Nota de repúdio ao Jornal da Noite e Jornal da Tropical (TV TROPICAL FLORIANO – PI BARÃO – MA) por reportagem caluniosa e falas racistas contra os povos indígenas de Uruçuí-PI

A matéria veiculada no Jornal da Noite, no dia 07 de junho de 2021, apresenta-se com uma pretensão investigativa, e procura apurar se houve desvios referentes à aplicação de cerca de 80 doses de vacinas contra COVID-19 na cidade de Uruçuí, Piauí. Trata-se de vacinas que foram destinadas pela Secretaria Estadual de Saúde (SESAPI) aos povos indígenas de Uruçuí, em especial, aos Gueguê da comunidade Sangue. A matéria levanta duas suspeitas articuladas: 1º: De que não há indígenas em Uruçuí, e que, portanto, essas doses foram destinadas a pessoas que “fingem ser índios” e 2º: De que as vacinas foram ministradas ilegalmente à integrantes da família do presidente da Câmara, o senhor Manoel Pereira Borges. Assim, a reportagem levanta a suspeita de fraude de vacinas por familiares do presidente da Câmara que estariam “fingindo ser índios”. Para “provar” seu argumento a reportagem contrapõe a entrevista do senhor Manoel, que se autodeclara indígena, com a opinião de moradores da cidade de Uruçuí, que afirmam não saber da existência de indígenas na região. No dia 08 de junho de 2021, um dia após a reportagem acima mencionada, o apresentador Wellington Raulino, do Jornal da Tropical, também fez falas preconceituosas e reforçou que não há povos indígenas em Uruçuí. À despeito dos interesses políticos que claramente estruturam essas narrativas, viemos manifestar nosso repúdio às falas racistas e preconceituosas contra as populações indígenas em Uruçuí transmitidas pela Tv Tropical Floriano.

Quem determina quem é ou não “índio”?

É importante lembrar que o Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT (promulgada integralmente pelo Decreto nº 5.051/2004), que estabeleceu a autodeclaração como critério para a definição de quem é indígena. Ou seja, não cabe ao Estado ou a qualquer agente externo determinar quem é ou não “ índio”. Dessa forma, não cabe ao Jornal da Noite questionar a identidade indígena do senhor Manoel Pereira Borges, que se declara e é reconhecido por sua comunidade como tal. O senhor Manoel explica ao jornalista a memória que sua comunidade compartilha sobre a presença dos povos indígenas na região, que remonta ao século XVII. Memória esta que é corroborada por pesquisas como a tese da professora Juciene Ricarte Apolinário, que demonstrou em suas documentações a violência e tentativas de massacre dos Guegue no rio Uruçuí. A autora cita o diário de expedição de João do Rego Castelo Branco, quando, entre 1764 e 1765, descendo, “sorrateiramente, o rio Uruçuí os soldados da bandeira logo avistaram algumas mulheres Gueguê que tinham se distanciado do seu grupo com o objetivo de buscar alimentos. Ao serem avistadas sem nenhuma chance de se defenderem foram atingidas pelas armas de fogo dos soldados. Duas foram mortas, algumas conseguiram fugir e uma foi aprisionada” (APOLINÁRIO, 2005, P. 68). O relato, registrado em documento custodiado pelo Arquivo Público do Estado do Piauí, coincide com as memórias ancestrais da comunidade e, como demonstram pesquisas realizadas pelo Instituto Federal do Piauí (COSTA; SILVA; LACERDA; SANTOS; COELHO, 2019), são transmitidas há gerações e obviamente antecedem, a muito, a pandemia da Covid-19.

A matéria encerra-se com essa questão: “É índio ou não o presidente da Câmara?” e para questionar a autodeclaração do presidente da Câmara recorre-se a duas estratégias: entrevistar aleatoriamente os moradores da cidade de Uruçuí e um professor de Geografia da região, que claramente desconhece as pesquisas sobre os povos indígenas no Piauí. Ora, ainda prevalece na história do Piauí a falsa interpretação de que os povos indígenas foram todos exterminados no século XIX. Essa narrativa persiste no senso comum e para refutá-la é preciso investir em várias frentes. Uma delas é a educação. Hoje já temos algumas pesquisas que demonstram, com base em documentos, que embora a violência tenha matado muitos indígenas na região, houve resistência e isso significou sobrevivência. Os descendentes desses indígenas não estão parados no tempo, e como qualquer outra pessoa no mundo se modificaram nas relações de contato. Chamados de “caboclos”, muitos indígenas no Nordeste, como é o caso do Piauí, foram obrigados a esconder quem eram por medo da violência e preconceito que ainda sofrem.

Nesse sentido, a reportagem ignora todo esse processo de violência e resistência ao questionar a existência de indígenas em Uruçuí. Para reforçar essa visão entrevistaram um professor de geografia, cujo nome não aparece. Este senhor apresentou informações desatualizadas sobre o princípio de autodeterminação de povos indígenas e sobre os direitos indígenas no Brasil. Ele afirma que “para fins de direito, uma pessoa que mesmo tendo tido laços sanguíneos longe com seus ancestrais há muito tempo, ela de certa forma perdeu direitos […] porque praticamente não viveu as condições de indígenas”. Dessa forma, ele afirma erroneamente que ser índio é seguir certos costumes. Como afirmamos anteriormente, não é a língua, os “costumes”, o cocar, o local de moradia que determina quem é ou não indígena. A identidade indígena é autodeclaratória e só cabe à comunidade a qual pertence reconhecer sua declaração. No Piauí temos uma lei estadual que reconhece a presença indígena no território (Lei 7.389/2020). Embasados nessa lei a SESAPI solicitou e conseguiu incluir no plano de vacinação estadual os indígenas do Piauí, como é o caso dos Gueguê do povoado Sangue.

A vacinação dos povos indígenas no Piauí

A reportagem do Jornal da Noite quis criar uma falsa ideia de que os Gueguê do Sangue foram vacinados porque são parentes do presidente da Câmara e não por serem indígenas e terem esse direito reconhecido. A reportagem justapõe as falas da coordenadora de imunização do município e dos moradores de Uruçuí para sugerir a suposta fraude ao questionar se todos os vacinados são “de uma família só ou são famílias diferentes?” A coordenadora afirmou que não são da mesma família. Já o presidente da Câmara falou que são uma família só. A edição do jornal, de forma sensacionalista, tenta expor uma incongruência e reforçar a ideia de que a vacinação dos Gueguê ocorreu porque são parentes do presidente da Câmara. Além do comprometimento com a ética, falta ao jornal uma pesquisa séria e entendimento sobre a história dos povos indígenas no Brasil, em especial ao Piauí. Muitas dessas famílias descendem sim de um ancestral comum, significando parentesco direto ou não. Tendo um parente vereador ou não, os Gueguê do Sangue, como todos os povos indígenas no estado, seriam vacinados porque são grupos prioritários definidos por determinação legal.

Os povos indígenas não estão no passado

Durante a exibição do Jornal da Tropical, no dia 08 de junho de 2021, o apresentador Wellington Raulino, ao ler um comentário de um ouvinte sobre a reportagem feita pelo Jornal da Noite na cidade de Uruçuí a despeito da vacinação dos indígenas daquela região, disse que “reconhecidamente no Piauí só existe uma tribo indígena […] então oficialmente essa tribo da cidade de Uruçuí não existe […] Todo mundo sabe que no Piauí os índios foram dizimados […] e agora estão reivindicando suas origens indígenas […] mas a gente sabe muito bem quais são os interesses por trás disso ae, porque se quisessem só as raízes, mas estão querendo as terras que pertenceram a esses índios, estão querendo verba da FUNAI e ninguém nunca estudou a tradição de índio, ninguém nunca viveu uma tradição indígena […] muitos tinham vergonha de dizer que era índio em Uruçuí […] agora para se vacinar apareceram 80 índios”.

Cabe aqui um primeiro adendo, “tribo” é um termo colonial, pejorativo para se referir aos povos indígenas. Também é preciso contestar as diversas mentiras proferidas pelo suposto repórter. Primeiramente, o Piauí conta, por enquanto, com as seguintes etnias que se autodeclaram indígenas: Tabajara, Tabajara Tapuio, Guajajara, Warao, Gamela, Kariri, Caboclos da Baixa Funda (também de Uruçuí) e os Guegue do Sangue, sem falar de outras comunidades que, nos futuro, possam autodeclarar-se. Isso se conecta à longa trajetória de violências e perseguições que fizeram com que muitos grupos indígenas se desagregassem e tantos outros se silenciassem, seja por vergonha, por medo ou para evitar a morte. Mas agora, de posse do conhecimento dos próprios direitos – como o artigo 232 da Constituição, que define que os “índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo” -, e fortalecidos com a proximidade do movimento indígena nacional, manifestam suas tradicionalidades.

Em segundo lugar, a terra é um DIREITO garantido pelo artigo 231 da Constituição aos povos indígenas, ainda que tenha sido espoliada durante todos esses séculos. Além disso, como é de conhecimento público, as terras do Cerrado, indígenas ou não, foram retalhadas e repartidas nas últimas décadas em benefício de grandes proprietários e, mais recentemente, do agronegócio. No caso dos Guegue do Sangue, sua expulsão remete à década de 1970, durante a Ditadura Militar, contexto em que as ações violentas de potentados rurais eram impunes. Ou seja, os interesses que sempre imperaram são daqueles que anseiam pela extinção dos índios, ambiciosos pelo acúmulo fundiário.

Em terceiro lugar, nunca houve solicitação de verbas da FUNAI por parte dos Guegue do Sangue, fazendo com que tal declaração se configure como calúnia, passível de processo. Por fim, como já foi citado, a luta da comunidade pelas terras do Sangue é antiga, e os estudos acerca dessa história começaram em 2017 a partir de projetos do Instituto Federal do Piauí, campus Uruçuí. Em janeiro de 2018 foi    entrevistada       a          senhora         Raimunda                          Pereira       Borges (https://www.youtube.com/watch?v=UtbCItU4Upg&list=PLA8OXq1yCoIm-wAQeUAfL U6v9C4Sg-Ych&index=8) e, em setembro de 2018, o senhor Carlos Pereira Borges (https://www.youtube.com/watch?v=do4xTXFG7tc&list=PLA8OXq1yCoIm-wAQeUAf LU6v9C4Sg-Ych&index=11), respectivamente mãe e tio de Manoel Pereira Borges, e, nessas ocasiões, se afirmaram indígenas por serem filhos, netos e bisnetos de índios e índias. No ano de 2019 um artigo resultado da pesquisa foi publicado em na revista      Ouricuri,     da             Universidade             do          Estado               da                           Bahia (https://www.revistas.uneb.br/index.php/ouricuri/article/view/6313).               Neste                    mesmo ano a exposição virtual “Excluídos da História”, da Olimpíada Nacional em História do Brasil, publicou um verbete sobre Delzenir Pereira dos Santos, irmã de Manoel Pereira Borges, presidente da Associação dos Povos Pró-Índio do Sangue (APISU) e liderança Guegue do     Sangue (https://www.olimpiadadehistoria.com.br/especiais/excluidos-da-historia/verbetes/17 59) . Em 2020, as lideranças Cícero Tabajara e cacique Henrique Tabajara Tapuio, em nome da APOINME (Associação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) estiveram em Uruçuí em visita aos Guegue e nos lugares de memória do povoado Sangue, como a Aldeia Velha e o Cemitério dos Índios.

Os indígenas não estão parados no tempo. Viver a tradição indígena – como se fosse algo homogêneo e estático – não é se comportar como os que viveram aqui há séculos atrás, mesmo porque seus descendentes foram obrigados a se transformar durante todo esse tempo. Os indígenas são heterogêneos, têm trajetórias, crenças, formas de ver o mundo plurais e não se reduzem a estereótipos definidos por critérios superficiais, ignorantes e comprometidos com sua animalização. Portanto, a matéria veiculada no Jornal da Noite no dia 07 de junho de 2021 e a fala do apresentador Wellington Raulino, do Jornal da Tropical, no dia 8 de junho de 2021, além de conter informações sem precisão histórica, são RACISTAS e ferem o direito constitucionalmente garantido aos indígenas de autodeclaração. Além disso, de forma sensacionalista e sem nenhuma preocupação investigativa, a reportagem e o apresentador acima citado não apresentam ao público as normativas federais e estaduais que garantem aos povos indígenas o direito à prioridade na vacinação, contribuindo para desinformar a população. Os Gueguê do Sangue foram os alvos diretos dessa matéria sensacionalista, mas todos os povos indígenas no Piauí sofrem diretamente com esse tipo de publicação racista e medíocre. Que o racismo e a desinformação, tão exacerbados nestes tempos, não sejam admitidos e nem passem impunes. Que todo o povo de Uruçuí e do Piauí saiba que o “extermínio dos índios” não passa de uma farsa.

Assinaturas:

  • Povo Gueguê do Sangue de Uruçuí
  • Povo Caboclos da Baixa Funda de Uruçuí
  • Povo Gamela de Bom Jesus, Baixa Grande do Ribeiro, Currais e Santa Filomena
  • Povo Tabajara Tapuio de Lagoa de São Francisco
  • Povo Tabajara de Piripiri
  • Povo Tabajara Ypy do Canto da Várzea de Piripiri
  • Povo Tabajara da Oiticica de Piripiri
  • Povo Kariri de Queimada Nova
  • Povo Akroá Gamella – Território Taquaritiua / MA
  • Povo Kariú kariri de Estreito- MA
  • Povo Tremembé do engenho de São José de Ribamar /MA
  • Povo Tremembé de Raposa / MA
  • Povo Anapuru Muypurá de Chapadinha – MA
  • Povo Anapuru Muypurá de Brejo – MA
  • Povo Anapuru Muypurá de Buriti dos Tocantins – TO
  • Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo APOINME Regional e Coordenação da Microrregião do Piauí
  • Grupo de Trabalho “Os índios na História” seção Anpuh-Piauí
  • Laboratório do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia PNCSA/UFPI
  • Grupo de Pesquisas Identidades Coletivas, Conhecimentos Tradicionais e Processo de Territorialização/UFPI
  • Coletivo OcupARTHE
  • Núcleo de pesquisa e estudo em História, territorialidades e movimentos sociais/UESPI
  • Grupo de Pesquisas em Ciências Humanas e Linguagens no Cerrado – IFPI/Uruçuí
  • Laboratório de Antropologia, Política e Comunicação – LAPA/UFPB
  • Grupo de Estudos e Pesquisas Étnicas – GEPE/UFC
  • Grupo de Pesquisa e Extensão Direitos Humanos e Cidadania UFPI
  • Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etnicidade NEPE/UFPE
  • Associação Nacional de Ação Indigenista – ANAÍ
  • Jose Augusto Laranjeiras Sampaio – UNEB
  • Programa de pesquisa povos Indígenas no Nordeste do Brasil – PINEB
  • Hélder Ferreira de Sousa – UFDPar
  • GT de História Indígena da Universidade Federal da Bahia
  • Colegiado   de Antropologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)
  • Laboratório de metodologia, pesquisa e documentação em Antropologia (LaMPDa) – UNIVASF
  • Hybris – Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Relações de Poder, Conflitos, Socialidades – PPGAS-UFSCar / PPGAS-USP
  • Laboratório de Arqueologia Histórica – LAH/UNIVASF
  • Manuela Carneiro da Cunha – Universidade de Chicago e Universidade de São Paulo
  • Krisis – Laboratório de Antropologia, Filosofia e Política (UNIVASF)
  • Grupo     de     pesquisa     Epistemologia     da     Antropologia,     Etnologia    e Política-GPEAEP/Cnpq
  • Grupo   de Pesquisa em Antropologia, Diversidade, Interculturalidade e Educação – GPADIE/UFPI
  • Grupo de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso – UFPI
  • Laboratório de Arqueologia Histórica – LAH/UNIVASF
  • Grupo VIP – Vilas Indígenas Pombalinas – CNPq/IFPI
  • Semiárido         Permanente         Mundos         Indígenas         CHAM         UNL, Portugal/PPGH-UFCG, Brasil
  • Grupo História, Meio Ambiente e Questões Étnicas – CNPq/UFCG
  • Rafael Rogério Nascimento dos Santos – Unifesspa
  • Programa de pesquisa povos indígenas no Nordeste do Brasil – PINEB/UFBA
  • Glória Kok e Chão Coletivo

Arte: Secom/MPF

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