“Censurar é a pior maneira”: confira a entrevista com Lilia Schwarcz

Biógrafa de Lima Barreto conversou com o Jornal do Commercio sobre racismo, cotas, censura na arte e a importância do autor carioca

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Pesquisadora da questão racial no Brasil há quase 30 anos, Lilia Schwarcz, antropóloga, historiadora e escritora paulista, lançou recentemente a biografia de Lima Barreto: Triste Visionário. Ela esteve no Recife no último fim de semana participando da Bienal Internacional do Livro, onde ministrou no domingo (8) uma palestra sobre o posicionamento político e social do escritor carioca, sua vida e obra.

JORNAL DO COMMERCIO – A Bienal de Pernambuco está homenageando Lima Barreto nesta edição, cujo tema é “Literatura, Democracia e Liberdade”. De que maneira essa tríade de temática esteve presente na obra e na vida de Lima?

LILIA SCHWARCZ – Esses são três temas muito conectados na obra de Lima Barreto. Ele descende, dos dois lados da família, de escravizados, uma história que também fala muito do Brasil, que nos sabemos sempre o lado materno da descendência, e desconhecemos o paterno. Desconhecemos entre aspas, porque a paternidade não é assumida. No caso de Lima Barreto, o seu avô era também proprietário da avó. Essas são histórias brasileiras, assim como são histórias brasileiras o fato dos Barretos acharem que a liberdade não viria da letra fechada da lei, mas deveria vir a partir da educação. O pai de Lima Barreto foi um tipógrafo, bastante bem-sucedido, e a mãe uma professora e diretora de escola, e ambos ensinaram a Lima Barreto o valor da liberdade. Existe um mesmo texto em quatro versões, em que ele lembra quando a professora dele veio contar que não haveriam mais escravos no Brasil.

No primeiro conto ele recebe como quase uma ideia milagrosa, e diz que vai para casa para contar ao pai que não pode mais ser colocado de castigo. E nos textos subsequentes ele vai caindo de sonho em sonho, e chama a atenção como a liberdade, num país que aboliu a escravidão só em 1888, era uma dádiva, um prêmio muito difícil de lograr, de manter. Por isso ele mistura a liberdade com a ideia de cidadania e introduz essa questão no contexto do pós-emancipação brasileiro, que prometeu muito e entregou pouquíssimo. A democracia é, portanto, uma questão fundamental para Lima Barreto. Ele acha que é preciso lutar por uma democracia mais inclusiva, ele que se bateu pela questão do racismo, o racismo estrutural que se mantém presente até os dias de hoje. E literatura era a voz de Lima Barreto, ele registrou em seu diário que “a literatura ou me dá o que eu peço ou me mata.” Foi um escritor que morreu muito cedo, com 41 anos, com muitos projetos, muitos sonhos. Portanto essa tríade move o projeto literário de Lima Barreto.

JC – O que o fato de temáticas que já eram debatidas no Brasil recém saído da escravidão e que ainda são centrais em 2017 tem a nos dizer sobre nosso País e sua evolução nesses mais de 100 anos?

LILIA – Eu costumo dizer que história é exercício de lembrar, mas é também exercício de esquecer. Por outro lado história é mudança, mas história carrega repetição. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e recebemos quase a metade dos africanos que saíam compulsoriamente de seu continente e, sobretudo diferente dos Estados Unidos, foram escravizados no território todo. Então o que aconteceu, e que Lima Barreto fala com impressionante clareza, era que o que aconteceu no pós-emancipação eram formas continuadas de escravidão, seja na maneira com a qual os senhores continuavam a encarar seus trabalhadores, sem registros de trabalho, de horas trabalhadas, seja também a partir da própria linguagem dos políticos, dos costumes, descriminações. São 100 anos e o Brasil continua praticando um racismo estrutural. Se existe uma evolução ela tem sido muito lenta entre nós, a novidade positiva é que essa questão deixou de ser invisível.

FALTA ESCUTA NO BRASIL

JC – Você estuda a questão racial no Brasil há mais de 20 anos. Como avalia as mudanças relacionadas a esse tema desde que começou a pesquisar?

LILIA – Eu estudo essa temática desde meu mestrado, que se chamou Retrato em Branco e Negro e foi publicado na época do centenário da abolição. Quase quando a estudar isso era na academia quase que uma não questão, já era invisível e ao mesmo tempo visível: essa é a ambiguidade do racismo brasileiro porque ele combina uma certa inclusão “cultural” com uma grande exclusão social. Depois disso eu publiquei o Espetáculo das Raças, em que eu mostrava a partir de instituições como a faculdade de medicina, direito, os museus etnográficos, como estávamos a um passo do apartheid social e viramos o país da “democracia racial”.

E depois nunca abandonei o tema, em Brasil: Uma Biografia, Heloisa [Starling] e eu mostramos que esse é um pilar para entender esse nosso biografado chamado Brasil e agora em Lima Barreto: Triste Visionário essa questão volta a ter protagonismo. E o que mudou? Quando eu investi primeiro nesses temas, existiam colegas que diziam que eu estava inventando, mas eu sempre brincava que deveria ser então muito poderosa para ter essa capacidade de invenção…Acho que agora nos vivemos num momento que o tema é incontornável na nossa agenda e temos muitas posições – eu penso que democracia é isso, lidar com a diferença – e o tema, sim, veio para ficar. Sempre defendo que a questão racial deve ter o protagonismo das populações afro-brasileiras, negras, pois são elas que sofrem a dor da discriminação racial, que é uma dora profunda. No entanto, a minha posição é que o racismo é uma questão do brasileiros, da nossa República, então cabe a nós, todos os brasileiros, a assumir o tema, sem tirar o protagonismo.

JC – A USP, uma das maiores universidades do Brasil. aprovou em julho o sistema de cotas raciais. Como essa decisão deve refletir na dinâmica da universidade no próximo ano letivo?

LILIA – Sempre fiz parte do Inclusp, um dos programas que batalhou pela inclusão social, e eu sempre me coloquei a favor das cotas, acho que elas devem ser incluídas nas nossas universidades não só por conta do nosso passado – temos sim um ressarcimento para pensar e agir, é preciso desigualar para depois igualar, por isso pensar em política de cotas como transitórias – mas eu também penso nas cotas como algo positivo, porque quanto mais pluralidade nos tivermos, melhor será para todos. Então se a USP finalmente tiver um alunato mais diversificado, todos vão sair ganhando. A USP demorou muito sim, o momento que se apresenta é um momento de desafio e acho que a dinâmica da universidade vai começar a mudar quando nos pudermos ver um corpo dicente mais múltiplo, que vai transformar a universidade em um local mais plural, aberta, que faz do Brasil uma nação formada por muitas nações.

JC – Ocorreram, recentemente no cenário cultural brasileiro, casos que geraram censura e muita polêmica, como o encerramento da mostra Queermuseu e a presença de uma criança na performance em que o artista fica nu, no MAM. Em ambos os casos grupos conservadores e religiosos ganharam força. O que esses dois acontecimentos tem a dizer sobre nossa sociedade?

LILIA – Eu tenho atuado como curadora adjunta para histórias no Masp, sobre a direção do Adriano Pedrosa, e agora no dia 19 de outubro vamos abrir uma mostra chamada Histórias da Sexualidade, que faz parte de um desenho do museu que vai se movendo em torno das nossas várias histórias. Tivemos já o Histórias da Infância e ano que vem as afroatlânticas, Indígenas e Feministas. Eu lamento muito o que aconteceu na mostra Queermuseu, acho que censura é a pior maneira de nos atuamos e o diálogo é a única maneira possível de atuação. O que menos tem aparecido é uma discussão sobre a arte, seu papel transgressivo. Fiz um post explicando há pouco tempo no Facebook sobre quais eram as influências e o diálogo que Adriana Varejão estabeleceu na sua obra Cena de Interior 2.

Tive o texto retirado do Facebook e até uma quarentena dele. Penso que essa situação em relação ao Queermuseu e à performance do MAM, que tinha indicação de idade, a ideia de simplesmente censurar e agora o impedimento para que a mostra seguisse para o Rio de Janeiro, falam muito do momento de moralização, normatividade, de intransigência que estamos vivendo na sociedade brasileira. A democracia se faz no diálogo com as diferenças, e o que estamos precisando é de mais diálogo e mais escuta para que possamos entender o que é literatura, o que é arte e quais seus papeis. Temos que abrir a discussão e não estringir a um caso específico, sobretudo retirando o caso de seu contexto e sem discutir o que é arte. Se as mesmas pessoas que estão censurando essa mostra quiserem discutir arte, acho que será o melhor dos mundos. Falta escuta no Brasil.

Lilia é antropóloga, historiadora e escritora. Foto: Bobby Fabisak/JC Imagem

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