DPU repudia Portaria que tenta esvaziar conceito de trabalho escravo no Brasil

Nota de Repúdio à Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129/2017, ao esvaziamento do conceito de Trabalho Escravo e ao desmonte das políticas públicas de Fiscalização do Trabalho Escravo no Brasil

A Defensoria Pública da União (DPU) vem a público manifestar repúdio à Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, publicada em 16 de outubro de 2017, que dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho.

A referida portaria pretende, ao arrepio da Constituição Federal, da lei e dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil sobre a fiscalização de trabalho escravo, limitar a fiscalização do trabalho e reduzir o conceito de trabalho escravo já sedimentado no ordenamento jurídico brasileiro, esvaziando as hipóteses de configuração do crime caracterizadas por meio de submissão de trabalhador a jornadas exaustivas e a condições degradantes de trabalho, previstas no artigo 149 do Código Penal, e que, conforme já pacificado pelo Supremo Tribunal Federal, configuram violação à dignidade humana, independentemente da restrição de liberdade de ir e vir.

No entanto, a portaria, ao definir os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva, condição degradante e condição análoga à de escravo, a rigor, condiciona todas essas hipóteses à necessidade de ocorrência de violação do direito de liberdade formal, ou liberdade de ir e vir, desconsiderando toda e qualquer possibilidade de configuração de violação à dignidade humana por meio de outros tipos de violência e de coação, como fraude, engano, abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade. De se notar que a violência explicita, de violação da liberdade de ir e vir, é de difícil comprovação, na medida em que não deixa, em muitos casos, vestígios aparentes, dificultando sua identificação e repressão, ao contrário da jornada exaustiva e das condições degradantes, com o que a repressão ao trabalho escravo no Brasil por meio da fiscalização do trabalho, a partir da portaria, restará absolutamente prejudicada.

É oportuno lembrar que há anos se tenta no âmbito do Congresso Nacional reduzir o conceito de trabalho escravo estabelecido no ordenamento jurídico brasileiro, por meio de projetos de lei, que pretendem alterar o Código Penal ou regulamentar o artigo 243 da Constituição Federal, de modo a restringir a caracterização do crime às estritas hipóteses de violação do direito de liberdade formal. Mas a luta pela manutenção do atual conceito, por meio da atuação de diversos atores comprometidos com a erradicação dessa violação de direitos humanos no Brasil, tem sido exitosa no sentido de impedir a aprovação de tais projetos de lei. Não obstante, o Ministério do Trabalho, com a edição da portaria em questão, pretende, na prática, alterar e esvaziar o conceito de trabalho escravo vigente, através de ato normativo infralegal, usurpando de toda a sociedade brasileira, através do debate democrático, o poder de legislar sobre tema tão relevante.

Lembramos, ainda, que a República Federativa do Brasil vem se omitindo no combate ao trabalho escravo, inobstante haja enorme esforço dos órgãos de controle para tanto, no enfrentamento do tema, fato constatado em recente condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Fazenda Brasil Verde. A sentença prolatada pela Corte ainda não foi implementada em sua completude e episódios recentes, como a edição da Portaria 1129/2017, a resistência na divulgação da lista suja do trabalho escravo, a redução de recursos orçamentários para a atuação nos grupos móveis de fiscalização e a exoneração do chefe da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, demonstram não apenas uma omissão no tratamento da questão, mas atos comissivos que redundam no desmantelamento de estrutura existente de combate ao trabalho escravo no Brasil.

Assim, o esvaziamento do conceito de trabalho escravo e as limitações impostas à fiscalização do trabalho estabelecidos na portaria em tela, além de medida ilegal e inconstitucional, constitui inequívoco retrocesso social, absolutamente incompatível com os Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos e com as políticas públicas empreendidas no Brasil visando à proteção da dignidade de milhares de trabalhadoras e trabalhadores que, em razão de uma discriminação histórica e estrutural, se veem submetidos a formas intoleráveis de exploração do trabalho.

Grupo de Trabalho Erradicação do Trabalho Escravo

Defensoria Pública da União

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