Caso Aécio leva o Supremo a um caminho de dissolução da Constituição

Por Victor Augusto Estevam Valente* e Lucas Catib de Laurentes** – Consultor Jurídico

Observando o comportamento de diferentes cortes constitucionais, Bernhard Schlink afirmou que o tribunal que experimenta uma expansão de seu poder dificilmente admite a restrição dessa prerrogativa. É o que hoje ocorre com o Supremo Tribunal Federal no julgamento do caso do senador Aécio Neves. A origem do poder hoje exercido pelo Supremo está no julgamento do pedido de afastamento do ex-deputado Eduardo Cunha (AC 4.070). Naquela oportunidade, revestido de um discurso de moralização e combate à corrupção e sustentando que a situação ali enfrentada era excepcional ao ponto de exigir medidas excepcionais, os ministros consideraram, por unanimidade, que o mandado parlamentar poderia ser suspenso por decisão do Plenário da Corte.

Passado mais de um ano desde essa sessão de julgamento, a situação de anormalidade institucional normalizou-se e, o que era excepcional, pode se tornar regra. Justamente com fundamento no que foi decidido para o caso de Eduardo Cunha, a 1ª Turma do Supremo diz agora que sempre será possível ao Judiciário impor, sem prévio ou posterior consentimento de qualquer das casas do Congresso, a suspensão do mandato parlamentar. O fundamento também é o mesmo utilizado para o julgamento de Eduardo Cunha: o poder de cautela, sobretudo na decretação de medidas cautelares diversas à prisão, como no caso da suspensão do exercício da função pública.

Mas olhando retrospectivamente e também considerando o futuro da divisão constitucional dos poderes no Brasil, justifica-se a manutenção desse poder nas mãos do Supremo Tribunal Federal?

A resposta pressupõe a análise de duas questões. A primeira diz respeito à possibilidade de uma decisão judicial definitiva de processo criminal cassar o mandato de um parlamentar. É incrível constatar que, passados praticamente 30 anos desde a promulgação da atual Constituição Federal, o Supremo Tribunal Federal ainda não tenha entendimento sedimentado quanto a essa matéria. Entre muitas incertezas e incongruências, ao menos três posições diferentes foram construídas ao longo do tempo.

Primeiro, sustentou-se que a condenação criminal transitada em julgado era causa automática da perda do mandato parlamentar (AP 470 – mensalão). O segundo passo e a reviravolta vieram com a mudança parcial da composição da corte, o que fez com que a maioria de seus membros considerasse que a competência para decretar a perda do mandato parlamentar é exclusiva das casas do Congresso nacional (AP 565 – Ivo Cassol). Enfim, a 1ª Turma do tribunal hoje se propõe a criar uma via alternativa — inexistente no texto constitucional — para solucionar a questão: a perda de mandato ocorreria se a condenação criminal aplicasse pena privativa de liberdade em regime fechado; caso contrário, a decisão caberia à casa do Congresso (AP 694). Enfim, deixando de lado esse último exercício de criação constitucional da 1ª Turma, a posição atual do Plenário do Supremo ainda é o de que compete ao Parlamento cassar o mandato parlamentar.

Isso leva à segunda questão a ser aqui abordada. Ela diz respeito à relação de proporcionalidade que deve existir entre a medida cautelar e a sentença final a ser aplicada no processo penal. Hoje previstas no artigo 319 do CPP, as medidas cautelares diversas à prisão, quando aplicadas, restringem ou suspendem direitos do acusado antes da condenação criminal.

E, sejam elas autônomas ou substitutivas da prisão preventiva, tais medidas devem sempre guardar uma proporcionalidade em relação ao provimento final almejado no processo, não podendo aumentar a intervenção penal de forma injustificada.

No modelo adotado aqui pelo legislador brasileiro, isso quer dizer que a imposição da medida cautelar aplicada deve ser necessária, ou seja, deve ser um recurso imprescindível para garantir a aplicação da lei penal e assegurar o regular desenvolvimento da persecução criminal, desde que presentes o fumus comissi delicti e o periculum libertatis[1].

Acrescenta-se que, no juízo criminal, a fundamentação das medidas cautelares difere-se daquela do processo civil, sendo vedado o poder geral de cautela[2].

Analisando sobre a inexistência desse poder no processo penal, complementa Hassan Choukr: “Assim, a norma processual penal, da mesma maneira que a norma de direito penal material, reveste-se de taxatividade das previsões restritivas de direitos fundamentais, devendo possuir redação certa e precisa, evitando expressões “porosas” como a encontrada na fundamentação “ordem pública” da prisão preventiva […]”[3].

Acrescenta Lopes Jr: “Toda e qualquer medida cautelar no processo penal somente pode ser utilizada quando prevista em lei (legalidade estrita) e observados seus requisitos legais no caso concreto”[4].

Assim, a medida cautelar deve possuir uma possibilidade jurídica para que seja pleiteada, ou seja, deve ser admitida, taxativamente, na legislação processual ou em qualquer lei dessa natureza. É dizer, o pedido do autor deve se enquadrar em um dos preceitos da legislação processual, em homenagem aos princípios da legalidade e da taxatividade.

Caso contrário, a possibilidade do poder geral de cautela acarretaria uma ampla discricionariedade judicial, aviltando o sistema acusatório e os princípios da legalidade e da imparcialidade — ainda que seja salutar, em tese, o combate à corrupção[5].

Salienta-se que o Capítulo I do Titulo IX do CPP (“Da Prisão, Das Medidas Cautelares e Da Liberdade Provisória”) trata das “Disposições Gerais” para aplicação das medidas cautelares pessoais[6].

Na decretação de qualquer dessas medidas, o juiz se vincula aos referenciais da necessidade (inciso I) e da adequação (inciso II), com arrimo no artigo 282 do CPP. Vale dizer, essas medidas devem ser decretadas desde que adequadas e necessárias para garantir a aplicação da lei penal e observando-se a conveniência da investigação ou da instrução criminal, com fundamento no princípio da proporcionalidade.

Essa sistemática visa a assegurar que nenhuma providência cautelar seja superior ao resultado final do processo, sendo imprescindível a proporcionalidade na persecução criminal[7]. Justifica-se, com isso, a “ultima ratio” da prisão preventiva, assegurada no artigo 282, § 6º, do CPP.

Entendemos, no entanto, que a lei processual pode dar margem para amplas interpretações, ao afirmar que a aplicação da medida cautelar deve ser adequada à gravidade do crime e à responsabilização do agente, o que pode significar, em casos extremos, uma antecipação do juízo final de aplicação da pena, fato totalmente incompatível com um sistema penal acusatório e com a regra constitucional do estado de inocência (artigo 5º, LVII, CF).

Isso reforça que, para que a medida cautelar seja caracterizada como tal e não implique em antecipação indevida da pena, ela deve ter uma relação de instrumentalidade com o provimento final pretendido.

Não tem sentido, por isso, impor uma medida cautelar de proibição de contato com outras pessoas quando o crime foi praticado por só uma pessoa e o ato não envolva violência; assim como não tem sentido o afastamento de um funcionário público de sua função que responda pela prática de um crime de embriaguez ao volante. Enfim, e mais importante, a medida cautelar deve guardar uma relação de adequação com a pena a ser eventualmente imposta. Não é possível, por exemplo, que se imponha uma medida cautelar de afastamento do funcionário público a um acusado pela prática de crime de lesão corporal, pois nem mesmo a condenação criminal definitiva pode aplicar tal medida (artigo 92, I, CP).

E, não bastasse isso, a medida cautelar de suspensão da função pública é, ainda que destinada a evitar a prática de novas infrações penais, objeto de controvérsias.

Primeiramente, o artigo 319, inciso VI, do CPP, faz referência expressa à “suspensão do exercício da função pública”, deixando de mencionar a suspensão do mandato eletivo[8].

Corroborando do entendimento de Choukr, o afastamento cautelar da função pública estende-se à função administrativa, que compreende: (i) as atividades desenvolvidas pelo Estado ou por seus delegados sob regime de direito público; ou (ii) o conjunto de poderes destinados a satisfazer os interesses essenciais vinculados á proteção dos direitos fundamentais, sob regime jurídico infralegal e que se submete ao controle jurisdicional[9].

Contudo, nos parece inviável a decretação, pelo Judiciário, da suspensão do mandato eletivo, pois o exercício do cargo decorre de fundamentação constitucional e, acima de tudo, de livre manifestação do voto popular. Logo, ainda que se entenda pela existência de medida cautelar pessoal a ocupantes de cargo eletivo, não se revela possível o afastamento do mandato eletivo, mas apenas a sua desconstituição como efeito da condenação criminal, seguindo o imperativo constitucional (artigo 53, §2º, da CF). E, no caso dos parlamentares, a perda do mandato eletivo deve ser submetida à respectiva Casa do Congresso nacional[10].

Ademais, entendemos que a suspensão do mandato eletivo é medida interditiva de “perigosa futurologia”, pois não há prazo máximo de duração da suspensão da função pública, podendo tal medida causar uma antecipação do cumprimento da pena e severas restrições dos direitos fundamentais.

Para Lopes Júnior: “É medida extremamente gravosa e que deverá ser utilizada com suma prudência, sendo inclusive de discutível constitucionalidade. Não se tutela o processo ou seu objeto, aproximando-se tal medida a uma (ilegal) antecipação da prevenção especial da pena”[11].

E, se descumprida tal medida, como no caso de um parlamentar, torna-se inviável convertê-la em prisão preventiva, devido à imunidade parlamentar em crimes afiançáveis, havendo um descompasso dentro do sistema de medidas cautelares pessoais.

Por fim, se a decretação da perda (intensidade mais drástica) cabe à respectiva casa do Congresso Nacional, necessariamente a suspensão (intensidade menos drástica) também é de alçada da mesma casa, com base na teoria constitucional dos poderes implícitos.

É exatamente nesse ponto que surge a perplexidade com o julgamento, não só do caso Aécio Neves, mas também com relação ao do ex-deputado Eduardo Cunha. Afinal se nem mesmo o Supremo admite hoje a possibilidade de o julgamento definitivo de mérito em processo criminal em que o acusado seja deputado ou senador possa automaticamente afastar esses parlamentares de seus cargos eletivos — lembre-se que o único precedente que admitiu essa possibilidade foi julgado pela 1ª Turma desse tribunal — como essa mesma corte admite o afastamento desses mesmos representantes em provimento cautelar? E como se pode falar em instrumentalidade da medida cautelar que pode e faz mais do que o provimento definitivo, que ela, cautelar, se destina a assegurar? Essas não são questões puramente teóricas, pois a depender do período de afastamento a que o parlamentar se veja submetido, período esse que está diretamente relacionado à demora da tramitação do processo penal no Supremo, a medida cautelar imposta poderá significar a perda tácita do mandato parlamentar. Fora isso, uma vez afastado de suas funções, o parlamentar estaria desprotegido em relação às imunidades formais e materiais asseguradas pela Constituição e, com isso, pela via transversa da aplicação da medida cautelar de afastamento, o Supremo faria com que todas as prerrogativas funcionais asseguradas pela Constituição aos membros do parlamento se tornassem letra morta.

Ao seguir esse caminho, o Supremo Tribunal Federal não se mostra só como uma corte ativista, que desconsidera o texto e a sistemática constitucional da divisão dos poderes. Ele também entra na guerra constante da política pela busca do poder. O estudo de Schlink mostrou que esse é um caminho sem volta que leva a uma jornada sem fim em direção à dissolução das instituições e da Constituição. Resta saber se o Supremo está disposto a seguir essa trilha e também a pagar esse preço. Não se olvida que é indispensável combater a corrupção, contanto que o Pretório Excelso o faça em estrito respeito à separação de poderes e, acima de tudo, em acautelamento à Constituição.


[1] O procedimento das cautelares tem uma roupagem diferente no processo penal, no qual a aplicação destas medidas não se condiciona à existência de um processo cautelar. Cabe a imposição dessas medidas, em suas diversas modalidades (assecuratórias, probatórias e pessoais), tanto na investigação como na fase processual, desde que imprescindíveis para o regular desenvolvimento da persecução criminal.

[2] Entende parte da doutrina, noutro viés, que é possível o poder geral de cautela, conferindo maior eficiência ao processo penal.

[3] CHOUKR, Fauzi Hassan. Medidas cautelares e prisão processual: comentários à Lei n. 12.403/2011. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 45.

[4] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 602.

[5] Afirma Lopes Júnior que, com o advento da Lei n. 12.403/2011, foi ampliado o rol de medidas cautelares, embora ainda tenha subsistido com tal atelração uma “cláusula geral”, “deixado ao livre-arbítrio do juiz criar outras medidas além daquelas previstas em lei” (LOPES JR., Aury. Direito processual penal, p. 603).

[6] Em sua redação original, o CPP disciplina medidas cautelares de diversas naturezas, a saber: (i) assecuratórias ou de natureza patrimonial; e (ii) de natureza probatória. Com o advento da Lei n. 12.403/2011, o CPP aprimorou os fundamentos de um terceiro grupo de medidas cautelares, chamadas de medidas cautelares pessoais, que se dividem em prisões cautelares e medidas cautelares diversas à prisão.

[7] Ilustra Pacelli: “Na mesma direção, têm-se prudência e proporção na vedação de imposição de quaisquer medidas cautelares – incluindo a prisão preventiva – para as infrações às quais não seja prevista pena privativa de liberdade (art. 283, §1º, CPP). Como regra, nenhuma providência cautelar pode ser superior ao resultado final do processo a que se destina tutelar. Há também manifesta proporcionalidade em relação aos crimes culposos, para os quais permanece vedada a prisão preventiva, ressalvada a hipótese do art. 313, parágrafo único, CPP, limitada a prisão para e até a identificação do acusado. Ora, se o art. 44, I, CP, autoriza a substituição da pena, qualquer que seja aquela aplicada, para os crimes culposos, por que razão se recorrer à prisão preventiva??? Aqui, a desproporção da medida restaria evidente! A medida cautelar seria mais grave que a pena aplicada” (PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 508).

[8] Segundo Badaró, não deve prosperar o raciocínio de que, se possível a decretação da prisão preventiva, “a fortiori” não haveria restrições para medidas cautelares menos graves, a exemplo da suspensão do mandato eletivo (BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1.084).

[9] CHOUKR, Fauzi Hassan. Medidas cautelares e prisão processual, p. 116.

[10] Cf. PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal, p. 515.

[11] LOPES JR., Aury. Direito processual penal, p. 680.

*Advogado, mestre em Direito Penal pela PUC-SP, professor em Direito Penal da PUC-Campinas.

**Mestre e doutor em Direito constitucional pela USP.

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