Brasil mata criança de bala e doença. E quem sobrevive tem que trabalhar, por Leonardo Sakamoto

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”Trabalhei desde criança e isso moldou meu caráter”, ”aprendi a dar valor às coisas com o suor do meu trabalho desde muito pequeno”, ”criança ou está vagabundeando ou está trabalhando” e ”para consertar uma criança delinquente é só por no trabalho pesado”.

É triste ver parte dos trabalhadores, que foi acostumada a ser explorada, passando a justificar a sua própria exploração e a de seus filhos, repetindo bovinamente um discurso que foi reservado aos mais pobres: só o trabalho liberta.

Até entendo que muita gente sinta que sua experiência de superação individual é bonita o suficiente para ser copiada pelos outros. Mas o fato é que o trabalho infantil não precisa ser hereditário.

O artigo 7º da Constituição diz que é ilegal o trabalho noturno, perigoso ou insalubre de crianças e adolescentes com menos de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. Crianças podem ajudar nas tarefas domésticas e aprender o ofício dos pais, desde que sua participação não seja fundamental para a manutenção econômica da família.

Há, contudo, parlamentares que declaram que o rebaixamento da idade mínima poderia mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Em bom português: já que o Estado e a sociedade são incompetentes para impedir que seus filhos e filhas dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar o trabalho infantil.

E qual seria o próximo passo quando o mercado e a competição global abocanharem trabalhadores de 14 ou 12 anos? Reduzir a idade para dez?

Ao repetir frases como as do início deste texto, simplesmente abrimos mão de refletir sobre a própria exploração. E reproduzimos um modelo imposto, em que os filhos dos mais ricos não precisam trabalhar antes de completar sua pós-graduação enquanto os dos mais pobres abraçam o batente antes de entrar na escola.

Qual a mensagem que o Brasil deseja passar com isso? Que dessa forma, com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida.

Se tivermos que alterar algo prefiro ficar com a proposta do então presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, que defendeu o aumento na idade mínima legal para se começar a trabalhar no Brasil. Ele afirmou que filhos de famílias ricas raramente começam a trabalhar efetivamente antes dos 25 anos de idade – e depois de muito investimento e tempo de formação. Enquanto isso, filhos de pais pobres são condenados a começar a trabalhar cedo, não conseguem evoluir em termos de formação e acabam ocupando postos de baixa qualificação e mal remunerados que compõem a base do mercado de trabalho.

De acordo com a última estimativa organizada pela Organização Internacional do Trabalho, pela Organização Mundial de Migrações e pela Fundação Walk Free há 152 milhões de crianças trabalhando em todo o mundo – 64 milhões de meninas e 88 milhões de meninos. A maior parte delas está no continente africano (72,1 milhões), seguido pela região da Ásia/Pacífico (62 milhões), América (10,7 milhões), Europa e Ásia Central (5,5 milhões) e Oriente Médio (1,2 milhão).

Cerca de um terço das crianças entre cinco e 14 anos que trabalham não estudam e 38% do trabalho infantil em atividades perigosas envolvem crianças nessa mesma faixa etária. E quase dois terços dos que têm entre 15 e 17 anos trabalham mais de 43 horas por semana.

Entre 2005 e fevereiro de 2016, as ações de fiscalização contra o trabalho infantil no Brasil afastaram mais de 64 mil crianças e adolescentes dessa condição. Dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostram que 2,67 milhões de crianças e adolescentes entre cinco e 17 anos trabalhavam no Brasil em 2015. Um estudo da Fundação Abrinq mostrou um aumento de 8,5 mil crianças de 5 a 9 anos em situação de trabalho infantil, enquanto a faixa de 10 a 17 anos reduziu em 659 mil na comparação entre 2015 com 2014. Efeitos da crise econômica.

O Brasil segue com dificuldades de combater o núcleo duro do trabalho infantil, formado pelo trabalho infantil rural, o trabalho infantil urbano informal e ilegal, o trabalho infantil doméstico e a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Ao mesmo tempo, contamos com uma das mais altas taxas de jovens estudantes entre 15 e 16 anos que também trabalham, de acordo com dados do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Ao todo, 43,7% desses jovens brasileiros exercem atividade remunerada antes ou depois da escola. Mais do que nós apenas a Tunísia, Costa Rica, Romênia, Tailândia e Peru. Muito longe da Coreia do Sul (5,3%), que é sempre usado por políticos daqui como exemplo em educação. Segundo a pesquisa, estudantes que trabalham tendem a ir pior em avaliações de ciência, a abandonar os estudos antes do final do ensino médio e chegar atrasado ou faltas às aulas.

Ao longo do anos, acompanhei muitas histórias tristes. Uma criança ficou cega após acidente de trabalho no interior do Pará – ela estava carregando cacau, quando tropeçou em um tronco e caiu com o olho esquerdo em um toco de madeira. Ou jovens que trabalhavam em matadouros no Rio Grande do Norte, descarnando bois. Uma menina, de 15 anos, que retirava esterco das tripas disse que recebia em produtos para levar para casa. Ou ainda crianças e adolescentes escravizados em fazendas de gado na Amazônia. “Brincadeira lá é muito pouca”, explicou-me um deles.

Passado um primeiro momento de grande arrancada na prevenção e eliminação do trabalho infantil no Brasil, do início dos anos 1990 a meados dos anos 2000, o país enfrenta um novo desafio para manter o ritmo de queda. Enquanto a primeira fase foi marcada pela retirada de crianças e adolescentes das cadeias formais de trabalho, o novo desafio são as piores formas, que o poder público tem mais dificuldade de alcançar. E isso em meio a uma forte crise econômica na qual, a primeira vítima, é a dignidade de quem não pode reclamar.

Às crianças e adolescentes mais pobres damos três alternativas: morrer de doença, falta de cuidados médicos e como consequência de saneamento básico inexistente; serem assassinadas em meio à violência na periferia das grandes cidades ou nos conflitos no campo; começar a trabalhar desde cedo para ajudar a garantir a sua sobrevivência e à da própria família.

Sabe aquela história de que o Brasil é o país do futuro? Então, era piada. De mau gosto.

 

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