Por Hêider Aurélio Pinto, no blog de Rogério Cerqueira Leite
Em breve, esse fatídico dia será conhecido como aquele no qual foram tomadas decisões que iniciaram o mais danoso e perverso retrocesso no financiamento e na estrutura da Atenção Básica e Vigilância em Saúde no Brasil.
Atenção Básica diz respeito aos serviços públicos de saúde próximos às nossas casas e que são capazes de resolver o problema de oito em cada dez pacientes/cidadãos atendidos.
No mundo inteiro, os sistemas de saúde mais custo-efetivos – por exemplo, Canadá e Inglaterra — têm um ponto em comum: forte investimento na atenção básica para que tenha boa estrutura, bons profissionais, acesso amplo e seja muito resolutiva.
No Brasil, fazem parte da Atenção Básica, entre outros serviços e ações:
- Saúde da Família,
- Agentes Comunitários de Saúde,
- Mais Médicos,
- a maior parte do Brasil Sorridente, Saúde na Escola, Núcleos de Apoio à Saúde da Família, com psicólogos, fisioterapeutas etc.
A Vigilância em Saúde, por sua vez, é responsável por:
- Controle e ação de combate a epidemias, como dengue, zika, febre amarela, meningite e aids;
- Ações que evitam o aumento de certas condições de saúde, como a obesidade, tabagismo, doenças crônicas;
- Prevenção de várias doenças por meio do programa de imunização (vacinas) do Sistema único de Saúde (SUS);
- Fiscalização de alimentos, medicamentos, água, supermercados, restaurantes, empresas, locais de trabalho, portos e aeroportos, clínicas privadas de saúde.
O objetivo dessas fiscalizações é a prevenção de doenças. Mas seus técnicos podem até aplicar multas para coibir ações causadoras de doenças nos consumidores e trabalhadores dos locais.
Em 1996, ainda no primeiro período de estruturação do SUS, foi criado um financiamento específico do Governo Federal para as áreas justamente de Atenção Básica e de Vigilância em Saúde.
Por quê?
Ora, porque são essenciais para a saúde da população. Podemos dizer que é o coração do sistema.
Todo prefeito deveria tê-las como máxima prioridade.
Afinal, além de evitar que as pessoas adoeçam, resolvem as doenças antes de se complicarem e exigirem a ida para hospital, urgência.
Porém, rende mais notícias na mídia e votos, o prefeito que, por exemplo:
- criar um pronto socorro, mesmo que ele pouco resolva e custe muito dinheiro;
- inaugurar uma ala no hospital, mesmo que só tenha um anestesista, caríssimo, quatro dias por mês e as pessoas só sejam operadas nesses dias;
- contratar clínicas privadas para atendimento de especialidades, mesmo que na região haja um cartel que cobra o triplo pelas consultas e haja fila de espera imensa, só “furada” pelos apadrinhados políticos.
Enfim, há diversos motivos e interesses — legítimos e ilegítimos, lícitos e ilícitos, oficiais e impublicáveis — que fazem com que as prefeituras priorizem recursos para a chamada atenção especializada em vez da atenção básica e vigilância em saúde.
Independente disso, nos últimos 20 anos, de 1996 a 2016, o SUS vem conseguindo manter um piso de financiamento da Atenção Básica e na Vigilância, graças a recursos federais que só podem ser gastos nessas áreas e que exigem complementações e contrapartidas dos municípios e estados.
Pois tudo isso começou a acabar nessa quinta-feira, 26 de janeiro de 2017.
O Ministério da Saúde propôs e a Comissão Tripartite aceitou que os Blocos de Financiamento do SUS, regulamentados pela Portaria 204 de 2007, de Atenção Básica, Vigilância em Saúde, Média e Alta Complexidade, Medicamentos e Gestão tornem-se um só: o Bloco de Custeio.
Qual o efeito prático?
Lembram-se de que um pouco atrás falei dos vários serviços e ações?
Até ontem, os recursos do Ministério da Saúde iam para cada setor.
Com a decisão dessa quinta-feira, o Ministério da Saúde repassará os recursos para uma conta única da prefeitura, cabendo ao gestor local decidir onde usá-los.
Detalhe: não há um mínimo de exigência e regras que, dizem, ainda serão criadas, mas com o cuidado de “nunca limitar a liberdade do gestor local”.
Ora, se estivéssemos num momento de aumento de recursos para o SUS se poderia inovar na gestão e ter uma regra mais flexível.
Por exemplo, que, de um lado, garantisse o patamar de financiamento atual de cada uma das áreas, ou seja, não deixasse que os recursos de uma fossem reduzidos para desviar para outras.
De outro, aportasse mais recursos –“dinheiro novo” — mediante um sistema efetivo de avaliação de resultados de modo que desse, sim, mais liberdade para a decisão do uso. Só que comprometendo o gestor com resultados e consequências de sua decisão.
Em 2011, diversos instrumentos foram criados para caminhar nessa direção, como: normas (o decreto 7.508, da Presidenta Dilma regulamentando a Lei Orgânica da Saúde, é uma delas), programas (de avaliação da qualidade no SUS) e avanços em tecnologias de informação ou comunicação.
Mas o contexto atual é outro. O orçamento da saúde para 2017 é o mesmo do de 2014 corrigido pela inflação.
Portanto, se em 2014 era insuficiente, em 2017 será muito mais.
De 2014 para cá, ampliaram-se os postos de saúde e UPAs, aumentou o número de profissionais do SUS, passou-se a consumir mais medicamentos e exames.
Em 2016, foi aprovada a absurda PEC 241 (PEC 55), que congela os recursos da saúde pelos próximos 20 anos. Portanto, até 2036.
A falta de recursos é tal que o próprio Ministério da Saúde, como “presente de natal”, autorizou os municípios a reduzirem até metade dos médicos das UPAS.
E agora mais essa decisão do Ministério, que, na maioria dos municípios, poderá desmontar ações essenciais de atenção básica e vigilância em saúde.
Muitos prefeitos, obviamente, aplaudirão: “já que o Ministério a cada dia me passa menos recurso, ao menos que me deixe usá-los como e onde eu quiser”.
Alguns defensores da decisão, num flagrante de hipocrisia, esconderão a evidente crise de financiamento da Saúde e argumentarão em favor de uma “inovação” que não consegue ser demonstrada.
Até porque o suposto novo modelo de gestão e avaliação desse financiamento, segundo seus formuladores, está previsto para ser construído num futuro sem data.
Infelizmente, o acompanhamento da aplicação da decisão nos mostrará as consequências que ela trará ao SUS já a partir deste ano.
O acompanhamento nos permitirá também desmascarar a hipocrisia de que quem corta os recursos do SUS se aliou ao oportunismo do “salve-se quem puder” para prejudicar em muito a saúde dos brasileiros.
Na prática, o que significará?
Além da piora da qualidade da assistência e da estrutura, aumento dos tempos de espera e filas.
Teremos também aumento de doenças preveníveis, doenças graves e, consequentemente, de mortes.
Certamente haverá piora dos indicadores de saúde e aumento ainda maior da dependência de alguns prefeitos de corporações econômicas e/ou políticas, às vezes mafiosas, que parasitam os recursos da saúde.
Será isso ou lutar, denunciar e resistir sem trégua a esse governo que em menos de um ano no poder está destruindo, um a um, importante avanços dos últimos 20 anos da saúde pública no Brasil.
A decisão será agora publicada no Diário Oficial da União. Os seus efeitos já serão sentidos em 2017.
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Fonte: Viomundo
Hêider Aurélio Pinto. Médico Sanitarista. Coordenou o Programa Mais Médicos.
Ilustração: Aroeira.