Programa habitacional brasileiro não nega o teto, mas o acesso à cidade. Entrevista especial com Lucas Faulhaber

Patricia Fachin – IHU On-Line

“As empreiteiras têm todo o protagonismo” dos programas habitacionais, tais como o Minha Casa Minha Vida, que tem sido implementado no Brasil desde 2009 pelo governo federal, critica Lucas Faulhaber na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone. De acordo com ele, “elas escolhem o terreno onde os conjuntos habitacionais serão construídos, constroem os prédios e casas e cabe ao governo federal pagar pelo serviço e organizar a demanda. Essas construtoras, por exemplo, fazem 500 unidades e recebem o mesmo valor construindo numa área valorizada ou numa área periférica, então elas preferem construir numa área periférica, onde o terreno é mais barato”.

Autor do livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2015), o arquiteto acompanhou o processo de remoções que aconteceram no Rio de Janeiro desde 2009 e diz que muitas das áreas públicas centrais da cidade “foram entregues às construtoras, quando poderiam ter sido utilizadas para a construção de moradia popular”.

Na avaliação de Faulhaber, os programas habitacionais no Brasil seguem o princípio de não negar o teto, mas negam o restante da cidade às pessoas. “O problema disso é que, onde faltam serviços no Rio de Janeiro, sobram milícias, porque quem acaba oferecendo esses serviços de segurança e ‘gatos’ são as milícias. Então, esses condomínios hoje, no Rio de Janeiro, são comandados pelas milícias ou pelo tráfico, reproduzindo a lógica que antes se aplicava às favelas”, relata.

Lucas Faulhaber diz ainda que o modo como as remoções são feitas e o modo como os programas de habitação são constituídos “é uma forma que a prefeitura tem, inclusive, de dividir as comunidades, porque quando há uma resistência, a frase daqueles que defendem a saída da comunidade das áreas antes habitadas é: ‘Vocês preferem ficar aqui pisando no esgoto ou não?’”. Mas a questão, adverte, “não é se a pessoa prefere pisar no esgoto ou sair. A questão é ou urbanizar ou sair, porque os recursos para urbanizar essas áreas poderiam ser feitos para melhorar a infraestrutura do local”.

Lucas Faulhaber é formado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense – UFF.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico (Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2015) contabiliza o número de 60 mil remoções por conta da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Como você chegou a esse dado?

Lucas Faulhaber – Desde a publicação do livro, esse dado já aumentou e gira em torno de 80 mil pessoas, cerca de 122 mil famílias removidas entre 2009 e 2015. Não necessariamente todas essas remoções têm a ver com os megaeventos, mas eles fazem parte desse contexto, porque 2009 foi o ano em que o Brasil foi eleito para sediar as Olimpíadas e esse também foi o ano em que Eduardo Paes se elegeu como prefeito da cidade do Rio de Janeiro. De todo modo, esses eventos trouxeram recursos para a realização de muitas obras no Rio e isso, em si, foi o grande responsável pelas remoções. Então, há uma articulação dessas obras com todo o capital imobiliário por causa dos megaeventos, mas as remoções sempre foram recorrentes na reestruturação urbana no Rio de Janeiro e, portanto, elas voltaram a acontecer.

IHU On-Line – Hoje alguns pesquisadores fazem críticas à dificuldade de ter acesso às informações sobre as remoções, por exemplo. No caso da sua pesquisa, como se deu esse processo de ter acesso ao modo como as remoções vinham acontecendo?

Lucas Faulhaber – O livro foi publicado no ano passado, mas a pesquisa é um pouco anterior, de 2012, e os dados foram atualizados posteriormente. Eu trabalhei com números oficiais e tive bastante sorte de consegui-los, porque conhecia pessoas que trabalhavam na prefeitura. Em 2012, as remoções, de certo modo, tinham uma certa legitimidade perante a sociedade e eram menos criticadas. Isso se reverteu em 2013, com as grandes manifestações, já que algumas delas trataram do tema das remoções. Depois de 2013, os dados sobre as remoções começaram a ser blindados pela prefeitura e os movimentos sociais não conseguiam ter acesso a essas informações.

IHU On-Line – Como as pessoas removidas se manifestam sobre essa situação e sobre o fato de serem deslocadas para áreas distantes e precárias da cidade?

Lucas Faulhaber – Em geral, as pessoas ficam indignadas. Se você for nesses condomínios do Minha Casa Minha Vida, para os quais elas foram removidas, verá que muitas já os abandonaram, apesar de uma boa parte ainda estar morando lá. As pessoas se sentem enganadas porque é da natureza do Programa Minha Casa Minha Vida ter um período de carência de 10 anos, no qual as pessoas não têm a propriedade do imóvel e, portanto, não podem alugá-lo nem vendê-lo – aí elas fazem contratos de gaveta -, e assim se sentem prisioneiras daquele local no qual a prefeitura as colocou.

As construtoras em geral escolhem locais sem infraestrutura de água e esgoto; assim, o Estado leva a infraestrutura e valoriza esses terrenos, valorizando, inclusive, o investimento e, com isso, todos os demais terrenos que estão na volta, e que são de propriedade dessas construtoras, também se valorizam.

Além disso, há uma série de infraestruturas que não existem nesses locais, como transporte, saúde e educação. Algumas pesquisas mostram que mães perderam o benefício do Programa Bolsa Família porque não conseguiam levar os filhos para a escola ou porque não havia escola próximo da residência ou, ainda, porque não tinha transporte. O problema disso é que, onde faltam serviços no Rio de Janeiro, sobram milícias, porque quem acaba oferecendo esses serviços de segurança e “gatos” são as milícias. Então, esses condomínios hoje, no Rio de Janeiro, são comandados pelas milícias ou pelo tráfico, reproduzindo a lógica que antes se aplicava às favelas.

IHU On-Line – Como essas milícias surgem nesses condomínios?

Lucas Faulhaber – Elas migram para lá. A milícia e o Estado têm uma relação muito entrelaçada, porque vários vereadores e políticos estão “muito juntos” com as milícias.

IHU On-Line – O que as pessoas transferidas comentam sobre política e como avaliam a política federal e municipal de habitação?

Lucas Faulhaber – As posições são muito dispersas. Apesar de as pessoas terem muitas queixas, é claro que algumas estão satisfeitas, porque boa parte delas saiu de condições desagradáveis de moradias. Entretanto, o modo como as remoções são feitas, assim como o modo como os programas de habitação são constituídos, é uma forma que a prefeitura tem, inclusive, de dividir as comunidades, porque quando há uma resistência, a frase daqueles que defendem a saída da comunidade das áreas antes habitadas é: “Vocês preferem ficar aqui pisando no esgoto ou não?”

Mas a questão não é se a pessoa prefere pisar no esgoto ou sair. A questão é ou urbanizar ou sair, porque os recursos para urbanizar essas áreas poderiam ser feitos para melhorar a infraestrutura do local. Mas as pessoas, em geral, têm opiniões diferentes. A princípio, muitas saem felizes, mas percebem, com o decorrer do tempo, que a moradia não é somente um teto, mas que os serviços que existem na região são, mais do que tudo, importantes. E esse é o princípio desses programas habitacionais: não nega o teto a essas pessoas, mas nega o restante da cidade.

IHU On-Line – Como a cidade do Rio de Janeiro foi reorganizada ou reestruturada a partir da especulação imobiliária? Quais são as principais transformações que ocorreram na cidade durante esses últimos anos? Que regiões ficaram mais valorizadas, por exemplo?

Lucas Faulhaber – Foram as regiões que tiveram o maior número de famílias removidas, que não são necessariamente aquelas que, tradicionalmente, são as mais valorizadas da cidade, mas que tiveram maior valorização de 2008 para cá, que são a região da Grande Tijuca, a região do Porto Maravilha e a Zona Norte. Isso não significa que, necessariamente, todas essas áreas se valorizaram, mas o capital imobiliário tenta valorizá-las, porque para o capital, pouco importa que área é essa; o que ele quer é ter maior ganho.

Quando foram removidas, as pessoas foram indenizadas ou reassentadas. No entanto, o valor pago pela indenização é muito aquém do que é necessário para elas serem reinseridas em outros locais. E aquelas que foram reassentadas foram deslocadas para regiões que ficam até 60, 70 quilômetros do local em que residiam anteriormente, ou seja, foram realocadas para os bairros da Zona Oeste, como Campo Grande e Santa Cruz, na periferia da cidade, distante dos principais eixos de transporte. Hoje elas vivem em condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida, que são completamente desassistidos desses serviços.

O protagonismo das empreiteiras

O Programa Minha Casa Minha Vida é construído deste modo: as empreiteiras têm todo o protagonismo do Programa; elas escolhem o terreno onde os conjuntos habitacionais serão construídos, constroem os prédios e casas e cabe ao governo federal pagar pelo serviço e organizar a demanda. Essas construtoras, por exemplo, fazem 500 unidades e recebem o mesmo valor construindo numa área valorizada ou numa área periférica, então elas preferem construir numa área periférica, onde o terreno é mais barato. Isso acontece em várias cidades do Brasil e não somente no Rio de Janeiro, e cabe à prefeitura aprovar os projetos e, no caso do Rio, a prefeitura é completamente parceira desse tipo de empreendimento. Assim, depois que as construtoras constroem esses condomínios em regiões periféricas da cidade, cabe à prefeitura fazer as remoções e enquadrar as pessoas nesses condomínios; não há outras opções para elas.

IHU On-Line – A partir dessas mudanças que ocorreram no Rio, que tipo de projeto habitacional e urbano está em curso na cidade nos últimos anos?

Lucas Faulhaber – Está em curso um modelo claro de segregação, no sentido de colocar os pobres em regiões cada vez mais distantes. E naquelas regiões valorizadas, em que os pobres ainda estão inseridos, o Estado instala as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs para controlar a população.

IHU On-Line – Além da Tijuca, já se vislumbra quais são as novas áreas de potenciais de investimento no Rio de Janeiro?

Lucas Faulhaber – As principais áreas desejadas pelo mercado imobiliário são as áreas ao longo dos novos eixos viários, que são os corredores do BRT, a transOeste, a transOlímpica, a transCarioca e a TransBrasil. A prefeitura fez projetos de lei e já aprovou alguns deles com legislações específicas para alterar os parâmetros construtivos mais permissivos ao longo dessas novas vias. Além dessas, é claro que está a região ao longo da Barra da Tijuca, que é para onde todos esses BRTs, junto com a Linha 4 do metrô confluem e, portanto, essa é uma das áreas de interesse do mercado imobiliário.

IHU On-Line – Essas remoções se reverteram em mobilizações sociais? Quais são os atores que se articulam? Os moradores se envolveram nisso?

Lucas Faulhaber – Em 2013 foram feitas algumas manifestações com essa temática, e algumas favelas atingidas estão tentando se organizar fazendo audiências, mas a luta acaba ficando muito fragmentada. O movimento da Vila Autódromo talvez tenha sido o mais exitoso porque conseguiram a urbanização de uma pequena parcela da vila, mas é um movimento difícil de ser feito, pois o poder público e a mídia tentam negar esse tipo de manifestação e negar qualquer direito dessas pessoas, ou seja, reafirmam que eles são invasores e, portanto, invasores não têm direitos.

IHU On-Line – A atual situação das finanças públicas na cidade do Rio de Janeiro pode ter implicações para habitação ou programas sociais futuros, como consequências pós-Olimpíadas?

Lucas Faulhaber – Dizem que o Rio está escondendo a situação de estar ou não “quebrado” financeiramente, e alguns dizem que só vamos saber disso depois das eleições. O impacto sobre os programas habitacionais vai depender muito mais da situação do governo federal do que do governo municipal. Como quem paga o Programa Minha Casa Minha Vida é o governo federal, e está claro que o governo Temer vai cortar esse Programa, então, não vai haver condomínios nem para remoções nem para habitação de modo geral. Esse processo tende a diminuir um pouco porque não vai ter como tirar tanta gente sem ter onde recolocá-las, mas se acabarem com o programa de habitação, não vai ser possível diminuir o déficit habitacional do Rio de Janeiro.

IHU On-Line – O que seria um modelo de moradia adequado para uma cidade como o Rio de Janeiro?

Lucas Faulhaber – O modelo é ser diverso e, nesse sentido, as favelas são a forma histórica que os povos encontraram para viver e têm que ser reconhecidas como tal, mas elas têm que ser urbanizadas. Existe possibilidade de fazer os reassentamentos de forma não periférica. Além disso, já existe um incrível déficit habitacional no Rio de Janeiro e, portanto, não é preciso sair removendo gente. É preciso fazer muitas habitações para dar conta das pessoas que não têm onde morar; tem que começar por isso. Existem muitas áreas centrais, principalmente a do Porto, que foram entregues às construtoras, quando poderia ter se utilizado esses terrenos, que eram públicos, para a construção de moradia popular.

Minha Casa Minha Vida em Eunápolis/BA (Foto: Secom/BA – Wikipedia)

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