O Ministério Público monocular

Combate à corrupção é importante, mas não representa integralmente o papel da instituição

Por Julio José Araujo Junior e Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, no Jota

Em 2013, a oposição popular à Proposta de Emenda  Constitucional (PEC) 37, que limitava poderes de investigação do Ministério Público (MP), foi entendida por muitas pessoas, especialmente no órgão, como uma aprovação quase absoluta à atuação da instituição. Alheia ao forte estímulo midiático que pautou aquele momento das ruas e conferiu predomínio ao discurso de combate à corrupção e de contestação genérica à política, esta interpretação contribuiu para a obstrução da necessária autocrítica por que deveria passar o MP sobre o cumprimento integral de seu papel constitucional.

Há algum tempo o órgão enfatiza o combate à corrupção, com acentuado desequilíbrio no exercício de suas atribuições institucionais. Isso se reflete na mentalidade da instituição e na disponibilização de recursos materiais e humanos. Há, por exemplo, uma tendência em tratar as atuações criminais e de combate à improbidade administrativa como obrigatórias – quando não prioritárias ou mais importantes -, ao passo que o papel de concretizador de direitos fundamentais, em atuação proativa, não teria o mesmo caráter, o que interfere na apreciação qualitativa e quantitativa da atuação em políticas públicas e na posição institucional quanto à defesa de grupos vulneráveis perante o Estado e outros atores.

Grupos sociais vulneráveis e movimentos organizados têm tido dificuldades para dialogar com membros e se fazerem ouvir pela instituição. As políticas públicas são frequentemente analisadas sob a ótica da irregularidade, e não da expansão e efetividade, ocasionando muitas vezes um cenário de terra arrasada, em que o acesso ao direito que se procura proteger fica em segundo plano, em nome de um controle que se fecha em si mesmo. Reduzem-se assim os direitos fundamentais a mera folha de papel, que devem ceder ante um interesse público genérico, abstrato. Combater desmandos passa a significar apenas prender e sancionar os malfeitores, e não assegurar justiça social: os debates sobre a pobreza, igualdade e identidades ficam distantes, sendo tratados como perfumaria ou diletantismo.

Deve-se ressaltar que a atuação de combate à corrupção é relevante e seus resultados devem ser aplaudidos. Ela, contudo, não contempla a outra missão institucional igualmente relevante do MP, a de promover a realização de direitos fundamentais. Uma coisa é acompanhar irregularidades, ilicitudes na condução de recursos públicos; outra é cobrar que os direitos previstos na Constituição sejam efetivamente assegurados, e que a saúde, a educação, o combate à discriminação, o direito à moradia estejam, de fato, na agenda dos gestores públicos. É inegável que a gestão proba pode garantir mais recursos para a concretização de direitos, mas essa relação não é um caminho necessariamente natural. Combater os desvios na área de saúde, por exemplo, não resulta automaticamente na instalação de mais leitos, da mesma forma que resolver casos de propinas e funcionários fantasmas não gera interferência direta nas formas de acesso a terra e moradia. Por isso, não se pode prescindir de um papel que cobre uma aplicação de recursos atenta ao enfrentamento das desigualdades e a uma priorização de minorias estigmatizadas e da população mais pobre, com vistas a implementar o projeto constitucional.

Lutar contra a corrupção é, portanto, apenas parte do papel do MP. Apartado de uma atuação concretizadora de direitos, dificilmente vai promover os objetivos constitucionais e a erradicação das desigualdades. O necessário combate à corrupção não efetiva, por si só, direitos fundamentais: estes são assegurados mediante cobrança firme e presente em políticas públicas e na forte interação com a sociedade civil, papéis também típicos do MP.

Combater à corrupção sem preocupar-se efetivamente com a concretização do projeto constitucional de garantia de direitos e transformação social conduz o Ministério Público a um risco que deve sempre evitar: o de ver suas ações serem manipuladas por grupos que buscam o poder político, utilizando o discurso de que a corrupção reside exclusivamente no agir do adversário. A instituição precisa estar efetivamente mais próxima da população, o que não se faz por coleta de assinaturas nem chamados salvacionistas, mas pela efetiva abertura e escuta às vozes das ruas, com novos instrumentos para uma participação contínua da sociedade nos rumos do Ministério Público. Os membros devem efetivamente ter compromisso com a construção do projeto constitucional, conciliando a preocupação com a probidade com a concretização de direitos, especialmente em favor dos mais vulneráveis.

A força do Ministério Público não reside apenas na atuação vigilante de seus membros nas pautas da cidadania e no relacionamento com os outros poderes, mas também no trabalho pela concretização de outras demandas surgidas nas ruas, do diálogo e parceria com os movimentos sociais e demais entidades organizadas da sociedade civil. O recorrente discurso de que as ruas salvaram o MP quando da votação da PEC 37 não deve ser rechaçado, mas sim aprofundado. Não deve ficar como uma passagem do passado, mas como um norte para o futuro, lembrando o protagonismo da sociedade na atuação conjunta com o Ministério Público. Apenas a atenção aos chamados e achados que as ruas trazem todos os dias para o MP pode impedi-lo de se tornar uma instituição monocular, que olha apenas para parte dos seus desafios e missões.

Julio José Araujo Junior – Procurador da República

Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros – Procurador da República

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