Concurso da Funai: “40 mil pessoas dispostas a contrair malária, febre amarela e a correr de bala de pistoleiro”?

Por Daiara Tukano

Neste domingo às 9h da manhã mais de 40.000 pessoas concorrerão às 220 vagas ofertadas no concurso da FUNAI. Destes 36.125 concorrem ao cargo de indigenista especializado.

Eu só fico pensando: poxa, se o brasil tivesse 36.125 pessoas comprometidas com a defesa e execução dos direitos indígenas, e a implementação das políticas indigenistas… certamente seria um país diferente.

Já pensou 40 mil pessoas enchendo o saco da bancada do agronegócio no congresso nacional?? 40 mil lutando pela demarcação das terras indígenas, contra a construção das hidroelétricas em terra indígena, contra o massacre no Mato Grosso do Sul?

40 mil pessoas pagaram cem reais pra se inscrever no concurso; se eles fizessem uma vaquinha dava até para comprar terras e garantir que algumas comunidades conseguissem um pouco mais de sossego.

Minha impressão é que tem 40 mil pessoas que descobriram em alguns meses um universo paralelo, que a grande maioria desses 40 mil descobriram o Brasil… espero que depois de estudar possam se tornar mais sensíveis à causa dos povos indígenas.

Algo que acho muito difícil é que haja 40 mil pessoas que saibam o que significa ser funcionário da FUNAI além daquele salário tímido de 5 mil reais.

Duvido que sejam 40 mil pessoas dispostas a contrair malária, febre amarela e a correr de bala de pistoleiro, traficante ou madeireiro junto com os índios.

Duvido que saibam que ao alcançar uma dessas vagas serão quase automaticamente criminalizados pela cpi da funai, pelos interesses empresariais dos reis do agronegócio.

Duvido que sejam 40 mil pessoas dispostas a se sujar, sentar no chão, enfrentar horas de sol, canoa, trilha e muita muita briga pra todos os lados, a entender as demandas e a dor dos povos indígenas na luta por vida, dignidade e terra.

Aqui em Brasília existe uma legião de concurseiros profissionais craques em raciocínio lógico, teoria de administração pública e planilhas de excel, que acreditam que o serviço público é coisa de escritório, tipo uma coleção de carimbos e uma pilha de papel, com um salário bonitinho para pagar as férias das crianças em Orlando. Essa galera não aguentaria nem o estágio probatório na funai.

Para cada vaga de “indigenista especializado” concorrem 186 pessoas com qualquer diploma de nível superior. Me inscrevi com meu humilde diploma de Artes Plásticas.

Obviamente no meu curso superior não aprendi nada sobre indigenismo, isso aprendi mesmo na vida por ser indígena.

Há inclusive o entendimento que o indígena é um indigenista nato, pois quando ativo na luta pela defesa de seus direitos lhe é necessário conhecer todo o arcabouço de legislações e burocracias pertinentes à implementação de seus direitos; também o indígena tem o legítimo conhecimento das problemáticas da história e identidade de seu povo assim como pelo convívio da luta política, de outros povos.

Tenho assistido videoaulas sobre indigenismo para o concurso; no caso do conteúdo sobre antropologia e etnografia a abordagem é bem rasa. Tenho certeza que muitos desses 40 mil não sabiam o que era etnografia, etnologia, antropologia social e muito menos etnogênese. Lembro de um dos vídeos onde o professor pisava em ovos para encontrar palavras elegantes e discretas para tratar da gravidade da catequização e evangelização dos povos indígenas como um processo de violência histórica.

A FUNAI precisa de mais servidores, mas não apenas de concurseiros de plantão. Precisa de indigenistas especializados por entender a complexidade e dificuldade que é defender os direitos indígenas e que esteja disposto a se dedicar a isso.

Existem pouquíssimos servidores indígenas na FUNAI; quem estudou para o concurso já deve adivinhar porquê.

Existem nesses 40 mil alguns indígenas concorrendo à vaga de indigenista também. Torço muito para que passem muitos, muitos indígenas. Vou rezar pra isso, porque acho difícil que a gente consiga vencer facilmente os 186 concorrentes por vaga. Certamente seria diferente se houvesse vagas para indígenas.

Existe a lei das vagas para pretos e pardos como política de inclusão social, mas nem para a FUNAI existe vaga para indígenas. Foi uma briga longa e perdida por falta de jurisprudência ou talvez de vontade dos juristas…

Conheço centenas de indígenas que seriam excelentes servidores da Funai, tanto por serem ótimos conhecedores em suas áreas, como por serem comprometidos com nossa luta e pessoas extremamente dedicadas e inteligentes. Sonho com que um dia a funai esteja recheada por essas pessoas: são advogados, antropólogos, comunicadores, gestores ambientais, indígenas capazes de dar um giro de transparência na gestão e execução das políticas indigenistas.

Vou tentar fazer a prova amanhã, na base do antibiótico e dos analgésicos, mais por teimosia que por esperança. A saúde é o de menos; nossa luta sempre foi mais por resiliência e dignidade que por esperança.

Que venham e passem os concurseiros de plantão; nós continuaremos lutando e estudando dentro e fora da FUNAI, nossa luta, nossa vida e nossa verdade não se esgota ali.

 

Comments (9)

  1. Olá Daiara,
    O teu texto me sensibilizou bastante.
    Sou branco, de classe média e concurseiro.
    Rezo todo dia para que eu consiga fazer o meu melhor na causa indígena, que tanto me sensibiliza. Tenho a esperança que não me soquem em um escritório.

    Acho um absurdo que não haja vagas para indígenas. E acho um absurdo que não haja a possibilidade de a discursiva ser escrita na língua materna do candidato.

    Espero que nos conheçamos um dia e espero poder colaborar com a frente de resistência.

  2. Não dá pra separar o joio do trigo. Neste universo de 40.000 candidatos há pessoas comprometidas com a causa mesmo não tendo experiência alguma. O concurso não privilegia os mais apaixonados ou vocacionados. É um sistema falho que favorece os mais adestrados em concursos. Estes não ficarão lá por muito tempo. Concurseiro de verdade não vê causa, vê remuneração! Se passou para um concurso de 3.000,00, vai tentar passar para um de 5.000,00; depois, 7.000,00, etc. Quem sofre são os índios. Infelizmente, é a regra do jogo! Espero que vençam os melhores = apaixonados/vocacionados pela causa!

  3. Parente, tive essa mesma impressão, o Brasil está se preparando para formar indigenistas de escritório que não tem o mínimo interesse em atuar na causa indígena, muitos até contrarios aos direitos indígenas se manifestando nos grupos. Isso é preocupante para nós.

    Tamuxi
    Povo: Manoki

  4. Texto emocionante, tomara que você e eu consigamos passar nesse concurso. A defesa da causa indígena muito me interessa e acho que não gostaria de outro emprego no serviço público que não fosse esse. Lamentei não ter conseguido estudar mais, porque tenho que trabalhar em dois empregos como jornalista. Agora, tudo o que quero é trocar o jornalismo pelo indigenismo.

  5. Kkk. Isso para mim é uma piada e me enjoou. As palavras o texto muito bonito. Mas sabemos que a maioria destas pessoas vão nas áreas indigenas, só contemplar. Poucos são os que realmente trabalham.

  6. Oi. Muito boa reflexão. Pensei muito sobre isso… e faz um ano q mergulhei fundo nos estudos p conseguir ter chances nesse concurso. Não sou indígena. Mas já andei por muitas áreas indígenas e já trabalhei C um bocado de parentes. Assim como eu, muitos não indígenas também fizeram e não são concurseiros de plantão, mas pessoas q tem respeito e amor pela causa e vêem nesse trabalho algo digno, não acredito q são 40 mil mas tenho esperanças q vai dar certo!!!

  7. Obrigado, Daiara e Ana Beatriz, pela bela reflexão mostrando as contradições e burocracias que esse concurso encerra sem as cotas para os indígenas. Sem considerar o empenho que se deve ter na funçao de colaborar para a autonomia dos povos indigenas. Essa postura de discriminação é um forte exemplo do projeto de apagamento da história e memória dos povos originários, como diz meu amigo e professor Givanildo Manoel da Silva, o Giva, o qual dou total apoio em sua campanha a vereador na cidade de sao paulo. Um indio negro que milita nos movimentos sociais a 30 anos, com a coragem de lutar por todas as etnias e tb por nós trabalhadores urbanos, contra o cerne da questão fundiária no país. O capitalismo e seu desenvolvimentismo que devasta nossas qualidades humanistas e arrasa o planeta.

  8. Muito muito boa reflexão. Além de malária e bala …penso no comprometimento com a questão indígena …muitos desemprregsdos muitos concurseiros MAS sobretudo muitos que mesmo fazendo concurso pensam que índio tem muita terra. ….Além dos tradicionais estereótipos.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

catorze − 4 =