Violência contra indígenas no Brasil aumenta nos gabinetes e nas aldeias

No Cimi

Os retrocessos políticos que vêm açoitando os direitos da maioria da população brasileira têm como um de seus principais focos a apropriação das terras ancestrais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. E, obviamente, dos bens comuns nelas existentes, como a madeira, a água e os minérios, dentre tantos outros. Esta ofensiva anti-indígena, comandada pela bancada ruralista com apoio contundente dos poderes Executivo e Judiciário, extravasa os gabinetes oficiais e se concretiza “no chão”, tanto em ataques diretos às comunidades como no não cumprimento dos direitos constitucionais destes povos à demarcação de seus territórios, inviabilizando seu modo de vida tradicional.

Esta é uma das análises retratadas no Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados de 2016, que evidencia que houve um aumento de alguns dos mais significativos tipos de violência e violação de direitos, como mortalidade na infância, suicídio, assassinato e omissão e morosidade na regularização das terras tradicionais, quando comparados aos dados do ano anterior, 2015.

Importante instrumento utilizado na defesa dos povos e de seus direitos, a publicação ressalta que, mesmo sendo parciais, os registros da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) apontam a alarmante ocorrência de 735 casos de óbito de crianças indígenas menores de 5 anos em 2016. No ano anterior, haviam sido registradas 599 mortes. O maior número de mortes ocorreu na área de abrangência do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, com 103 óbitos, seguido pelo Dsei Xavante, onde foram registradas 87 mortes de crianças menores de 5 anos. É bastante preocupante também o elevado número de mortes de crianças nestas idades nas áreas de abrangência dos Dsei Maranhão (54), Médio Rio Solimões e Afluentes (53), Leste de Roraima (37) e Mato Grosso do Sul (30). Apesar da falta de mais informações sobre os óbitos das crianças, a própria Sesai reconhece que mortes ocorrem por falta de assistência e desnutrição grave.

Em relação aos suicídios, os dados oficiais registram a ocorrência de 106 casos entre os povos indígenas no ano passado, 19 a mais que em 2015. Os registros evidenciam uma realidade inquietante no estado do Amazonas, onde foram listados 50 suicídios nas áreas de abrangência dos Dsei Alto Rio Negro (6), Alto Rio Solimões (30), Médio Rio Purus (6), Médio Rio Solimões e Afluentes (6) e Vale do Javari (2).

Após a terceira solicitação enviada à Sesai, feitas através da Lei de Acesso à Informação, essa Secretaria, vinculada ao Ministério da Saúde, enviou ao Cimi dados, também preliminares, que apontam que em 2016 foram registrados 118 assassinatos de indígenas no país. Chama atenção o alto número de óbitos registrados na área de abrangência do Dsei Yanomami, um total de 44. O Mato Grosso do Sul foi o segundo estado com a maior quantidade de casos registrados em 2016, 18 assassinatos. Também se sobressaem os números de óbitos registrados pelos Dsei Ceará (11) e Maranhão (7). Os dados fornecidos pela Sesai, no entanto, não permitem, novamente, uma análise mais aprofundada, visto que não apresentam informações detalhadas das ocorrências, tais como faixa etária das vítimas, localidade e povo.

Uma das tragédias mais sintomáticas de 2016 ocorreu no município de Caarapó, em Mato Grosso do Sul, e ficou conhecida como o “massacre de Caarapó”. O assassinato de Clodiodi Aquileu Rodrigues de Souza ocorreu em meio a um violento ataque perpetrado contra a comunidade Tey i Kue, do povo Guarani-Kaiowá, em uma retomada da Fazenda Yvu, incidente sobre a terra indígena que está em processo de demarcação no Ministério da Justiça (MJ). O acampamento foi barbaramente atacado por mais de uma centena de agressores armados que chegaram em caminhonetes, atirando, e queimaram motos e diversos pertences dos indígenas. Outras seis pessoas ficaram feridas, entre elas uma criança de 12 anos. Episódios como este são frequentes no Mato Grosso do Sul, e marcam com horror as tentativas desesperadas e inevitáveis de retomar as terras que, por direito, pertencem aos indígenas.

Ainda em relação à violência contra a pessoa, houve o registro de 23 tentativas de assassinato; 11 casos de homicídio culposo; 10 registros de ameaça de morte; 7 casos de ameaças várias; 11 casos de lesões corporais dolosas; 8 de abuso de poder; 17 casos de racismo; e 13 de violência sexual.

Ritual durante o lançamento do Relatório 2016, em Brasília

“É terra que eles querem”

Especialmente a partir de uma atualização de informações feita pela Funai em 2016, o banco de dados do Cimi registra um aumento no total das terras indígenas no Brasil, que passou de 1.113, em 2015, para 1.296, em 2016, o que significa um acréscimo de 14%. Destas 1.296, apenas 401 terras, o que representa 30,9% do total, tiveram seus processos administrativos finalizados, ou seja, já foram registradas pela União como terras tradicionais indígenas.

Cabe ressaltar que os dados apresentados neste relatório em relação à omissão e morosidade na regularização de terras foram atualizados em 19 de setembro de 2017. Eles indicam a reveladora existência de 836 terras indígenas, o que corresponde a 64,5% do total, com alguma providência a ser tomada pelo Estado brasileiro. Destas, 530 terras, o equivalente a 63,3%, não tiveram quaisquer providências administrativas tomadas pelos órgãos do Estado brasileiro. Apenas no estado do Amazonas 199 terras estão nesta situação. Em seguida, vem o Mato Grosso do Sul (74), Rio Grande do Sul (37), Pará (29) e Rondônia (24).

O relatório apresenta um resumo da situação geral das terras indígenas no Brasil e uma extensa tabela que apresenta esses 836 territórios não demarcados, divididos por estado, e a situação de cada um deles no procedimento demarcatório. É sempre edificante lembrar que, de acordo com a Constituição Federal, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993, cinco anos após a sua promulgação, realizada no dia 5 de outubro de 1988. Ou seja, a dívida histórica recente do Estado brasileiro para com seus povos originários completa hoje 24 anos.  

Em 2016, também permaneceu a situação de constante invasão e devastação das terras indígenas, mesmo das que já estão demarcadas. No total, foram registrados 59 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Maranhão e Rondônia, com o registro de 12 casos cada, foram os dois estados que mais registraram ocorrências deste tipo. Na maioria dos casos, a invasão é feita para a retirada ilegal de madeira.

Um agravante desta situação que tem ocorrido com frequência é que, quando os indígenas, diante da falta de apoio dos órgãos oficiais, se organizam para eles mesmos garantirem a proteção de seus territórios ancestrais e resistem à exploração criminosa, madeireiros e jagunços apelam para a violência física e realizam ataques contra as comunidades.

Ainda no que tange aos direitos à terra, o Relatório traz um artigo sobre a inconstitucionalidade do “marco temporal”, uma das principais atuais ameaças aos povos, mesmo aqueles que já têm suas terras registradas. Esta tese político-jurídica restringe o direito à demarcação apenas às terras sob posse física das comunidades na data da promulgação da Constituição Federal. “A existência dos índios já é suficiente para afastar a teoria do ‘marco temporal’, pois a permanência e o futuro de um povo indígena estão condicionados a um espaço fundiário, à terra em si. Caso contrário, o direito perde sua eficácia, sua finalidade e proeminência e a morte dos povos indígenas é a morte do próprio direito”, afirmam os autores do artigo.

Além do “marco temporal”, existem diversos instrumentos, como propostas de emenda à Constituição, projetos de lei, medidas provisórias, condicionantes, portarias, estrangulamento orçamentário, desmonte do órgão indigenista, criminalização de lideranças e de seus apoiadores, dentre outros, que vão no sentido de fortalecer a empreitada dos ruralistas rumo à apropriação definitiva das terras dos povos indígenas.

“Não é à toa que os ruralistas têm esta ânsia voraz. Segundo dados do próprio Estado brasileiro, as terras indígenas são as mais preservadas e, portanto, estão repletas de bens comuns, como solo fértil, madeira, água boa, minérios. Tudo o que eles já depenaram dos territórios em que implantaram suas monoculturas para exportação, desertas de vida e empesteadas de veneno. Estas terras, é tudo o que eles querem. E farão qualquer coisa para por as suas sujas mãos nelas”, afirma Roberto Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul e um dos responsáveis pela elaboração do relatório. O Cimi registrou 12 casos de conflitos relativos a direitos territoriais, alguns deles bastante graves e violentos.

Em relação aos procedimentos demarcatórios realizados em 2016, as pressões feitas pelo movimento indígena para que Dilma, antes de ser submetida ao processo de impeachment, acelerasse a regularização das terras indígenas, resultaram na identificação pela Funai de 9 terras indígenas; na declaração pelo Ministério da Justiça de 10 territórios; e na homologação de três terras indígenas pela Presidência da República; além da criação de dois Grupos de Trabalho e da publicação de uma portaria de restrição. Mesmo assim, Dilma deixou o governo apresentando a menor média anual (5,25) de homologações de terras indígenas realizadas pelos presidentes da República desde o fim da ditadura militar.

O Cimi aborda também dados da omissão do poder público em relação à desassistência nas áreas de saúde e educação, desassistência geral, disseminação de bebida alcoólica e outras drogas e violência sexual. Em 2016 foram registrados um total de 128 casos destes tipos de ocorrências.

Análises e revelações

Além de artigos que aprofundam temas como a dotação orçamentária para as políticas indigenistas; a violência contra a mulher indígena; a difícil subexistência nos acampamentos das beiras de estradas; as violações da mineradora Vale na duplicação da Estrada de Ferro Carajás (EFC); e sobre a não implementação das recomendações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, em relação aos povos vítimas da ditadura militar, o relatório também apresenta uma análise sobre os principais desafios dos povos indígenas isolados e de pouco contato no Brasil.

Uma relação atualizada destes povos, que conta com diversas fontes e informações, inclusive sobre os principais riscos a cada um deles, revela que existem 112 povos/grupos de indígenas em isolamento voluntário no Brasil. Garantir a continuidade da existência destes povos diante do vertiginoso aumento do desmatamento, do avanço do agronegócio, da exploração madeireira, mineral e petrolífera, dos megaprojetos de infraestrutura e da desconstrução dos direitos indígenas, portanto, é uma das pautas mais urgentes e desafiadoras na realidade dos povos indígenas do Brasil e de todos que os apoiam.

Cartografia dos Ataques a Indígenas

A partir de 2017, o Cimi passou a alimentar com os dados de assassinatos de indígenas a plataforma Caci, palavra que, em Guarani, significa “dor”, e que serve também como sigla para Cartografia de Ataques Contra Indígenas. Desenvolvida pela Fundação Rosa Luxemburgo, em parceria com o Armazém Memória e InfoAmazonia, a Caci georreferencia dados de assassinatos de indígenas sistematizados a partir dos relatórios do Cimi e da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Desse modo permite a visualização das ocorrências deste tipo em um mapa digital e interativo. Os casos podem ser pesquisados por ano, estado ou povo e visualizados no mapa sobre diversas camadas de informações geográficas, inclusive terras indígenas.

A plataforma também evidencia a carência de qualificação dos dados oferecidos pelos órgãos públicos, que se resumem a números de assassinatos divididos por Dsei, sem apresentar o nome das vítimas, povo indígena, localidade ou causa da morte. A plataforma Caci pode ser acessada no endereço caci.cimi.org.br.

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