Gestão Bolsonaro paralisa 413 processos de reforma agrária, e entidades preparam ação no Supremo

Por Vinícius Sassine, na Folha

O governo de Jair Bolsonaro paralisou 413 processos de reforma agrária, com a interrupção de vistorias e análises sobre desapropriação de imóveis rurais para a criação de assentamentos para famílias sem terra.

A informação aparece em um documento de 5 de outubro do próprio Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), obtido pela Folha.

A paralisia deliberada dos processos ocorre desde 27 de março de 2019, quando a presidência do Incra orientou as superintendências do órgão nos estados a suspenderem atividades de vistoria em fazendas tidas como improdutivas.

Este é um passo inicial e necessário para o desenvolvimento de um projeto de reforma agrária, como a constituição de um assentamento com a divisão de lotes para os trabalhadores rurais.

A razão para a suspensão, conforme o argumento usado pelo Incra, é a falta de recursos no Orçamento da União. O memorando que fez a orientação de paralisia em março de 2019 (01/2019/Sede/Incra) segue valendo, conforme o mesmo documento do órgão, com data de 5 de outubro deste ano.

Diante desse quadro, em que a paralisia da reforma agrária é uma decisão do próprio governo, a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura) e a Contraf (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar) decidiram propor no STF (Supremo Tribunal Federal) uma ADPF (ação de descumprimento de preceito fundamental).

A ação das entidades sindicais do campo contesta a interrupção de ações de reforma agrária pelo governo Bolsonaro.

O texto deve ser protocolado no STF nesta quarta-feira. Assinam o documento, além da Contag e da Contraf, partidos de oposição ao governo do campo da esquerda: PT, PSOL, PCdoB, PSB e Rede Sustentabilidade.

A ação pedirá ao Supremo uma decisão liminar (provisória, em caráter de urgência) que derrube o memorando que orienta a paralisação de vistorias de imóveis rurais. A ação também questiona a falta de destinação de terras públicas para a reforma agrária.

Uma resposta do Incra ao CNDH (Conselho Nacional dos Direitos Humanos) ajuda a embasar a ação. O CNDH é um conselho independente, vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, e que havia pedido explicações ao órgão sobre a paralisia da reforma agrária.

No documento com as respostas, enviado em outubro, o Incra informou o acúmulo de 413 processos, sem perspectiva de que avancem. O quadro orçamentário para 2020 é ainda pior que o de 2019, conforme o ofício do órgão ao CNDH.

“Considerando os processos que estão na fase administrativa (em diversas subfases), contabilizam cerca de 413 processos de obtenção que estão aguardando orçamento para retomar seu andamento, nos termos do memorando”, cita o ofício.

O memorando segue valendo, “sobretudo em razão do agravamento da situação orçamentária da autarquia na LOA (lei orçamentária anual) 2020”, informa o documento.

Como não há dinheiro para pagar uma indenização inicial, não há razão para se fazer a vistoria de um imóvel com possibilidade de que vire um assentamento rural, segundo o Incra. A medida vale para processos em fase inicial de instrução.

“Isso não significa que toda e qualquer vistoria será proibida. Em casos devidamente justificados, fundamentando o caso concreto pela necessidade de interesse público e social, as vistorias seriam autorizadas pela administração central”, cita o ofício, assinado pelo presidente do Incra, Geraldo Melo Filho.

A interrupção de vistorias não se aplica a compras de imóveis já em andamento e a casos já decididos pela Justiça, segundo o presidente do Incra. Ele diz que o órgão precisa cumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal, o que justificaria a paralisia de novos projetos de assentamento rural.

Essa paralisia já é alvo de investigações do MPF (Ministério Público Federal). Procuradores da República acompanham casos, em diferentes estados, em que o Incra resiste em efetivar a retomada de terras públicas, apesar da existência de decisões judiciais assegurando essa retomada.

Na semana passada, o presidente do Incra e o secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Nabhan Garcia, assinaram uma portaria que cria um programa chamado Titula Brasil. O programa terceiriza para os municípios atribuições de regularização fundiária de áreas da União.

Nabhan é líder ruralista e amigo do presidente da República. Sempre foi visto como um número dois dentro do Ministério da Agricultura.

As diretrizes para a reforma agrária (ou para a paralisação de projetos) são traçadas pelo secretário, que não reconhece e age contra a atuação de movimentos sociais como o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Para Alexandre Conceição, integrante da coordenação nacional do MST, o governo faz uso de “entulhos autoritários”, como portarias e memorandos, para acabar com a reforma agrária.

“Ao paralisar completamente os processos, há um desperdício de recursos públicos já gastos. O Incra abandonou, por exemplo, 187 áreas dependentes apenas da imissão de posse”, diz.

O grupo de reforma agrária da PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), um colegiado que funciona no âmbito da PGR (Procuradoria-Geral da República), aponta maiores riscos de grilagem de terras públicas com o novo programa do Incra. Nabhan nega, diz que o programa terá efeito contrário e critica o MPF.

Deputados federais do PT ingressaram na Justiça Federal com uma ação popular contra Nabhan e Melo Filho. Eles pedem, em caráter liminar, a suspensão dos efeitos da portaria que instituiu o Titula Brasil.

A reportagem questionou o Incra sobre as informações contidas no documento de outubro. Não houve uma resposta até a tarde de ontem, terça-feira (8).

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