Porta para democratização do Judiciário, Defensoria Pública não ‘enfraquece’ a República

O homem, que, nessa terra miserável,
 Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
(Augusto dos Anjos, Versos Íntimos)

Por Claudio Luís dos Santos* 

Na semana em que comemoramos o dia da Defensoria Pública (19 de maio), Defensoria, Democracia e Judiciário são temas que recomendam intensa reflexão.

A crise que abate as instituições tupiniquins revela contornos singulares. A legitimidade das autoridades é a todo tempo questionada, colocando em cheque as decisões políticas dos órgãos públicos. A paz social cada vez mais distante e o bem comum uma ilusão utópica. A democracia doente porquanto distante da vontade popular. A Constituição se pulveriza.

Esse quadro caótico também espelha o funcionamento das instituições do sistema de Justiça. E a Defensoria Pública é a primeira a sofrer os golpes.

Em perfunctória incursão na história recente, vê-se que o Estado Brasileiro optou por um desproporcional fortalecimento do Estado Acusação, em detrimento do Estado Defesa. Os números são sintomáticos quando comparamos,no orçamento da União, as respectivas destinações de recursos para o Ministério Público e Defensoria Pública.[1]

E isso, evidentemente, gera consequências. Desprezar a defesa (rectius, a Defensoria) tem preço. O preço de um discurso (inquisidor)sem contraponto, de uma acusação de qualidade sem defesa à altura, de um simulacro de processo, que toma o lugar de um processo justo.[2]

Isso não significa dizer que a Defensoria seja a panaceia para todos os problemas enfrentados pelo sistema de justiça[3]. Mas certamente é o órgão que possibilitará a participação efetiva e o olhar próprio daquela parcela da população que não tem voz, nem vez (os pobres) por um agente público qualificado.[4] (Fale-se aqui, então, da Defensoria Pública enquanto um projeto de Estado, consciente do seu mister constitucional e aberta à população – a Casa da População Vulnerável, a Casa dos Pobres.).

Pois bem. Exemplo dessa clara opção de desprezo pela Defensoria foi o ajuizamento da ação declaratória de inconstitucionalidade – ADI nº 5296/DF, em 10/04/2015, pela Presidente da República. O pedido é a declaração de inconstitucionalidade da emenda constitucional – EC nº 74 de 2013 (que concedeu autonomia à Defensoria Pública União – DPU), basicamente sob dois fundamentos: vício de iniciativa, porquanto a mencionada EC teria sido iniciada pelo Legislativo e não pelo Executivo Federal; violação ao princípio da separação de poderes.

O Supremo Tribunal Federal indeferiu a medida cautelar requerida[5]. Porém, ainda resta o julgamento do mérito da ADI e a preocupação da contaminação com entendimento que conduza a eventual intenção de diminuir ainda mais a Defensoria em sua autonomia constitucional. E esse risco se potencializa a partir dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio (vencidos no julgamento da medida cautelar).

Os argumentos da divergência, basicamente, exsurgem do acolhimento da tese segundo a qual a Emenda Constitucional nº 74, de 2013 teria violado o princípio da separação de poderes, porquanto o Poder Constituinte Derivado teria avançado indevidamente o desenho organizacional do Estado Brasileiro atribuído pelo Constituinte Originário. E que a única exceção à concessão de autonomia funcional e administrativa para órgão estatal estranho aos “Poderes”, teria sido o Ministério Público. O Constituinte Derivado, portanto, não estaria autorizado a ampliar essa “exceção”, sob pena de risco de criação de uma “República Corporativa”, chegando a motivar um dos Ministros à seguinte indagação: “A quem interessa enfraquecer a República.”[6]

O risco de esse entendimento influenciar no julgamento do mérito da ADI é deveras preocupante. E isso representaria um retrocesso histórico em termos de promoção de direitos humanos, de cidadania, em síntese, de democracia.[7]

Como é fácil perceber, as verdadeiras vítimas dessa possível decisão serão os pobres. Como bem observou o Ministro Luís Roberto Barroso por ocasião do seu voto, teremos “pobres bem acusados e mal defendidos”.

Ademais, não há justificativa, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista jurídico, que autorize a interpretação emprestada pelos autores dos votos vencidos.

Ora, a assistência jurídica integral e gratuita – missão que a Constituição confiou à Defensoria (artigo 5º LXXIV c/c 134, da CRFB/88) –configura direito fundamental multifuncional, e, dentre as suas funções, estão a de promover a igualdade (artigo 3º, I, CRFB/88 – construir uma sociedade livre, justa e solidária) e reduzir as desigualdades sociais (artigo 3º, III in fine da CRFB/88), em um casamento de atribuições que possibilite o efetivo acesso à justiça aos necessitados mediante um processo justo.[8] A autonomia funcional e administrativa, portanto, é corolário lógico dessa missão constitucional. O direito a ter direitos.

E o fortalecimento do Estado Defesa, enquanto exigência do Estado Democrático de Direito, busca o equilíbrio da balança do sistema de justiça, instrumentalizando o acesso à população pobre e vulnerável aos mais variados espaços de poder, em especial ao Judiciário. E, ainda, estabelecendo patamar de discussão tendente a influenciar as decisões de magistrados e promotores em prol dos necessitados[9].

E também e, principalmente por isso, a autonomia funcional e administrativa concedida à Defensoria Pública é constitucional, sob o aspecto da interpretação histórica ou da evidência de não violação do princípio da separação de poderes.

Voltando no tempo, há alguns anos atrás, as discussões que envolveram o tema Defensoria Pública na Assembleia Nacional Constituinte[10], permitirão verificar que já ali se advogava a necessidade de autonomia para que a Defensoria Pública fosse capaz de cumprir com êxito sua destinação constitucional. Esse fato, por si só, é suficiente para afastar a tese no sentido de que a EC 74/2013 (também nessa linha a EC 80/2014) teria violado o desenho organizacional do Estado Brasileiro, e, conseguintemente, o princípio da separação de poderes. Em verdade, o Constituinte Derivado apenas quitou uma promessa histórica outrora feita pelo Constituinte Originário ao povo brasileiro, em especial aos necessitados.[11]

Noutro giro, é preciso observar que o princípio da separação de poderes exige releituraa partir da dinamicidade e complexidade da sociedade contemporânea, já que forjado em ambiente cultural distinto do atual.

E a análise sob esse aspecto histórico-cultural revela sua importância quando nos deparamos com o fato relativo à resistência apresentada contra a fórmula de Montesquieu – que reconheceu independência ao Poder Judiciário, a despeito dos estudos de Locke, que não chegara a descortinar força própria de separação ao mencionado Poder. As críticas vieram no sentido de que o poder dividido não era poder, logo, careceria de força sobretudo se necessária sua intervenção em crises nacionais.[12]

Vê-se que o Poder Judiciário, hoje reconhecido como guardião da Constituição, instrumento do princípio democrático, no passado,teve sua independência/autonomia também sob a mira da desconfiança. (Em verdade, a desconfiança está na natureza humana, não na divisão orgânica de“poder”.).

A separação de poderes, portanto, não é uma fórmula fechada, rígida, universal, padronizada, e denota peculiaridades de país para país. É uma fórmula cultural, pois.[13]

Disso decorre que, em um país com abissal e escandalosa desigualdade social, a Defensoria Pública deveria ser mais do que um “Poder”, mas a porta e a ponte que permitirá o ingresso (físico, até) dos miseráveis, dos pobres, dos vulneráveis nos palácios dos poderosos. Aparentemente paradoxal, ainda mais uma vez, a lição de Amilton Bueno de Carvalho, no sentido de que a Defensoria Pública “deve ser contrapoder (Daniel Lozoya), limitadora do abuso de poder, parceira do débil![14]

Espera-se da Suprema Corte a postura de defesa do povo pobre brasileiro. E essa defesa é expressão do fortalecimento da Defensoria Pública.

Por fim, mitigar a autonomia conferida à Defensoria ao argumento de violação ao princípio da separação de poderes, além de denotar desprezo aos direitos (iguais) dos pobres e vulneráveis, desequilibra ainda mais a balança do sistema de justiça, e, ainda, afetará também o Ministério Público (e o próprio Judiciário – que muito se utilizou da denominada simetria constitucional entre os órgãos) relativamente ao alcance da sua autonomia e da chamada simetria para com o Poder Judiciário (via de mão dupla), já que na mesma linha da EC nº 45/2004 e da EC nº 74/2013, a EC nº 19/1998 e a própria EC nº 45/2004 alteraram a redação de diversos artigos relativos ao regime jurídico do Ministério Público, dentre eles o já famoso artigo 129, § 4º, ponto de partida do alcance da chamada simetria constitucional entre os estatutos da magistratura e do Ministério Público.

Preferimos acreditar que a Suprema Corte enfrentará a questão com sabedoria e sensibilidade social. A Defensoria Pública é instrumento de acesso à justiça destinada aos necessitados, às populações vulneráveis. Nesse sentido, as EC’s 45/2004 e 74/2013[15] apenas emprestaram concreção a importante direito fundamental, portanto cumprindo mandamento constitucional originário.

Já é mais do que passada a hora de o Estado Brasileiro compreender a importância do fortalecimento da Defensoria Pública e o seu papel fundamental no equilíbrio do sistema de Justiça. Somente uma Defensoria forte poderá fazer frente aos intermitentes ataques às garantias constitucionais e ao sagrado direito de defesa, primando sempre pela promoção dos direitos humanos.

A Defensoria é parcial! Sempre estará ao lado do mais fraco, do vulnerável, do injustiçado! É a Casa da população vulnerável! É a Casa do povo pobre!

 

Cláudio L Santos é Defensor Público Federal.

[1] No dia 18 de maio o Plenário do STF retomará o julgamento da ADI 5296/DF, que questiona a autonomia da Defensoria Pública da União.

[2] No orçamento de 2015, por exemplo, a DPU conta com pouco quatrocentos milhões de reais, enquanto que o MPU supera os cinco bilhões de reais. Mais informações sobre (falta de) estrutura da DPU no endereço: http://www.dpu.gov.br/images/stories/arquivos/PDF/Mapa_dpu_2015_web.pdf

[3] Assistimos estarrecidos ao ressurgimento de um indesejável Estado Policial, a criminalização dos movimentos sociais, a criminalização da defesa criminal, a defesa do discurso da lei e da ordem e do direito penal como panaceia dos problemas sociais.

[4] Equilíbrio de forças que pode ser positivo tanto para o Judiciário quanto para o Ministério Público, porquanto “o novo no espetáculo jurídico” de que falou Amilton Bueno de Carvalho. In Defensoria Pública entre o velho e o novo”. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guldfisken/398144161

[5] Em outra perspectiva, na figura de amicus communitas, de que fala Edilson Santana Gonçalves Filho na tese Defensoria Pública: AmicusCommunitas. Disponível em: www.anadep.org.br/wtksite/cms/conteudo/25706/Edilson_Santana_Gon_alves_Filho.pdf

[6] Até o momento foram proferidos seis votos indeferindo a medida cautelar (Ministra Rosa Weber, Relatora, seguida pelos Ministros Edson Fachin, Teori Zavaskc, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e a Ministra Carmen Lúcia) e dois deferindo (Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio).

[7] Indagação feita pelo Ministro Marco Aurélio por ocasião do julgamento que apreciava a medida cautelar da ADI 5296, em 22.10.2015.

[8] Com a declaração de inconstitucionalidade, a DPU retornará ao espaço do Poder Executivo, como um braço do Ministério da Justiça – MJ, totalmente dependente e de “pires na mão”, numa existência “emergencial e provisória” (Lei nº 9020/1995), que até hoje carregamos! (A DPU permaneceu nessa condição de provisoriedade durante 20 anos. Sem carreira de apoio até hoje. Sem estrutura até hoje. Sem interiorização até hoje. A DPU está em menos de um terço das localidades onde estão a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, por exemplo). Para maior aprofundamento, ADI 5296: O dilema de um Governo social contra os pobres. Disponível em: https://racismoambiental.net.br/?p=178478

[9] Canotilho, J.J. Gomes, Mendes, Gilmar F., Sarlet, Ingo W., Streck, Lênio L (coord.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo – Saraiva, 2014, pag. 491-492.

[10] Para maiores detalhes, conferir estudo realizado pelo Defensor Público Jorge Bheron Rocha – Defensoria Pública autônoma é escolha consciente e coerente pela Assembleia Nacional Constituinte de  1987/1988. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/4987466247

[11] Maia, Maurilio Casas. Autonomia – Promessa do Constituinte à Defensoria e um débito histórico quitado. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/17824720825

[12] Martins, Ives Granda da Silva. Uma breve Teoria do Poder. 2ª ed. São Paulo : RT, 2011, pag. 25-26.

[13] Canotilho, J.J. Gomes, Mendes, Gilmar F., Sarlet, Ingo W., Streck, Lênio L (coord.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo – Saraiva, 2014, pag. 145.

[14] Carvalho, Amilton Bueno de. In Defensoria Pública entre o velho e o novo”. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/guldfisken/398144161

[15] A EC 74/2014 pode ser entendida como uma espécie de “EC integrativa”, já que corrige uma teratologia constitucional criada pela EC 45 (frise-se que a PEC previa também autonomia para a DPU, que foi retirada de última hora). É ainda importante dizer que essa EC (45) já foi objeto de questionamento, inclusive, quanto à iniciativa (ADI 3367/DF) e o STF, na ocasião, entendeu-a constitucional (embora, nesse caso, o vício alegado considerava a iniciativa do Judiciário).

 

Comments (1)

  1. DPU sem voz nem vez não consegue tirar do papel (EC) a autonomia que lhe é assegurada. Não se estrutura, e não se interioriza.
    E olha que o prazo está minguando….
    Concurso público homologado e quase nenhum servidor nomeado, e muitos requisitados de outros órgãos.

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