Vale do Javari: Sucateamento da Funai é a maior ameaça às etnias isoladas da Amazônia

A declaração é do sertanista Antenor Vaz, que esteve na área do conflito entre índios Matís e Korubo, em 2015. Para ele, é lamentável que a fundação não apresente à sociedade as informações sobre os contatos com os Korubo

Por Elaíze Farias, em Amazônia Real

Físico, educador e sertanista, Antenor Vaz atuou nas políticas públicas para índios isolados e de recente contato na Amazônia brasileira pela Fundação Nacional do Índio (Funai) desde 1987. Foi coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari, entre 2006 e 2007, que fica dentro da Terra Indígena Vale do Javari, na fronteira do Brasil com o Peru. Ele deixou a fundação em 2013, e atualmente trabalha como consultor do Departamento de Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), do Ministério da Saúde, por meio da Organização Pan-Americana de Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS).

Em 2015, Antenor Vaz retornou à Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do Amazonas, onde [se desenvolve] o conflito mais grave da atualidade entre duas etnias: os isolados Korubo e os Matís, que foram contatados nos anos 70. Para o sertanista, a maior ameaça para os índios Korubo e demais grupos indígenas da reserva é o sucateamento da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari da Funai. Ele diz que testemunhou o descaso do poder público com a assistência aos índios isolados.

“Fiquei estarrecido com a deterioração da estrutura física e material, além da redução do quadro de servidores. A frente de proteção só estava conseguindo manter-se em sobrevida devido aos indígenas contratados de forma precária como colaboradores eventuais”, afirmou.

Alojamentos da Funai no Vale do Javari, em 2006. (Foto: Antenor Vaz)
Alojamentos da Funai no Vale do Javari, em 2006. (Foto: Antenor Vaz)
O alojamento da Funai em 2015, no Vale do Javari (Foto: Antenor Vaz)
O alojamento da Funai em 2015, no Vale do Javari (Foto: Antenor Vaz)

O conflito entre os índios Korubo e Matís começou no final de 2014. Na ocasião, dois Matís foram mortos por Korubo. Conforme a reportagem da Amazônia Real  publicou, os Matís revidaram, matando ao menos nove Korubo. Três índios isolados sobreviveram com ferimentos por arma de fogo. Os Matís se armaram prometendo mais vingança, em outubro de 2015. A Funai, que colocou a região em alerta, ainda investiga o motivo do conflito entre as etnias.

No centro do problema está uma revolta dos índios Matís contra a falta de monitoramento e segurança deles pela Funai. Desde o dia 19 de janeiro, um grupo de índios ocupam a Coordenação Regional do Vale do Javari, em Atalaia do Norte (a 1.338 quilômetros de Manaus). Eles pedem a exoneração do coordenador Bruno Pereira. A fundação não atendeu o pedido e decidiu abrir uma negociação se os indígenas desocuparem o prédio. Eles prometem ampliar os protestos.

Paraibano de Campina Grande (PB), Antenor Vaz, 61 anos, foi um dos responsáveis pela criação da primeira reserva exclusiva para índios sem contato reconhecida pelo governo federal, a Terra Indígena Massaco, em Rondônia, em 1998. Para entender o que está acontecendo no Vale do Javari, o sertanista concedeu a entrevista abaixo:

O sertanista Antenor Vaz (Arquivo Pessoal)
O sertanista Antenor Vaz (Arquivo Pessoal)

Amazônia Real –  O senhor esteve na Terra Indígena Vale do Javari em 2015. Qual foi a situação que o senhor encontrou entre os Matís e os Korubo? Por que houve esse conflito e as mortes?

Antenor Vaz – Não conversei com os Matis (sobre esse assunto) quando estive  em Atalaia do Norte e na BAPE (Base de Proteção Etnoambiental).

AR – Nos relatos, os Matís afirmam que o conflito que teve origem quando servidores da Coordenação Regional Vale do Javari removeram índios Korubo contatados em 2014 para uma base da Frente Etnoambiental da Funai. Depois, a Funai levou o grupo para aldeia onde vivem os primeiros Korubo contatados em 1996, conhecido como grupo da Mayá, ao invés de devolvê-los ao local de origem. Outro grupo de Korubo teria achado que seus parentes foram mortos por Matís e atacaram as lideranças Dame e Ivan na roça da aldeia Todowak. O que o senhor acha?

Antenor Vaz – Esta é a versão dos Matís. Não cabe duvidar. Somente conversando com os Korubo contatados seria possível ouvir a versão deles.  Lamentável é que a Frente Etnoambiental Vale do Javari, que tem acesso aos Korubo isolados, não apresenta à sociedade o levantamento de informações que já realizaram com os Korubo contatados.

AR – Logo após as mortes de Dame e Ivan, os Matís, revidaram matando pelo menos nove Korubo. O senhor tem informação sobre como aconteceu esse revide? Os índios falaram com o senhor sobre isso? 

Anternor Vaz – Não conversei com eles sobre esse assunto.

AR – Como é o seu trabalho junto aos povos isolados? Em que área trabalhou e continua trabalhando?

Antenor Vaz – Minha primeira experiência junto aos povos indígenas isolados foi em Rondônia, coordenando a atual Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé. Na época existia uma dificuldade de se implementar o novo paradigma do “não contato”. Foi neste campo de atuação, à medida que implementavam as ações da Equipe de Localização dos Índios Isolados da Reserva Biológica do Guaporé, é que juntamente com Rieli Franciscato e posteriormente com Altair Algaier, sistematizamos uma metodologia de “localização e proteção” de povos indígenas isolados. Este trabalho resultou na primeira terra indígena brasileira demarcada exclusivamente para povos indígenas sem contato, a Terra Indígena Massaco (homologada em 1998).

AR – Como o senhor descreve a maneira como o contato com os isolados era feito no passado, na época das chamadas “frentes de atração/pacificação”?

Antenor Vaz – Toda atuação do Estado Brasileiro, coordenada pelos sertanistas, por meio das Frentes de Atração, tinha como fim a “integração dos povos indígenas à sociedade nacional”. Utilizavam uma metodologia atribuída a Rondon e seus auxiliares. Esta metodologia consistia em colocar brindes em locais frequentados pelos indígenas de modo a “seduzi-los” e, à medida que pegavam, novos brindes eram colocados em caminhos, direcionando-os para o acampamento de frente de atração. Diga-se de passagem que a atuação dos sertanistas (até meados de 1980) sempre foi na perspectiva de promover o contato para permitir o avanço das frentes expansionistas/desenvolvimentistas. Neste sentido os indígenas eram vistos como impedimento ao desenvolvimento. Essa parte do grupo contatado levava os “brindes” para suas aldeias. Consigo levava também vírus que resultavam em infecção generalizada com os demais indígenas. Os relatos são de muitas mortes.

AR – Em que a metodologia de contato feita no passado se diferencia da de hoje? Existe um modo de contato considerado “ideal” atualmente?

Antenor Vaz – Não existe uma metodologia ideal. Existe metodologia mais adequada para uma determinada situação. A práxis dessa metodologia deve ser fonte permanente de avaliação e indicativo de novas condutas. A partir de 1988, com o reconhecimento constitucional da plurietnicidade brasileira e da autodeterminação dos povos indígenas, instituiu-se a prerrogativa do “não contato” enquanto princípio da política de proteção para os Povos Indígenas Isolados (PII). Ressalte-se que na época a Funai formulou o Sistema de Proteção ao Índio Isolado em substituição aos procedimentos para a promoção do contato.

O novo Sistema não excluía por completo a possibilidade de o Estado promover o contato, porém só em casos extremos onde se constata a iminência de extermínio, por fatores irreversíveis, de um determinado grupo isolado. Este Sistema de Proteção (que legalmente ainda está em vigor) é composto por três subsistemas: Subsistema de Localização, Subsistema de Vigilância e Subsistema de Contato.

A partir de 2006 deu-se início a um processo de reavaliação desse sistema de proteção, ao mesmo tempo em que se iniciaram levantamentos para formular uma política para povos indígenas de recente contato. Em reunião com os Coordenadores das Frentes de Proteção definiu-se que os princípios e diretrizes que fundam a prerrogativa do não contato mostravam-se eficientes e atuais, necessitando apenas alguns ajustes estratégicos e metodológicos. Neste momento eu estava trabalhando como Coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari.

Em 2009, já trabalhando na CGIIRC (Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato), em Brasília, dentre outras atividades, desenvolvia capacitações juntos às Frentes de Proteção. Neste período, estimulado pelos auxiliares da Frente de Proteção Purus, sistematizei e apresentei nova estrutura e metodologia para o Sistema de Proteção ao Índio Isolado, tendo como referência as práticas e questionamentos apresentados pelos coordenadores de frentes da época. Já como Coordenador de Políticas para Povos Indígenas de Recente Contato, iniciamos sistematização e programas pilotos junto aos grupos considerados de recente contato (Zo´é, Awa Guajá e Korubo), assistidos pela CGIIRC.

No entanto com a reestruturação implementada na Funai, todo esse processo foi desconsiderado e deu-se início a uma gestão amadora na CGIIRC que, por pressão política continua atuando até hoje. A diferença estrutural da metodologia preconizada por Rondon e as atuais é que hoje se tem a auto-determinação como princípio fundador, ou seja, a decisão de se iniciar ações que levem ao contato é prerrogativa do grupo indígena isolado e não do Estado. O Sistema de proteção instituído, em contrapartida às ações que promovem o contato, consiste em conhecer o grupo (por meio de levantamentos em campo) e seu território (sem contatá-lo) com o fim de se demarcar a terra indígena e instituir o subsistema de vigilância. No passado, os grupos contatados, sofriam perdas populacionais de cinquenta por cento, em média. O que se pensava proteger, na verdade estava-se exterminando grupos quase que por completo.

Indígenas Korubo contatados recebem atendimento. (Foto: Funai)
Indígenas Korubo contatados recebem atendimento. (Foto: Funai)

AR – Como o senhor analisa os contatos de grupos isolados que estão acontecendo mais recentemente?

Antenor Vaz – Os contatos que estão ocorrendo atualmente, embora a Funai divulgue que foram os indígenas que procuraram o contato, sabe-se que a motivação para essa procura reflete que o sistema de proteção não está sendo implementado na plenitude. Vejamos: os Sapanahua (contatados em 2014 na região de fronteira do Brasil com Peru, no alto Rio Envira, Acre) relatam terem sido atacados por metralhadora (com mortes) e procuraram o contato com os Ashaninka por não terem outra opção. A Base de proteção Xinane, que deveria atuar na região, protegendo estes e outros povos isolados foi desativada e permaneceu fechada por três anos. Só foi reaberta após o contato. Vinte e dois Korubo contatados no Vale do Javari, também em 2014, relatam que (antes do contato) ocorreram mortes de no mínimo 14 indígenas, ocasionados por gripe e malária. Três indígenas da etnia Awa Guajá na Terra Indígena Caru, no Maranhão, contatados em janeiro de 2015, relatam ataques por arma de fogo e grande invasão madeireira e muito barulho provocado por madeireira em seu território. Novamente em 2015 o grupo indígena Korubo contatado relata mortes ocasionado por armas de fogo (promovido pelos Matís).

O que ocorre é que os grupos que procuram o contato estão na verdade buscando refúgio. Não lhes resta outra saída. Um sistema de proteção minimamente eficiente teria constatado e tentado minimizar esses perigos e ações ilícitas que levaram a morte de indígenas isolados, criando assim as condições para os PII terem mais alternativas no campo do exercício da autodeterminação e da sobrevivência.

AR – E a situação de conflito envolvendo os índios Matís e Korubo, como o senhor observa e avalia?

Antenor Vaz – No caso envolvendo os Matís e os Korubo, que me referi há pouco, cabe uma contextualização. A geopolítica e a consequente dinâmica de ocupação na atual Terra Indígena Vale do Javari (que abrangem uma imensa área, inclusive parte do Vale do rio Juruá) são palcos de inúmeros conflitos históricos, envolvendo índios e não índios. Para entender esse aspecto é importante ver os trabalhos já desenvolvidos pela academia, para não encontrar neste fato (conflitos históricos e tradicionais) um reducionismo que explicaria “tudo”e isentaria o Estado de sua parcela de culpa. O contexto hoje com a grande redução de inimigos comuns aos indígenas contatados ou não (madeireiros, pescadores, caçadores, etc) muda radicalmente o panorama que, associado ao aumento populacional e reordenamento territorial, faz surgir/ressurgir/potencializar conflitos internos. Os Korubo isolados, distantes da discussão política que ocorre no movimento indígena no Vale do Javari, resgatam sua memória de conflito com os Matís, e por estarem convivendo muito próximo deles, é possível associar aos Matís muitos dos fatos que ocorrem com eles e seus parentes.

É evidente que não cabe à Funai a condução dessa política interétnica mas, se convidado, deve atender ao chamado do diálogo e fazer suas ponderações à luz da política estatal. Esse diálogo não deve seguir só a lógica política de agendas e interesses estatal. Esse seria um excelente exercício da Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Que, afinal, o Executivo não consegue ir adiante na sua regulamentação, quanto menos exercitar essa convenção que tem força de lei no Brasil.

Portanto, apesar dos interesses serem diversos, incluindo os interesses na condução da política indigenista estatal na região do Vale do rio Javari, é legítimo que os Matís queiram participar da discussão e da definição das estratégias da política de proteção para os isolados. Quando a FPE se ausenta ou passa a ter dificuldades de promover essa inclusão, os Matís (ao modo tradicional) desencadeiam suas estratégias de “proteção” minados pela dor dos entes mortos.

Ressalte-se que outras tentativas de contato com os Korubo isolados, protagonizadas em 2012/2013 por integrantes do grupo da Mayá resultou em um grave conflito. Mais recentemente parte de um grupo Korubo contatado em 2014/2015, juntamente com a Frente de Proteção protagonizaram um contato com outro grupo Korubo isolado. Portanto, a postura dos Matís de solicitarem à FPE Javari a efetivação de novos contatos não deve soar estranha, no mínimo para iniciar o diálogo.

O contato dos Korubo em 1996 (Arquivo: Frente Etnoambiental)
O contato dos Korubo em 1996 (Arquivo: Frente Etnoambiental)

AR – O senhor acha que o modelo de relação da Funai com os povos isolados está correto? Diante de fatos novos que estão acontecendo (como o aumento da presença de isolados no Vale do Javari, segundo relato de indígenas contatados), a Funai precisa adotar novas estratégias de contato?

Antenor Vaz – Você deve estar querendo dizer com o aumento de avistamentos de isolados no Vale do Javari, não é? Pois não se tem dados que comprovem o aumento populacional dos isolados Korubo no Vale do Javari. Em sobrevoo recente, realizado pela Funai, constatou-se diminuição no tamanho de malocas Korubo. Isso acende um sinal de alerta que necessita ser melhor compreendido.

A reestruturação implementada na Funai, no apagar de 2012, por não ouvir os coordenadores de Frente de Proteção Etnoambiental, promoveu uma gestão e uma estrutura administrativa que não reconheceu as especificidades do trabalho exigido para a implementação do Sistema de Proteção aos PIIRC. Desta forma todo avanço conceitual e prático conquistado pelos sertanistas, auxiliares e indigenistas foi comprometido. Portanto, questões do âmbito da gestão (principalmente a gestão central de Brasília) e de ordem administrativa passaram a obstaculizar as práticas e as mudanças exigidas para o exercício e aprimoramento do sistema de proteção. Os sertanistas passaram a exercer funções administrativas, afastando-os das ações de mato, mesmo tendo alertado a Diretora de Proteção Territorial na época.

Em meio a essa situação associam-se as posturas anti-indígenas dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em especial as do governo Dilma quando se alia às forças retrógradas, a exemplo da Ministra da Agricultura, Kátia Abreu, para garantir uma governabilidade (que não se verifica hoje) e que só desfavorece os povos indígenas (e brasileiro).

Esse caldo lamacento (contaminado com metais pesados da “politicagem” em vigor) que ameaça a Funai e a política indigenista, inviabiliza a implementação do Sistema de Proteção ao Índio Isolado e de Recente Contato. Portanto, se existe um modelo, ele está em colapso e só existe na retórica dos servidores públicos. Em artigo publicado em 2013, anunciei esse colapso.

Então, retomando sua pergunta sobre se eu acho que o “modelo de relação da Funai com os povos isolados está correto?” Te respondo com outra pergunta: qual modelo? As informações que disponho e observações que realizo em campo me permitem constatar que hoje o “modelo” instituído é um arremedo do que deve ser. É um sobrevivente que agoniza e cambaleando, já não cumpre mais sua função. Não cumpre em decorrência da falência múltipla de seus órgãos, como já dito: estruturas sucateadas, redução drástica dos recursos humanos.

AR – Como é a atuação das Frentes Etnoambientais criadas para proteger os isolados?

Antenor Vaz – Não existe uma coordenação, cada Frente de Proteção atua conforme suas possibilidades e compreensão de cada coordenador. O que hoje se faz em termos de proteção para os PIIRC é devido à abnegação de servidores que têm seu ofício como projeto de vida. Lamentavelmente os quadros não se renovam e os isolados viram tema de pesquisa, inclusive para coordenador de frente de proteção. Essa situação está denunciada no documento “Carta dos Servidores que atuam no Vale do Javari à direção da Funai”.

A partir de 2010, repercutindo as falas (de 2006) dos Coordenadores das Frentes de Proteção Etnoambientais se observava que até então o modelo onde se realizava “localização” em conjunto com ações de “vigilância” efetiva por meio de expedições de fiscalização e monitoramento territorial, estavam contribuindo para a real proteção destes povos. Constatava-se aumento populacional, reocupação territorial e a existência de geração de povos isolados que vivenciaram territórios protegidos com uma certa “tranquilidade”. Porém com a atual gestão da CGIIRC, enquanto reflexo de uma política que se generalizou na Funai, permitiu que as Frentes de Proteção Etnoambiental (todas) chegassem a um nível de sucateamento material e diminuição nos quadros de recursos humanos que inviabilizou a real proteção dos PIIRC.

Constatava-se que os povos isolados realizavam incursões em aldeias, assentamentos de colonos e mesmo em bases de Frentes de Proteção, assim como aparição de indígenas isolados nas margens de rios, tentando comunicação com navegadores, solicitando objetos industrializados e às vezes alimentos. Por outro lado, aumentava por parte dos povos indígenas de recente contato a demanda por produtos industrializados.

Diante desse quadro, a gestão atual da CGIIRC, ao invés de promover essa discussão e convocar os especialistas e Coordenadores de Frente de Proteção para repensar esse “modelo”, preferiu isolar-se das bases, apoiar a discussão em Brasília e fortalecer instituições não governamentais em busca de recursos financeiros externos (à Funai) sem a participação dos que trabalham em campo. Hoje existem ONGs, financiadas pelo BNDES para trabalhar com povos isolados. Essa postura parece ser adotada também pelo atual Presidente da Funai. Em entrevista atual, o Presidente comunicou que vai “passar o pires” junto a instituições internacionais para salvar a Funai. A que ponto chegamos. Essa é a política do Estado brasileiro.

Dessa forma chegamos ao que se observa hoje: as frentes de proteção sucateadas em recursos materiais e humanos, sem condições de responder às demandas de proteção, localização e os povos indígenas refugiados.

O sertanista Antenor Vaz com os índios Zo´é. (Arquivo pessoal)
O sertanista Antenor Vaz com os índios Zo´é. (Arquivo pessoal)

AR – O que precisa mudar na forma de atuação da Funai junto aos povos isolados e na relação destes com os povos contatados?

Antenor Vaz – O Presidente da Funai e o Diretor de Proteção Territorial já receberam documentos (o primeiro documento entregue foi em 2013, repetindo-se em 2015) e foram procurados por especialistas para abordar e avisá-los do abismo que se encontra a CGIIRC atualmente. As mudanças passam, antes de tudo pela humildade de reconhecer os erros, disponibilidade de ouvir e mudar. Os fatos mostram que essas qualidades faltam à atual gestão da CGIIRC. Pessoas capazes existem e já se colocaram à disposição para contribuir.

Arrisco, a partir da minha experiência acumulada, a apontar algumas mudanças necessárias. O que está em jogo são modelos de gestão e fundamentalmente modelo diferentes de entender a atuação do Estado frente à proteção dos PIIRC.

A primeira necessidade é mudar a gestão da CGIIRC numa perspectiva de definir claramente qual o papel do Estado e da sociedade civil diante da política de proteção dos povos isolados e recente contato. Ouvir aqueles que têm experiência e que se colocam para ajudar. A gestão do Carlos Travassos afastou-se dos Coordenadores de Frentes de Proteção, e instituiu um “feudo” em Brasília, com ramificações em algumas Frentes de Proteção, com o único objetivo de se perpetuar no cargo e favorecer um restrito setor da sociedade civil organizada. Já não é reconhecido por seus subalternos. O presidente da Funai e o atual Diretor de Proteção Territorial já foram avisados, receberam documentos assinados pelos melhores quadros em ativa e por sertanistas renomados.

Em segundo, reconhecer a necessidade urgente de envolver os povos indígenas contatados (principalmente os que compartilham territórios com os isolados) na formulação e implementação da política de proteção, tanto para os isolados quanto para os povos indígenas de recente contato.

Dada a conjuntura atual, imaginar que a Política de Proteção aos Índios Isolados e de Recente Contato pode ser levada adiante só pela Funai é um tiro no pé. Essa condução deve ser transparente e respeitar as maneiras tradicionais dos povos indígenas de compreender a questão. A CGIIRC deve abandonar o pensamento “ocidental” de enquadrar os indígenas ao estilo “partidário” como se a Funai fosse um partido. “Quem não pensa comigo, é inimigo”. Essa é a lógica que conduz a gestão atual da CGIIRC.

Por outro lado é necessário que a Funai/CGIIR convoque a sociedade civil (por meio de ONGs Indígenas e Indigenistas) e especialistas no assunto, para constituir um conselho para promover o repensar da Política de Proteção para os Povos Indígenas Isolados e instituir uma política para os Povos Indígenas de Recente Contato (que aliás contratou Consultora para organizar encontro sobre o tema a até agora a CGIIRC não publicou algum material sobre esse tema). Neste conselho é imprescindível a representação dos Coordenadores de Frentes de Proteção com vivência em implementação de Sistema de Proteção ao Índio Isolado e de Recente Contato, concebido em 1988 e as novas práticas.

Também é urgente aglutinar organizações e instituições (incluindo as governamentais, a exemplo da Sesai) para, de forma colaborativa, constituir as ações conjuntas já previstas nas suas áreas de competências. Não é concebível que a CGIIRC procrastine quando não encaminha ao Departamento de Atenção à Saúde Indígena (DASI/Sesai) sua contribuição para a Minuta de Portaria que propõe a Política de Atenção a Saúde dos PIIRC, conforme discutida e pactuada em reunião em junho de 2014 como decorrência de produto previsto na Portaria Interministerial entre Ministério da Justiça e Ministério da Saúde de fevereiro de 2013, com este objetivo.

AR – Quais as maiores ameaças contra os isolados?

Antenor Vaz – Os programas de governo (PAC) e o sucateamento da CGIIRC/Funai que já não conseguem mais combater aos ilícitos (caçadores, madeireiros, narcotraficantes, pescadores, garimpeiros, etc). Também é uma ameaça a investida, por meio de lobbies no congresso, das bancadas BBB (Boi/Agronegócio, Bíblia/Evangélicos fundamentalistas e Bala) para restringir direitos dos povos indígenas já garantidos na Constituição.

No caso dos Korubo e demais grupos indígenas isolados na Terra Indígena Vale do Javari, a maior ameaça é o sucateamento da Frente de Proteção Etnoambiental Vale do Javari. Em 2015 estive na Base da Frente de Proteção, na confluência dos rios Itui e Itaquaí (ambos afluentes do rio Javari) e fiquei estarrecido com a deterioração da estrutura física e material e o reduzido quadro de servidores. A frente de proteção só estava conseguindo manter-se em sobrevida devido aos indígenas contratados de forma precária como colaboradores eventuais e servidores abnegados em número reduzidíssimo. Parte do alojamento caído, embarcações afundadas, etc. Não parecia uma estrutura do Estado brasileiro em região de fronteira.

Os povos isolados do Vale do Javari também encontram outros riscos por compartilharem território com outras sete etnias contatadas com sérios problemas de saúde alguns endêmicos como malária, hepatite e infecções respiratórias, dentre outros. Apesar do quadro de profissionais de saúde ter aumentado em área, a situação de saúde ainda é muito preocupante.

AR – Por que o senhor acha que os isolados estão “aparecendo” e sendo avistados com mais frequência? Há algumas hipóteses sendo levantadas? 

Antenor Vaz – Com já me referi anteriormente, existem os isolados que estão buscando contato por se sentirem ameaçados e reconhecê-lo como única alternativa. Estes são os refugiados (como já afirmava o sertanista José Meirelles em 2008, referindo-se aos isolados da região da fronteira entre Brasil e Peru). Os relatos dão conta de que observam muito, antes de decidirem a quem procurar.

Percebe-se também um aumento num conjunto de vestígios (rastros, tapagens em caminhos, etc), encontrados com mais frequência, e/ou aparições em casas de colonos, aldeias e roçados de indígenas contatados, seja para pegar produtos da roça ou mesmo produtos industrializados (panelas, baldes, galões, cordas, tecidos, roupas, redes, facões, machados, etc). Para estes grupos de índios isolados é possível afirmar que já se sentem mais tranquilos para tal e que percebem um certo ambiente de tranquilidade em seu território, como resultado do trabalho do sistema de proteção desenvolvidos entre as décadas de 1988 e 2011. Estes indígenas demonstram interesse pelos “objetos” industrializados, mas não demonstram interesse em consolidar o contato. Não devemos generalizar, até porque com a diminuição do trabalho de fiscalização e principalmente do trabalho de localização, não é possível monitorar estes eventos. Hoje a Sesai se faz mais presente nas terras indígenas que a própria Funai. Daí muitos eventos são noticiados à Funai pelos profissionais de saúde.

Os índios Matís ocupam a sede da Funai em Atalaia do Norte (Foto: Marke Matís)
Os índios Matís ocupam a sede da Funai em Atalaia do Norte (Foto: Marke Matís)

AR – O que o senhor acha da ocupação da sede da Funai em Atalaia do Norte?

Antenor Vaz – Com essa ocupação da Coordenação Regional da Funai em Atalaia do Norte, protagonizada pelos Matís, fica aparente mais uma ameaça que paira, indiretamente sobre os povos isolados do Vale do Javari: a falta de diálogo com os povos contatados. Confesso que estou surpreso, pois às vezes que conversei com Bruno Pereira (atual Coordenador da CR da Funai em Atalaia do Norte) percebi nele um gestor do diálogo que me relatava seu empenho em, junto com a Frente de Proteção, promover a participação de todos na proteção dos isolados e defesa dos indígenas. Infelizmente, depois destes últimos acontecimentos, não conversei com ele e nem mesmo tive acesso a alguma nota oficial, seja da CR ou mesmo da CGIIRC/FPEJ, apenas a nota dos servidores divulgada nesta terça-terça (02).

No dia 28, a FUNAI emitiu uma nota. Ela ajuda a esclarecer algumas questões do ponto de vista da Funai, mas não ajuda a abrir ou dar continuidade ao pouco diálogo iniciado com os indígenas. Os Matís afirmam que ocuparam a CR para abrir o diálogo. Já a Funai afirma na nota que não tem diálogo com a CR ocupada. Minha “impressão” é que a Funai está querendo ganhar tempo para vencer pelo cansaço ou talvez não sabe o que fazer. Enquanto isso, o clima de tensão nas aldeias Matís continua alto.

Tenho acompanhado as notas emitidas pela Associação Indígena Matís (Aima) e artigos publicados sobre o assunto. Aliás, o assunto da morte dos Korubo isolados só se tornou público a partir da matéria publicada por Felipe Milanez . Até então a Funai omitia essa informação. No Vale do Javari, todos sabem do protagonismo propositivo que a FPE Javari teve em todo o processo para a definição e retirada dos invasores da TI Vale do Javari. Quando eu fui coordenador desta Frente de Proteção, percebi como os indígenas reconheciam o papel da Frente de Proteção e sempre nos exigia um protagonismo nessa busca pelo diálogo. Tanto que hoje os Matís solicitam a presença de Sydney Possuelo, Rieli Franciscato, Gilberto Azanha e a minha para participar de reunião para discutir a atual crise. Infelizmente a ONG que se propôs a ajudar na realização desse encontro (uma vez que tem recursos de projetos financiados pelo BNDES) não aceitou as indicações dos Matís, conforme publicado no primeiro informe da Aima (Associação Indígena Matís) na rede social.

*

Orçamento da Funai foi reduzido em 2016

A reportagem da Amazônia Real procurou a Fundação Nacional do Índio para obter informações sobre o orçamento do órgão. Neste ano, segundo a Funai, orçamento é de R$ R$ 502.193.565. Neste valor estão incluídos os gastos com pessoal, benefícios, emendas, precatórios, entre outros. Desse total, a instituição diz que de R$ 112.816.920 são para despesas discricionárias.

As despesas discricionárias, segundo informou a assessoria da Funai, “são as que permitem ao gestor público flexibilidade quanto ao estabelecimento de seu montante, assim como quanto à oportunidade de sua execução, e são efetivamente as que concorrem para produção de bens e serviços públicos”.

Em 2015, disse a Funai, o orçamento foi de R$ 639.328.999. Desse montante, as despesas discricionárias corresponderam a R$ 180.365.689.

Amazônia Real solicitou da assessoria de imprensa da Funai informações complementares sobre qual o orçamento que o órgão utiliza em suas atuações (entre o geral e discricionário) e aguarda o retorno das respostas.

A reportagem quis saber da Funai qual o orçamento atual da Coordenação Regional Vale do Javari, mas a assessoria disse que não foi especificado, uma vez que a definição ocorre apenas após a publicação do Decreto de Programação Financeira (conhecido como decreto de contingenciamento). Nos últimos anos, os valores empenhados foram os seguintes: R$ 1.929.183 (para em 2015); R$ 1.865.567 (2014) e R$ 1.175.798 (2013).

Em 2014, quando a Funai oficializou o contato dos índios na aldeia Simpatia com os Ashanika, no igarepé do Xinane, na fronteira do Acre com o Peru, a Funai disse que naquele ano a Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatatos seria de R$ 2.661.435,00, mas houve um contigenciamento de R$ 738 mil. Os servidores tiveram que trabalhar com uma verba de R$ 1.863.005,00.

O recurso foi para desenvolver ações em 12 Frentes de Proteção Etnoambiental, incluindo verbas par a 36 equipes de pessoal e a reestruturação de material permanente foi R$ 18 milhões, sem incluir os recursos humanos.

Destaque: Antenor Vaz com liderança do Vale do Javari. (Foto: Fabrício Amorim/Funai).

Comments (1)

  1. O mais triste é a gente ver este descaso com as pessoas que são os legitimos donos da terra…que vivem a mercê de aumento ou diminuição de verbas….E como estão isolados o que qcontecer fica por isto mesmo.Fico descrente de um futuro feliz para estes povos.
    Assim como dá uma enorme tristeza não ter um movimento indigena capaz de erguer a voz em defeza de seus parentes-irmãos!

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