Mil dias sem Marielle e os carrascos à solta

Do feminismo negro à democratização da universidade, ela representou um despertar rebelde para muitos. Por isso, luto também é grito por justiça, como sugere Butler — e a indignação, um chamado para enfrentar a Política da Morte

por Jaquelina Imbrizi*, em Outras Palavras

Ato I – O meu primeiro encontro com Marielle

A primeira vez que soube da existência de Marielle Franco foi no dia posterior à sua morte. Eu recebi a notícia pelas redes sociais e verificando a página do meu Facebook. Fiquei impressionada com um corpo lindo e um rosto sorridente, que como disse o sociólogo Laymert Garcia dos Santos (Maretti, 2019), carregava na pele um feixe de lutas: mulher, negra, em união estável homoerótica, bissexual, mãe, vereadora, ativista de direitos humanos e nascida na favela, mais especificamente no Complexo da Maré, Rio de Janeiro. Como muitos brasileiros e muitas brasileiras, ela trazia na pele o fato de que morava na periferia e coabitou com pessoas em situação de vulnerabilidade social. Que assassinato horrível, que violência e covardia contra uma vereadora que encerrava seu expediente de trabalho à noite! – Ainda temos as imagens da roda de conversa da qual ela participava com um grupo de jovens feministas que discutia política. Fiquei estarrecida com o noticiário que transmitia a violência contra uma mulher que ocupava um cargo público, representante política e eleita em pleito democrático.

Olhando hoje para essa cena, penso os efeitos do impacto de sua morte que ainda ressoam em mim. Marielle me marca a ponto de eu nunca esquecer a possibilidade de escrever um texto, como uma homenagem póstuma a ela e como modo de contribuir para que nenhum e nenhuma de nós esqueça a sua força e potência transmutadas em luta por uma Política da Vida.

O impacto afetivo tão forte que a notícia de seu assassinato causou em minha subjetividade pode estar relacionado ao que mais tarde aprendi com Sidarta Ribeiro (2019) e que se refere aos efeitos no cérebro de atividades que a pessoa realiza logo ao se deitar, nos minutos antes de dormir ou nos instantes seguintes a acordar de uma boa noite de sono. Pois é, naquela época eu tinha como costume espiar o celular como primeira atividade ao despertar; o aparelho já ficava na mesa de cabeceira, ao alcance de minha mão. Assim soube do assassinato da vereadora, quase à queima-roupa, na indefensabilidade de quem acaba de acordar e ainda em um estado psíquico que Walter Benjamin denomina limiar, a fímbria entre sono e vigília que se assemelha da fronteira entre vida e morte (Gagnebin, 2014). Eu também tão perto da sensação de morte, tomei conhecimento da existência de uma mulher tão potente ao mesmo tempo que recebia a notícia de seu bárbaro assassinato. Fiquei apaixonada pela imagem de Marielle, interessada em saber mais sobre ela, e fui pesquisar sobre sua trajetória de vida e seu percurso político. Desse encontro póstumo nasceu instantaneamente uma identificação com sua figura. Assim como no texto “Luto e melancolia”, no qual Freud (1917/2010a) apresenta como um dos processos do trabalho do luto um tipo de identificação narcísica que incorpora qualidades do objeto perdido, ela se tornava pouco a pouco parte de mim e uma referência a ser imitada e seguida. Tornava-se um ideal de existência de alguém que luta em favor das pessoas em situação de vulnerabilidade social, princípio que já fazia parte da minha vida, mas ali levado ao espaço público parecia que me chamava para algo, produzia um tipo de interpelação de um modo irreversível que suscitou em mim uma mudança de posição subjetiva diante da vida, superação de inibições e abertura para eu me posicionar nos espaços públicos virtuais e presenciais. Penso, no momento atual, que foi uma mudança radical em minha vida e fui tomando posse dessa transformação, paulatinamente, nesses mil dias de seu assassinato.

A minha fixação à imagem de Marielle, explicada por um neurocientista (Ribeiro, 2019), decorre do costume desaconselhável de verificar as informações no celular logo após o despertar. Seria mais proveitoso ocupar esse momento de “frescor mental e matinal” para aprender uma língua estrangeira ou um conceito muito complexo, pois o sujeito está mais aberto e flexível para assimilar novos conhecimentos depois da atividade restauradora de um sono reparador. Hoje tal costume continua inadequado, e depois de ler o livro O oráculo da noite (Ribeiro, 2019), pelo menos consigo preparar o meu café da manhã antes de adentrar no mundo virtual das redes sociais.

Adquiri o hábito de, pelo menos três vezes por semana, digitar nos teclados do computador, celular ou tablet e postar nas redes sociais a hashtag: #MariellePresente. Essas publicações estão sempre acompanhadas por uma notícia ou uma imagem sobre a vereadora e tem por objetivo tornar visível certo silenciamento das mídias a respeito da omissão de justiça por seu brutal assassinato. Sempre que posso, eu compartilho a hashtag singela e incansável, postada diariamente por Eliane Brum em sua página do Facebook sobre a quantidade de dias sem resposta à pergunta que não quer calar: “Quem Mandou Matar Marielle e Por quê?”. E é claro que eu sempre soube e sempre tive vontade de gritar a resposta: “Eu sei quem foi, #EleNão!”. Mas no Brasil de 2020, saber e apresentar evidências parecem ter perdido o significado e o sentido, pois quanto mais as investigações policiais apontam as ligações entre seu assassinato e a família do (ainda) atual presidente da república Jair Messias Bolsonaro, mais nos distanciamos da resolução, pois há uma sequência de mortes, muitas delas enigmáticas, que acometem os envolvidos nesse crime bárbaro que levou à morte da vereadora. É o caso do miliciano Adriano da Nóbrega que, após muito tempo em fuga, foi morto por policiais que estavam em seu encalço no dia 9 de fevereiro de 20201.

Outra hipótese para a minha fixação na imagem de Marielle se refere ao fato de que ao pesquisar sobre sua trajetória de vida, fui percebendo que nós já compartilhávamos, sem nos conhecermos, ideias, ideais muito parecidos, como a proposta de construção de um projeto abolicionista de sociedade e a sua atuação como intelectual orgânica na profissão que escolheu. Porém, admito que ela estava anos-luz na minha frente do ponto de vista de sua atuação no espaço público, de seu ativismo político e de sua capacidade de enfrentamento das forças da Política da Morte.

Fiquei sabendo da luta política específica contra a militarização das favelas e a favor dos jovens negros e periféricos que estavam e ainda estão morrendo em decorrência da violência policial. Quatro dias antes de seu assassinato, ela havia postado nas redes sociais: “Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”2, uma pergunta que ressoa e para a qual ainda não temos respostas, mas que já revela a adesão à Política da Vida da defensora dos direitos humanos com uma preocupação para além de si mesma e em defesa dos seus convivas do Complexo da Maré.

A vereadora, assim como eu, era outra inconformada com a morte em pleno auge da vida e em relação a um enigma sem resposta: Por que o Brasil é um país que escolheu as suas juventudes como seu maior inimigo? Matamos diariamente a nossa esperança de futuro e de vitalidade? – como é o caso dos jovens universitários que sofrem com o retrocesso nas conquistas democráticas, principalmente nas políticas afirmativas de permanência estudantil que provoca o esvanecimento de seus sonhos em direção da sua morte lenta. No que se refere à morte violenta há uma pergunta que não quer calar: Por que o alvo atingido é sempre o jovem negro e periférico? É a nossa raiz escravocrata sendo explicitada e sem muitas delongas! A nossa barbárie cotidiana exposta a olho nu, só para quem pode e quer ver…

Trata-se da violência direcionada contra o jovem negro, em situação de vulnerabilidade social e que ocupa os bolsões de pobreza no Brasil, principalmente os existentes nos bairros periféricos. O Atlas da violência elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (2018) visibiliza esse alvo específico: diariamente mais de 171 pessoas são assassinadas no Brasil; por ano são 62.517 pessoas e, delas, 33.590 são jovens. Entre os jovens, sua taxa de homicídios é 2,5 vezes superior à de não negros (Ipea, 2018). Ou seja, são dados estatísticos reveladores do racismo estrutural e das raízes escravocratas de nossa cultura (Imbrizi et al., 2019).

As mortes desses jovens carregam muito sofrimento dos familiares e envolvem uma legião de mães que lutam por justiça para desvelar as violências que permeiam a vida de seus filhos: as mães de Acari, o Movimento Mães de Maio na Baixada Santista e muitos mais. Marielle também desenvolvia trabalhos específicos junto ao luto e à luta dessas mulheres.

Cabe destacar as produções audiovisuais como o Auto de resistência (Neri; Carvalho, 2018) que faz referência à luta de Marielle Franco e que desnuda a violência policial na sua crueldade: a implantação de provas para forjar a resistência à prisão do adolescente e, assim, justificar que o representante da polícia matou em legítima defesa.

Nós sabemos do percurso tortuoso, longo e demorado que é perceber a realidade, significar e transpor o percebido, atribuir significados, juízos e seguir para uma ação na realidade que seja transformadora, mesmo que colocando em risco a nossa própria autoconservação. Freud (1925/2011) indica o mecanismo de negação presente na constituição psíquica e na construção da percepção da realidade: ele é complexo e se estrutura em uma mescla de afetos e razão que dificulta ao sujeito reparar aquilo na realidade que incomoda ou provoca desprazer. Da percepção da realidade para a ação e transformação do mundo real uma vida inteira é pouco. Como o sujeito pode ter desejos de mudar a realidade quando ele ocupa um lugar privilegiado de classe e de cor? Como encampar essa jornada de lutas quando o foco é a desconstrução das bases culturais e afetivas dos nossos privilégios de cor? Sim, o assassinato e trajetória da ativista de direitos humanos Marielle Franco parecia também reforçar uma interpelação que já vinha há muito tempo martelando na minha consciência: os questionamentos sobre minha branquitude.

Em relação à percepção da realidade que nos incomoda e é injusta e o esforço de transposições para ações transformadoras, parece que vivemos uma sensação de paralisia em nosso país, talvez pelas agruras de uma democracia representativa na qual dependemos das ações de políticos eleitos e só eles têm o real poder de decidir sobre mudar a situação. Cabe aos eleitores pressioná-los para que as mudanças aconteçam na direção das Políticas de Vida.

Mais um motivo para a minha fixação na imagem da Marielle é que ela, sua trajetória e os ideais dos feixes de luta que ela representava interpelavam e ainda interpelam a minha branquitude e as minhas relações com as lutas políticas abolicionistas e o feminismo. Utilizo o termo “interpelação” inspirada no texto de Althusser (1970, p. 99) que contém a seguinte afirmativa:

Sugerimos então que a ideologia “age” ou “funciona” de tal forma que “recruta” sujeitos entre os indivíduos (recruta-os a todos), ou “transforma” os indivíduos em sujeitos (transforma-os a todos) por esta operação muito precisa a que chamamos a interpelação que podemos representar-nos com base no tipo da mais banal interpelação policial (ou não) de todos os dias: “Eh, você”.

Nesse “Eh, você” há uma inflexão em direção ao sujeito (Silveira, 2010) que toca diretamente na sua responsabilidade ética e social no sentido de convidar para mudar as condições que perpetuam a desigualdade social e história no Brasil. O sociólogo propõe que o recrutamento propiciado pelo conteúdo ideológico é transformar o lugar do sujeito e colocar em questão os ideais que constituíram os seus ideais do Eu que se referem aos princípios e convicções que estruturam seus projetos de futuro e sua forma de estar no mundo. Quais são os valores e normas que pautam as ações dos sujeitos? Quais ideias pautam o que é ser mulher na sociedade contemporânea? Braga (2016) indica em sua tese de doutorado as imposições da erotização do corpo da mulher negra no Brasil que acarretam, ainda, as poucas possibilidades de negociação entre dois extremos das imposições culturais: a puta e a santa. Para a psicanalista, os limites da negociação são mais estreitos quando se retoma o lugar de classe social das mulheres negras, sempre transformadas em objeto de desejo de seu patrão ou em corpo-mercadoria nas festas e carnavais brasileiros.

Eu, mulher branca, cis, de classe média e filha de pequenos comerciantes do interior de Minas Gerais. A sempre filha dos patrões diante dos serviçais que circulavam pela casa e pelo espaço do comércio, muitos deles negros e que eram tratados afetuosamente, ao mesmo tempo em que eram explorados nas relações de trabalho. Não tinham as mesmas mordomias dos filhos dos patrões que também circulavam pelo ambiente do comércio. No estabelecimento comercial de meus pais, um adolescente negro trabalhou até atingir a maturidade, sempre na mesma função, se é que foi registrado em carteira, exercendo diversas tarefas, como as funções de balconista, estoquista, repositor e carregador de produtos. Atualmente as notícias que tenho são que ele não conseguiu terminar o ensino médio; aposentado compulsoriamente por um problema na coluna, mora em um bairro periférico na minha cidade natal. O problema na coluna revela as precariedades das condições de trabalho às quais foi submetido durante toda a sua vida, não só no comércio dos meus pais, mas também nos outros empregos a que se candidatou durante a sua trajetória.

Eu convivia ali no espaço da casa, meio misturado com o espaço do comércio, pois morávamos no clássico sobrado, os cômodos domiciliares no andar de cima e o comércio no andar de baixo da construção, em que as relações afetuosas de muito amor eram trocadas mais com os serviçais do que com as pessoas da família. As pessoas da família reservavam-se às competições e picuinhas entre os irmãos no cotidiano; já meu pai e minha mãe provinham mais do que o necessário para a sobrevivência dos filhos diletos e estavam muito preocupados em trabalhar para manter e ascender a outro padrão de vida. Assim, cresceu a menina que vos escreve, filha dos proprietários daquele estabelecimento comercial, e praticamente encaixada nos estereótipos heteronormativos àquela época e com acesso garantido aos bens culturais e materiais para escolher uma profissão e seguir uma vida em liberdade e autonomia. Escolhi o curso de psicologia com a intenção de entender os outsiders por ter tido um irmão rebelde, uma ovelha negra que morreu em um acidente de moto no auge da vida, aos 24 anos – a intempestividade da morte atravessando a minha trajetória no ápice da minha adolescência. Ser psicóloga também era uma tentativa de lidar com a minha saúde mental: depois da morte de meu jovem irmão, eu com 14 anos de idade já percebia desencaixes no que se refere à expectativa da minha família frente as exigências heteronormativas que (de)limitam os destinos de uma mulher: casamento monogâmico, marido e filhos.

Nesse sentido é que a vida de Marielle e o significado de sua morte violenta por homens fortemente armados são uma interpelação à minha trajetória de mulher branca que teve acesso ao ensino de qualidade em sua cidade natal, fez cursinho pré-vestibular em um município vizinho, cursou a graduação em psicologia em uma universidade estadual do interior paulista, a querida Unesp-Assis. Após formada tive ajuda monetária para escolher meu próprio local de trabalho e conquistar a independência financeira. A cosmopolita São Paulo foi a urbe escolhida para iniciar as minhas atividades profissionais, cidade referência na infância e adolescência que conheci em viagens de férias na casa de tias e primas que moravam no bairro Casa Verde Alta. A cidade também se resumia entre os bairros Brás e Rua Vinte e Cinco de Março, local de comércio varejista que minha mãe visitava mensalmente para comprar os insumos para a sua loja de aviamentos. Os trabalhadores das lojas de tecidos e as atendentes viam-se na labuta diária, ao som dos transeuntes da rua sempre apinhada de gente. Os vendedores dos estabelecimentos conheciam minha mãe há anos. Portanto, a interpelação à minha branquitude se refere aos meus privilégios de cor e classe, que sei que pude usufruir, ao acesso que pude ter às escolas de qualidade que foram me preparando para a aprovação em uma universidade pública, e a toda a bagagem afetiva que carrego dos meus pais e irmãos.

Da minha infância até a minha adolescência frequentei o colégio católico Imaculada Conceição, no qual as aulas eram ministradas pelas freiras e irmãs, vestidas com seus hábitos em sala de aula. Cursei lá os quatro primeiros anos do ensino fundamental, direcionados somente ao público feminino. Meu passado revela os meus privilégios de classe e cor – no caso a oferta de uma formação católica rigorosa pautada no legado da Virgem Maria.

Nesse sentido e em relação à trajetória de vida de Marielle Franco, é a minha branquitude que é colocada em questão. Há interseccionalidades a considerar: eu, mulher branca, de classe social média (a filha dos patrões) e até segunda ordem heterossexual. Penso que eu tinha percepção sobre o abismo de desigualdade social que me separava dos afetuosos serviçais que passavam pela minha morada, ao mesmo tempo em que havia um clima cultural que naturalizava a desigualdade como vontade de Deus, muitas vezes associada aos votos de pobreza e castidade, pois só assim estaria reservado o Reino dos Céus. Havia uma associação entre religião, formação educacional e repressão sexual cuja imagem ideal era o Sagrado Coração de Maria. Fui criada para estar mais próxima da santa do que da puta, o que me custou bons anos até a minha liberalização sexual, não sem inibições. Com a minha mãe, nós íamos à missa da Igreja católica todos os domingos e tínhamos roupas especiais para tal empreitada. As roupas eram diferenciadas entre as vestimentas de sair e as de ficar em casa.

Havia a convivência pacífica entre pontos contraditórios: católicos, apostólicos romanos e com a casa lotada de serviçais gratos por terem um local para trabalhar e, no caso das empregadas domésticas que pernoitavam na casa da família, um lugar para dormir. Explorávamos, então, mais de seis trabalhadores sem carteira assinada, de segunda a sexta. Eu sou a única da minha família nuclear que na idade adulta aderiu à ideologia de esquerda; todos os outros integrantes, dos irmãos até meus pais, são os típicos representantes dos valores associados aos ideais de trabalho, família e propriedade. Houve dificuldades para eles aceitarem que eu fiz a opção de não ter filhos, de não casar oficialmente com os vários parceiros que passaram por minha vida. Mas sempre que volto para a minha cidade natal, por ocasião das visitas aos meus pais, vêm as perguntas dos transeuntes que cruzam comigo pelas calçadas: Mas você não se casou, não teve filhos? Nossa, você mora sozinha? No começo eu me sentia como uma extraterrestre, uma estrangeira no meu próprio rincão. Hoje já não me incomodo com essa sensação do estranho familiar (Freud, 1919/1976) associada às cobranças sobre a realização dos ideais de felicidade que eu recusei: o casamento monogâmico com um homem que acompanha toda a existência de uma mulher e a suposta realização da felicidade feminina vinculada à maternidade. Ah, que libertação já na universidade quando pude ler e saborear o livro Um amor conquistado: o mito do amor materno, de Elizabeth Badinter (1985).

Esse olhar em perspectiva para o meu passado (e como foi construído em minha trajetória) já revela interpelações à minha branquitude que o assassinato de Marielle Franco coloca em questão e movimento. Na época de sua morte, eu já ocupava o cargo de professora em uma universidade federal, e me recordo que em uma reunião de comissão de curso de psicologia foi aprovada uma nota de repúdio contra o brutal assassinato da vereadora e do motorista Anderson Pedro Gomes. O campus da Baixada Santista, no qual sou professora associada e funcionária pública, é uma unidade universitária que valoriza e preza as ações extensionistas que convidam os estudantes para o trabalho em comunidades e em espaços urbanos marcados pela desigualdade social. É uma proposta de formação que visa criar o afeto da indignação diante das agruras da desigualdade social. Do ponto de vista pedagógico já operava, junto aos meus colegas da comunidade universitária, a escolha por intervir nos espaços da cidade mais marcados pelas situações de vulnerabilidade social e que produzem a dimensão sociopolítica do sofrimento. Já exercitava uma atuação progressista de professora universitária em um campus que oferecia todas as condições para tal ocupação. Sou responsável também por coordenar o módulo obrigatório intitulado “Psicologia, ideologia e cultura”, que convida os estudantes para a produção de uma narrativa de si articulada a um exercício crítico das mazelas da sociedade capitalista.

Ah, e já que estamos falando de mulheres: e o feminismo na postura de Marielle, hein? Como esquecer a cena na assembleia legislativa na qual a vereadora se posiciona fortemente e diz em alto e bom tom: “Não me interrompa, eu sou uma representante eleita e não admito que me interrompam!”. Eu acho que não fui muito interrompida na minha vida, não por ausência de machos alfas e machistas no meu entorno profissional ou ao meu encalço afetivo, mas talvez por conta da minha branquitude. Outro fator também pode estar relacionado a minha mineirice, certo silenciamento recorrente. Ou, ainda, a uma inibição que “exprime uma limitação funcional do Eu”(Freud, 1926/2010b, p. 17, grifo do original), em termos psicanalíticos, pois desde a meninice até a idade adulta penso que ousei muito pouco e alimentava certa timidez que impedia que eu ocupasse os espaços públicos da política. Sim, em meu processo de socialização, acredito que fui incorporando as ordens implícitas para o meu silenciamento e certas omissões em momentos cruciais na minha trajetória de vida.

Sobre as omissões, posso citar uma delas que se refere à ocasião da “expulsão” de um irmão do seio da família, o que mais tarde desembocou na sua morte e que eu, na minha adolescência, não pude evitar – nem a exclusão, nem a crueldade que foi a sua ausência na minha vida, a partir de então.

No que toca às ideias feministas, a superação da inibição e a conquista da palavra, elas me levam ao segundo encontro com Mariellle: as Marielles universitárias que ocupam seus lugares nas universidades por conta das políticas afirmativas dos governos Lula (2003-2011) e Dilma Rousseff (2011-2016), sejam aquelas relacionadas ao Programa Universidade para Todos (ProUni), um dispositivo criado pelo Ministério da Educação que oferece bolsas de estudos integrais e parciais (50%) em instituições particulares de educação superior,3 seja a que se refere à expansão dos campi das universidades federais públicas brasileiras acompanhadas das políticas afirmativas como as cotas e as garantias de permanência estudantil.

Ato II – O encontro com as Marielles nas universidades públicas e federais

Não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira,
mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas.
Audre Lorde

campus da Baixada Santista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) foi implantado em 2005. Fui concursada em 2006 e fui testemunha da revolução silenciosa empreendida na área da educação superior nos governos Lula e no primeiro governo Dilma Rousseff. Refiro-me à expansão dos campi das Universidades Federais e às políticas afirmativas, principalmente às que se relacionavam à permanência estudantil e às cotas para classes sociais e etnia. Eu trabalho como professora no campus da Baixada Santista da Unifesp há mais de treze anos. Acompanhei a mudança do perfil das estudantes negras que adentravam os cinco cursos de graduação do campus, advindas das periferias, abandonando os alisamentos e deixando os cabelos encaracolados tomarem forma, resultado das cotas por classe social e por raça. Foram políticas afirmativas que desconstruíram a ideia e o fato de que a universidade pública era para a elite do nosso país.

No ano de 2007 já iniciei os trabalhos no módulo obrigatório para estudantes do curso de psicologia intitulado “Psicologia, ideologia e cultura” no qual os estudantes entregam, como atividade para avaliação, um memorial circunstanciado no qual articulam os conceitos advindos dos teóricos críticos e de uma psicanálise implicada (Rosa, 2012) com a experiência e a trajetória de suas vidas.

Penso que nos últimos sete anos, e especialmente após a aprovação da lei nº 12.711, de agosto de 2012, conhecida também como Lei de Cotas, fui percebendo certa mudança e sutileza nos memoriais das estudantes: um novo vocabulário emergia, pelo menos para a minha experiência de vida, como a palavra “transição” associada às madeixas e à inclusão do tema “tratamentos para cabelos cacheados”. Ou seja, a maioria das estudantes negras chegavam à universidade com os cabelos alisados, e ao tomar contato com a luta do movimento negro, as discussões sobre o feminismo e a desconstrução e a crítica às imposições estéticas vinculadas à branquitude, passavam por uma transformação visível a olho nu. As universitárias começam a se apresentar com novos adereços e a assumir os cachos e os cabelos ondulados adornados com turbantes coloridos (Santana, 2015). Era o fim de tantos anos de sofrimento de não aceitação da cabelame e de tempo e dinheiro gastos com produtos para alisamento dos fios até a libertação obtida com o processo de reconversão dos cabelos alisados para novamente ondulados. Algo que parece uma mudança apenas aparente e estética vai se revelando como transformação radical nas suas posições subjetivas diante da vida. Tornavam-se literalmente empoderadas, no melhor sentido da palavra, como intelectuais orgânicas, na mais bela acepção de Antonio Gramsci: mulheres que lutam contra o histórico de escravização a que seus ancestrais foram submetidos e não abandonam os interesses de sua classe social.

Cabe destacar que Marielle Franco também exercitou o direito à universidade: no caso, ela foi aprovada na graduação, em 2002, para o curso de Ciências Sociais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com uma bolsa de estudos integral obtida pelo mencionado Prouni. Na sequência realizou mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com dissertação intitulada (e agora publicada) UPP – A redução da favela a três letras: uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro.

Marielle é fruto e cria dos direitos sociais estendidos à população negra e que puderam ser exercidos no breve período de crescimento e ascensão das forças progressistas no Brasil. É óbvio que esses direitos foram conquistados em decorrência das reivindicações do movimento negro brasileiro.

São conquistas importantes do movimento negro, mas que também acarretam empuxos conservadores e preconceituosos dentro do ambiente universitário. Ou seja, do ponto de vista da universidade, e não só no meu módulo da graduação, trata-se de localizar o fato de que o ensino superior brasileiro está tendo que se haver, cada vez mais, com o racismo institucional manifesto nas relações entre as pessoas que convivem no ambiente universitário. Isso se deve, em parte, ao novo perfil socioeconômico e cultural de estudantes que conquistaram o acesso ao ensino público e gratuito por meio das políticas afirmativas dos governos Lula, responsáveis pela criação e expansão do número de universidades públicas federais no Brasil, a partir de 2005, e pela posterior implantação da Lei de Cotas para vestibulares em 2012. Dados estatísticos mostram que há “um aumento no número de estudantes negros (pretos e pardos), de famílias de baixa renda, e um leve aumento na idade média dos graduandos” (Rodrigues, 2016). Assim, há um progressivo espelhamento no ambiente universitário das características da população brasileira, composta em mais de 50% por negros.

A leitura dos memoriais das minhas estudantes, localizados no segundo ano de graduação do curso de Psicologia, assinala as mudanças de posição subjetiva que ocorrem em suas trajetórias de vida e na direção de uma luta antirracista. É comum o relato de situações de preconceito de raça, classe e gênero que ocorriam no ambiente escolar. Essas leituras e a convivência no ambiente universitário vão produzindo inflexões sobre as escolhas do material bibliográfico proposto no módulo, ou seja, são inflexões que impactam na minha forma de escolher as referências bibliográficas que compõem o citado módulo. Penso que é a partir do ano 2016 e principalmente de 2017 que começo a inserir referências bibliográficas que discutem o racismo e o papel de psicólogos e psicanalistas diante da dimensão sociopolítica do sofrimento, diante do golpe que produz uma angústia disparada em situação de desigualdade social e econômica (Gonçalves Filho, 1998).

Para além do ensino, as discussões sobre racismo e seus efeitos psicossociais que ocorrem no ambiente da sala de aulas, há que se ressaltar a importância das pesquisas, grupos de estudos e eventos nacionais e internacionais que estão sendo desenvolvidos pelas universidades públicas. A universidade pública brasileira tem ocupado o seu papel histórico no fomento ao desenvolvimento de ideias e produção científica no sentido da construção do bem viver que possa contribuir para a edificação, manutenção dos ideais civilizatórios e a abertura para a convivência com a diferença.

Há também a emergência de projetos de extensão que visam ao atendimento das comunidades externas e acadêmicas no sentido de acolher a dimensão sociopolítica do sofrimento dos estudantes, principalmente em época de derrocada das universidades públicas, federais e gratuitas. As políticas afirmativas que acolheram Marielle Franco estão perdendo forças em função dos retrocessos que acometeram a Terra Brasilis após as eleições de 2018 e a ascensão e a visibilidade das forças da extrema direita no Brasil.

Ato III – A Marielle que floresce em mim

Na tentativa de romper com inibições e silenciamentos na direção de intervir no debate público e construir uma agenda progressista e abolicionista é que reconheço o legado de Marielle e deixo-a florescer em mim. Grada Kilomba (2019a) indica as relações entre falar e ser escutado como formas de produzir o sentimento de pertencimento a um grupo, a um coletivo e a um país. Ou seja, quem tem sua palavra levada em consideração, em movimentos de reciprocidade, se sente parte da comunidade humana.

Em 29 de abril 2019, após se ter completado um ano do brutal assassinato de Marielle Franco em 14 de março, sem respostas e com muitas evidências, publiquei um artigo (Imbrizi, 2019) no qual escrevia sobre a minha indignação diante da violência que foi sua morte e que tinha pouco eco no clima cultural da época. Era um escrito sobre a minha ânsia de ser escutada, dar visibilidade e dizer para os quatro cantos do mundo sobre o meu inconformismo em relação a nós brasileiros e brasileiras estarmos perdendo, a cada dia, para as forças que representam a Política da Morte. Perdemos justamente um corpo de mulher que carregava ideias e ideais revolucionários com vistas a diminuir a desigualdade social e que defendia uma Política da Vida.

Em novembro do ano de 2019, o programa Greg News, encabeçado pelo escritor e humorista Gregório Duvivier, no episódio intitulado “Tirem suas próprias conclusões”, apresentou uma pesquisa aprofundada sobre o caso Marielle em suas relações com a família do presidente Bolsonaro. Na ocasião, as relações entre a família do atual e ainda presidente da república e o caso Marielle ganharam novamente a grande imprensa, e o programa fazia sátira com o fato de que já que não há escuta para as evidências, o que nos resta é gritar diante do silêncio ensurdecedor. É preciso gritar e solicitar a ajuda da ativista política Deborah dos Falsetes. Todas as evidências apontam para que todos possam tirar suas próprias conclusões no que se refere a essas relações escusas, mas há vários “engavetadores gerais da república”, envolvidos com a milícia e ocupando cargos no sistema judiciário, que impedem a verdade de vir à tona e que a justiça seja feita.

Assisti pela segunda vez o programa em uma noite de janeiro de 2020, para apresentá-lo a um casal de amigas que me acolhia em sua casa, em meu período de férias, ao mesmo tempo em que eu as ajudava com os cuidados com um casal de gatinhos. Acordei no dia seguinte com a impressão de que há um clima obscuro no meu país e que eu precisava fazer algo, dar a minha contribuição pública sobre esse momento no Brasil. Era a lembrança remota de um sonho, carregado da impressão de que deve ter havido alguma aparição relâmpago da figura de Marielle acompanhada de uma mensagem, ainda não familiar, sobre o fato de que eu deveria fazer a minha parte, eu não poderia me omitir mais uma vez. Eu precisava criar um projeto, construir ações para proteger as mulheres e em nome das mulheres com vistas à transformação das bases econômicas da sociedade. As minhas amigas trabalham com projetos sociais que enfatizam a importância da responsabilidade climática das empresas, por isso a ideia de projeto estava tão vívida na minha memória e se referia a assuntos do dia anterior à produção do sonho.

Qual seria a minha real contribuição em relação a mudanças culturais contra a homofobia, a misoginia, o antifeminismo, o machismo e o racismo? Ao que tudo indica, o programa de Gregório Duvivier contribuiu para um clima cultural que reavivou em mim a necessidade de luta contra o negacionismo, o meu e o das outras pessoas, reverberado em um rememorar em estado onírico no qual a imagem de Marielle funcionou como um despertar das minhas forças para ir à luta. Foi um sonho que funcionou como um dom: “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer” (Benjamin, 2012, p. 244). Sabemos hoje que essa tarefa não é só privilégio dos historiadores e das historiadoras, mas também das sociólogas, filósofas, psicanalistas e de cada profissional comprometido com os desafios de seu próprio tempo. Ou seja, a provocação benjaminiana nos convoca a reconhecer que nem nossos mortos estão em segurança depois que o inimigo venceu. A questão se agrava mais ainda: enquanto não conseguirmos fazer justiça ao assassinato de Marielle, espectros de toda ordem continuarão a nos rondar.

A produção onírica pode ser uma boa oportunidade para elaborar o luto, como nos sonhos traumáticos nos quais o sujeito repete a cena que produziu a angústia inesperada. Canavêz, Fortes, Herzog e Perelson (2018, p. 128) afirmam que diante do excesso causado por determinados acontecimentos traumáticos é preciso primeiro torná-los visualizáveis: “Só assim se torna possível dar algum contorno psíquico ao que não pode se fazer representar no psiquismo sob a forma de imagem ou ideia”. As autoras localizam um modo de ligação que está presente no mecanismo psíquico denominado figurabilidade que, diferente da representação que se refere a uma ideia, uma imagem, uma reprodução mental que será reativada internamente, diz respeito a um movimento anterior à formação de traços mnêmicos, indicando uma impressão, a marca de um pulsional em busca do que ainda não foi ligado. Para as autoras, a noção de figurabilidade estaria relacionada a um processo de “mostração, de tornar visível” por conta de um processo que “produz” e “constitui” uma imagem e não somente a reproduz.

Assim, a professora sonha com Marielle depois de sua memória ser reativada por um programa de televisão que alertava os telespectadores para o fato de que há evidências para que todos tirem a suas próprias conclusões de que há ligações entre a família Bolsonaro, as milícias e o assassinato de Marielle.

Ato V – Inflexões causadas pelos encontros com as Marielles

O assassinato violento que interrompe uma vida de ativismo político de Marielle Franco interpela também a minha vida no presente, de março de 2018 até hoje. O assassinato de Marielle significou as seguintes interpelações ao meu lugar de mulher construtora ativa de minha própria história: Quem sou eu diante do mundo frente à morte dessa ativista dos direitos humanos? Qual é o legado político que eu quero deixar na história da humanidade relacionado à luta contra a violência e à agora transparente Política da Morte que assola o meu país?

Aliás, fica cada vez fica mais transparente que o projeto de poder da família de Jair Bolsonaro (Imbrizi, 2019) está associado ao assassinato de Marielle Franco, já que a vereadora era uma concorrente real ao cargo de deputada federal e disputaria com o filho primogênito do presidente da República esse mesmo cargo. Cabe ressaltar que Flávio Bolsonaro ocupa cargo de deputado federal desde as eleições de 2018. É o projeto da família miliciana e evangélica, que em nome de seu deus coloca em ação uma Política da Morte, calcada em uma narrativa que considera o outro ser humano sempre como inimigo, pautado em um discurso do ódio que dispara e sustenta ações violentas de toda ordem.

O primeiro encontro com Marielle, a vereadora, teve o efeito de esquentar um sangue de ativista política que já corria nas minhas veias, o impacto de um despertar que como na letra da canção “O Amor”, de Caetano Veloso (inspirada no homônimo e igualmente inspirador poema de Maiakovski), pôde me ressuscitar: “Ressuscita-me/ Lutando/ Contra as misérias/ Do cotidiano/ Ressuscita-me por isso/ Ressuscita-me/ Quero acabar de viver/ O que me cabe/ Minha vida/ Para que não mais existam amores servis” (Pensar Contemporâneo, 2017).

O encontro com as Marielles universitárias possibilitou reaver as leituras feministas, agora adensadas por autoras relacionadas ao feminismo negro. Ou seja, as Marielles que ocupam as universidades públicas potencializaram em mim a superação de epistemicídios, de um módulo que nasceu com referências aos autores europeus, por uma disciplina recheada com filósofas, psicólogas e psicanalistas negras.

É possível também fazer uma articulação entre a branquitude e certa posição do sujeito neurótico ao se deixar enredar na engrenagem perversa capitalista – a nossa hipocrisia em misturar afeto e exploração do trabalho tão comuns nas classes médias e elites da sociedade brasileira.

Jurandir Freire Costa (1991) relata sua convivência com psiquiatras e profissionais de saúde que trabalhavam nos hospitais psiquiátricos do Rio de Janeiro. O que chamava sua atenção era a forma como os internos eram tratados sem um mínimo de dignidade, a ponto de não se incomodarem com as visões ridículas advindas de vestimentas inadequadas, apesar de haver recursos financeiros disponíveis para o uniforme dos internos. O que o levava a pensar no que estava em jogo? Seriam todos perversos? Costa, inspirado nas ideias de Contardo Calligaris, considerará a especificidade da posição do neurótico que se engata na engrenagem perversa e segue seu lastro destruidor por onde passa, sem se questionar sobre sua responsabilidade nos processos e sofrimentos sociopolíticos desencadeados pela desigualdade social.

Enquanto as situações de vulnerabilidade social forem naturalizadas – e não historicizadas – haverá exploração entre homens, entre homens e mulheres e entre as mulheres, principalmente aquelas que são “quase todas pretas”, como na letra da canção “Haiti”, de Caetano Veloso: “111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos/ Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres/ E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos”.

Como não falar do episódio recente que aconteceu no Brasil em plena pandemia do novo coronavírus, no qual uma trabalhadora doméstica teve que quebrar com o isolamento social e foi trabalhar levando consigo seu filho, já que as escolas também estão com as atividades suspensas por conta dos protocolos sanitários. A empregada deixou seu filho com a patroa porque precisava passear com o cachorro. A criança chorou porque queria a mãe que se ausentou, e a patroa, com pouca paciência, colocou o menino no elevador, propositadamente apertando o botão de outro andar, o que desencadeou a morte da criança. Mais um episódio de racismo brasileiro, mais um episódio de preconceito brasileiro. Conhecido como “o caso Miguel”, a patroa deve responder na Justiça pelo seu descaso no que se refere à segurança da criança.4 Ou seja, isolamento social só para a patroa e seu cão, para a empregada doméstica e seu filho estão reservados os riscos de vida no transporte coletivo ou a morte em decorrência do descaso e desprezo às vidas pretas, comprovados pela postura negligente da patroa.

Para finalizar, cabe retomar a pergunta que ronda este ensaio: qual é o porquê da minha fixação à imagem de Marielle? Parece que ele tem agora outro encaminhamento que se refere ao fato de não se ter feito justiça, ainda não prendemos o mandante do crime, apesar das evidências. Muitos de nós ficaremos melancolicamente fixados à imagem de Marielle Franco enquanto não fizermos justiça a ela. Ou seja, a prisão e o julgamento do responsável é condição para elaboração do nosso luto, para que ele não se transforme em melancolia. Nós precisamos repetir (Freud, 1914/1996) incansavelmente a mesma ladainha: “Quem mandou matar Marielle?”. Há que se repetir, repetir e repetir a hashtag #MariellePresente para acordar a população desse sono profundo, nem que seja para acordar para o pesadelo que se apossou da história brasileira. Recordar, recordar e recordar para não esquecer que o assassinato de Marielle Franco se refere à repetição de nosso passado escravocrata que ainda acredita que as mulheres negras podem ser interrompidas e tocadas (contra suas vontades) pelo homem branco de tradição patriarcal. Elaborar, elaborar e elaborar não é um trabalho psíquico que se faz de modo individualizado, na intimidade de uma dor da perda de uma pessoa e de um ideal; a elaboração do luto é coletiva e precisa que a justiça dos homens entre em ação e puna os mandantes desse crime bárbaro, que como afirmamos em outro texto se trata de um crime contra a humanidade (Imbrizi, 2019).

Nesse sentido há um importante texto da filósofa Judith Butler no qual ela discute a violência doméstica contra as mulheres e a importância de as vítimas de feminicídio serem passíveis de luto. Conforme afirma filósofa:

Não haverá luto se não houver justiça e assunção de responsabilidades, e ser privado do direito ao luto é em si mesmo uma injustiça. O luto e a reivindicação de justiça andam de mãos dadas e precisam um da outra; reúnem a dor e a raiva em um esforço para construir um novo consenso e uma nova solidariedade contra a violência. (Butler, 2020)

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BUTLER, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?”. El País. 10 jul. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/judith-butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mundo-publico.html. Acesso em: 11 jul. 2020.

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1 Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/02/09/miliciano-investigado-por-assassinato-de-marielle-morre-em-confronto-na-ba.htm.

2 Disponível em: https://istoe.com.br/quantos-mais-vao-precisar-morrer-para-que-essa-guerra-acabe/.

3 Disponível em: http://prouniportal.mec.gov.br/.

4 Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/05/caso-miguel-como-foi-a-morte-do-menino-que-caiu-do-9o-andar-de-predio-no-recife.ghtml.

*Professora Associada da Universidade Federal de São Paulo – Campus Baixada Santista onde desenvolve atividades na graduação e nos Programas de Pós-graduação Stricto Sensu Ensino em Ciências da Saúde (Modalidade Profissional) e Interdisciplinar em Ciências da Saúde (Mestrado e doutorado acadêmicos). Membro do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (USP) e do Laboratório de Psicanálise da Unifesp – Campus Baixada Santista. Membra do Coletivo Internacional Amarrações – Politicas com Juventudes. Atualmente coordena o Grupo de Estudos e Pesquisas Sonhos, Juventudes e Psicanálise e o Projeto de Extensão: Arte e Sonho: abordagem psicanalítica nos modos de cuidar das Juventudes.

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