produzindo em nós metamorfoses.

Aceitar a diferença nada tem a ver com tolerar o outro. Tem a ver com compreender quão frágil e mutante é a narrativa que temos de nós mesmos. Por isso, expor outras formas de gozo será sempre uma operação prestes a produzir colapsos nos espaços de “celebração da diversidade”. Agora, vai tentar explicar isso a uma associação criminosa com endereço fixo e CNPJ chamada “banco”.

Imagem: Alex Cherry.

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