Trate-me Leão, doutora

Por Luiz Eduardo Soares, no Justificando

Os mais jovens talvez não saibam, mas as leitoras e os leitores de minha geração certamente se lembram do “Trate-me Leão”, obra prima que projetou o grupo teatral Asdrubal Trouxe o Trombone e seu elenco recheado de novos talentos. O ano era 1977. O sucesso em todo o país foi extraordinário. Filas viravam esquinas. Víamos e revíamos, encantados, todo fim de semana. Era o programa da galera descolada. Ali, desbundados e engajados se uniam. A alegria era a prova dos nove. Vivíamos sob censura e ameaças constantes. Corriam os anos mais violentos da ditadura civil-militar. “Trate-me” abria as janelas da casa mofada e deixava o sol entrar.

A linguagem era revolucionária por ser simples, coloquial, mostrando que a política penetrava o cotidiano dos indivíduos e suas relações, e que as desigualdades começavam no vocabulário e na sintaxe. Afinal, no país que mimetizava a aristocracia europeia, no qual, entretanto, triunfara “o garçom de costeleta”, como dizia Oswald de Andrade, era revolucionário dinamitar a hierarquia estamental expressa nos floreios retóricos do bacharelismo barroco, nas citações em latim, nos vocativos da “excelência”. Toda uma história herdeira da escravidão –na qual se combinavam capitalismo autoritário e patrimonialismo–, estava contida no anelão ornando o dedo do doutor. Não por acaso, há poucos anos, Dilma Roussef assinou a lei de “Vossa excelência”, que exige o uso desse tratamento aos delegados de polícia.

Não, você não entendeu errado, é isso mesmo que você leu. O vocativo virou lei. Esse foi e continua a ser o país ibérico e católico das majestades sem lastro, da ostentação sem fundos, do cortejo pitoresco de jóias falsas das coroas. O Brasil mudou um bocado, mas não tanto assim. O Judicário, tão distante do povo quanto os nouveaux riches de Miami, onde magistrados compram seus ternos, é a reserva imperial da etiqueta aristocrática.

A beca, o lustro, o fausto, os minuetos da corte sintetizados num vocativo. “Use o tratamento protocolar”, é o que requer a promotora. “Qual seria?”, pergunta Lula, e continua: “Doutora? Doutora promotora?”. “Sim, sentencia o magistrado, Doutora Promotora”. Antes, outro promotor se dirigira ao inquirido como “Senhor Lula Inácio”. Tudo bem, o cabra veio do Nordeste, retirante, comete erros de português. Além de tudo não tem um dedo. E teve a pretensão de presidir o Brasil. Deve ser culpado. Tem de ser culpado.

Mesmo que seja de verdade culpado em todas as acusações, o fato é que condenação já houve, a sentença estava lá, no teatro da humilhação. Eu, ali, no lugar do acusado, teria respondido: “Ok, doutora. De minha parte, lhe peço: trate-me leão”.

Luiz Eduardo Soares é antropólogo, escritor, dramaturgo e professor de filosofia política da UERJ. Foi secretário nacional de segurança pública. Seu livro mais recente é “Rio de Janeiro; histórias de vida e morte” (Companhia das Letras, 2015).

 

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