Breve radiografia dos conflitos ambientais no Brasil tendo por base o Mapa da Fiocruz*

Por Tania Pacheco

O Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil foi disponibilizado na internet em março de 2010, após dois anos de pesquisas. Na ocasião, apresentava 297 casos, georreferenciados numa plataforma construída a partir do Google Maps. Eram os 297 conflitos considerados os mais graves existentes no País à época, e não digo isso considerando apenas os depoimentos e as vivências das comunidades neles empenhadas, fontes primárias das nossas pesquisas, ou dos parceiros e instituições que colaboraram no levantamento de dados a respeito. Os resultados dos levantamentos por estado foram cuidadosamente referendados por respeitados pesquisadores locais, que concordaram com a nossa triagem em 100% dos casos. No máximo, algumas dessas pessoas, às quais chamamos de ‘validadores’ e cujos nomes podem ser verificados no site, sugeriram outros casos a serem pesquisados num segundo momento, considerando sua importância secundária ante a nossa seleção.

Ao longo dos últimos oito anos, o número de casos no Mapa quase duplicou, chegando a 571 conflitos, em agosto de 2016. E esse número não se manteve desde então porque nenhum conflito, novo ou já detectado mas ainda por pesquisar, tenha merecido a nossa atenção. Lamentavelmente, os trabalhos do Mapa foram interrompidos. Os atuais ocupantes do Ministério da Saúde retiveram os recursos a ele destinados, embora já estivessem devidamente aprovados pela gestão afastada. Mas os resultados do Mapa continuam disponíveis na internet, como importante instrumento de luta das comunidades, que o consideram fundamental para tirá-las da invisibilidade e como importante reforço para as suas lutas.

O que iremos ver aqui é uma rápida síntese do que o Mapa de Conflitos nos revela sobre o cenário brasileiro, considerando as populações atingidas por injustiças socioambientais e os agentes dessas injustiças, principalmente. O Mapa também nos permite estabelecer quais os principais danos causados à sua saúde, compreendida num sentido amplo, e ao meio ambiente. Digam respeito ao campo ou à cidade, duas questões são comuns a todos esses conflitos: o modelo de desenvolvimento hegemônico é seu causador maior, e a disputa pelo uso do território sempre de alguma forma neles prevalece.

A primeira versão do Mapa trouxe um dado para alguns inesperado, ao mostrar a absoluta predominância do meio rural sobre o urbano, no somatório de conflitos. Apenas 17,51% deles estavam nitidamente inseridos em áreas de cidades e, se fôssemos examiná-los, veríamos que se trata de casos localizados em pequenas áreas e de consequências a elas circunscritas. Ao contrário disso, os conflitos existentes em áreas rurais compreendem vastas extensões de terras, por vezes alcançando mais de um município e se espraiando algumas vezes para além dos limites do próprio estado.

Cabe aqui um exemplo: a realidade do estado de São Paulo, que registrava o maior número de conflitos no Mapa (30), merece ser comparada à do Amapá, com apenas 8 casos. Acontece que esses oito conflitos do Norte atingem 100% dos 16 municípios do estado, ao passo que os 30 casos de São Paulo afetam apenas 38 municípios, correspondendo a 5,9% do total de 645 existentes.

Na nossa avaliação em 2010, essa relação campo-cidade mudaria com o acréscimo de novos casos, deslocando o eixo para a zona urbana, onde afinal moram cerca de 84% da nossa população, de acordo com o IBGE. Não foi o que aconteceu, entretanto. Como pode ser visto no próximo slide, não só o rural continuou a predominar, como, ao contrário do esperado, a incidência de conflitos urbanos caiu para 13,89%.

Afinal, o que o Mapa nos mostra é nada mais que um reflexo objetivo da dinâmica econômico-produtiva da expansão capitalista no País, que continua a se expandir de forma crescente. Na Região Amazônica, no Cerrado Nordestino e do Centro-Oeste, na zona litorânea de grande parte do Nordeste, o agravamento dos conflitos está relacionado à expansão das fronteiras pecuária e agrícola, da carcinicultura e de empreendimentos relacionados à produção de energia, especialmente por meio de hidrelétricas, pequenas centrais (PCHs) e parques eólicos. A mineração, as inúmeras obras de infraestrutura (rodovias, ferrovias, hidrovias) e grandes projetos de agricultura irrigada (como a transposição do São Francisco) completam o quadro, envolvendo vastos territórios e diversos municípios.

Esse cenário determina, como consequência natural, a definição do protagonismo nesses conflitos.

O gráfico acima nos permite verificar, em ordem decrescente, como diferentes comunidades estão envolvidas nos conflitos do Mapa.

Cabem duas observações a respeito, entretanto. Em diversos casos, participa da luta pelo território mais de uma comunidade. Vale citar o norte de Minas Gerais, por exemplo, onde indígenas Xakriabá, quilombolas e vazanteiros estão juntos na defesa de seus territórios. Ou a firme atitude dos Munduruku, no Pará, solidários na luta também pelos direitos de seus vizinhos ribeirinhos. Devemos, pois, considerar que diferentes atores podem estar presentes num mesmo conflito.

Há, ainda, situações em que as comunidades se auto-identificam de mais de uma maneira, como quilombolas e agricultores familiares, como ribeirinhos e extrativistas, ou, ao contrário, optam por negar seu pertencimento. Esse vem sendo o caso da auto-identificação em algumas comunidades quilombola, envolvidas em disputas alimentadas pela disseminação de argumentos falsos que às vezes levam até mesmo ao recuo nos processos de reconhecimento territorial.

Um resultado que merece atenção especial é a presença dos povos indígenas como o segundo grupo mais envolvido em conflitos, registrados em 28,64% deles. Ora, se considerarmos que segundo o IBGE (2010) eles totalizam cerca de 800 mil pessoas, correspondendo a 0,04% da população, como ignorar essa presença nitidamente majoritária sem associá-la à ideia de genocídio ou, pelo menos, de tentativa de etnocídio?

Se fizermos uma breve comparação entre os oito primeiros colocados nas duas representações do Mapa, de 2010 e de 2016, teremos um quadro revelador da ‘coerência’ das injustiças ambientais envolvidas nos conflitos.

Como podemos ver, houve uma troca de posições entre indígenas e agricultores familiares na liderança, o que pode sugerir uma queda comparativa no número de conflitos envolvendo os primeiros ao longo desses oito anos. Paralelamente, aumentaram os conflitos envolvendo quilombolas. A única diferença de fato ficou por conta da oitava colocação, na qual as comunidades urbanas substituíram os moradores de áreas atingidas por acidentes ambientais.

Antes de passarmos adiante, vale uma imagem dos conflitos envolvendo povos indígenas no Mapa, para que se tenha outra dimensão da magnitude do problema:

A questão do território está igualmente presente nas cidades, para além do fato de não podermos esquecer que a grande maioria dos habitantes das periferias urbanas e de suas zonas mais degradadas é oriunda do campo, de onde foram sumariamente expulsos. O Mapa nos mostra que 6,03% dos conflitos envolvem Moradores de Periferias, Ocupações ou Favelas, enquanto outros 3,69% são protagonizados por Moradores do Entorno de Lixões. A eles deveria ainda ser acrescida parte dos 4,86% Moradores de Áreas Atingidas por Acidente Ambientais, uma vez que tais “acidentes” (palavra que ganhou vários sentidos ultimamente, de Mariana aos presídios do Norte) não se restringem às áreas urbanas.

Mas quem são, afinal, os responsáveis pelos conflitos?

Uma análise da atribuição de responsabilidade pelos conflitos nos oferece dados que refletem antes de mais nada as falhas e omissões das nossas políticas públicas. Em primeiro lugar, com mais que o dobro percentual da segunda colocada, temos o item Atuação de Entidades Governamentais, presente em 62,31% dos casos. No quarto posto, temos Políticas Públicas e Legislação Ambiental, com 23,95%. E, no quinto, Atuação do Judiciário e/ou do Ministério Público, presente em 16,25% conflitos.

Essas três categorias aparecem, na maioria dos casos, associadas a um segundo fator que é o que leva diretamente ao conflito. Mas não podemos esquecer que essa relação só está presente na medida em que foi precisamente a ação/inação equivocada da política pública que permitiu a ação contra os interesses das comunidades. Os monocultivos (presentes em 29,48% dos casos), as barragens e hidrelétricas (16,08%), a mineração, garimpo e siderurgia (15,91), a pecuária (12,73%), as madeireiras (11,89%), a especulação imobiliária (8,38%), a indústria química e do petróleo (8,21%) e os agrotóxicos (7,71%), entre outros, ganham cada vez mais espaço no território, destruindo os bens comuns e as populações, com o aval dos governantes e as bênçãos dos legislativos e judiciários.

No livro que a Editora Fiocruz publicou sobre o Mapa de Conflitos, apontamos diretamente a incidência da atuação de algumas empresas sobre as diferentes comunidades. Revisitando esses dados para preparar esta palestra, verifiquei como essa atuação não só se manteve, como se expandiu. Alguns exemplos merecem ser mencionados: no campo dos monocultivos, a Suzano Papel e Celulose aumentou sua presença de 6 para 10 casos. A Votorantim, com seus diferentes tentáculos, subiu de 17 para 25; a Petrobras, de 18 para 35. Eike Batista pode só agora ter voltado aos noticiários, mas seus aglomerados EBX, MMX, LLX, MPX, OSX e OGX aumentaram sua presença de 14, para 35 conflitos, enquanto a Vale subiu de 19 para 51 citações. Representando o lado governamental, o BNDES expandiu sua presença de 29 para 49 casos, em oito anos.

Num comentário breve, podemos dizer que os principais impactos desses conflitos afetam o meio ambiente e, obviamente, apontam a área rural como a mais atingida. Presente nos 11 primeiros colocados na listagem dos danos ambientais, ela volta à cena mesmo após a cidade se fazer presente.

Uma rápida olhada ao gráfico mostra a presença do território, nas suas diversas representações: da ocupação e apropriação de terras tradicionais ao desmatamento, da contaminação das águas, do solo e do ar à destruição dos biomas, do assoreamento dos rios à erosão e desertificação das terras.

Mas como isso se reflete na vida e na saúde das comunidades?

Trabalhamos no Mapa com uma concepção ampliada de saúde, que ultrapassa questões biomédicas e considera aspectos relacionados à qualidade vida, à cultura, às tradições, ao que para muitos, principalmente os povos tradicionais, seria o ‘bem-viver’. Assim, destacamos no Mapa, para além das doenças crônicas, transmissíveis ou não transmissíveis, questões outras relacionadas, principalmente, a diferentes formas de violência, da insegurança alimentar ao assassinato.

Não é sem motivo, pois, que a Piora na Qualidade de Vida se revela como o principal problema de saúde apontado pelas comunidades. Mais que um sentimento subjetivo, o conceito de qualidade de vida representa aqui uma visão complexa de mundo que rejeita a ideia de um desenvolvimento – traduzido em progresso, crescimento, riqueza e consumismo – que impõe como ônus a perda de seus valores comuns, da vida em comunidade, de tradições e práticas sociais nas quais a natureza desempenha papel central.

Como no gráfico onde estavam presentes diferentes formas de atuação do poder público como responsáveis maiores pelos conflitos, aqui temos a Piora na Qualidade de Vida  presente em 85,93% dos conflitos. E ela aparece sempre acompanhada de um segundo elemento, que é o responsável direto pelos problemas de saúde enfrentados pela população.

Comecemos por um que podemos considerar radical: as quatro diferentes formas de “Violência” registradas de forma específica pelo Mapa. Ela está presente como Violência-Ameaça em 44,89% dos conflitos; como Violência-Coação Física, em 19,93%; como Violência-Lesão Corporal, em 13,57%; e como Violência-Assassinato, em 12,56%.

A fome – nome usado pelas comunidades em lugar de Insegurança Alimentar e sem dúvida um outro tipo de violência – aparece em 41,21% dos casos. Entre os ‘mais votados’ temos ainda as doenças crônicas (33,17%) ou transmissíveis (15,08%) e, a elas diretamente ligada, a Falta de Atendimento Médico (27,14%).

Um item neste levantamento merece uma atenção especial: “Suicídio”, presente em apenas 2,51% dos conflitos. Apesar do número reduzido, o que torna a questão digna de menção é o fato de todos esses casos terem como protagonistas povos indígenas e, na maioria dos casos, adolescentes. E vale ressaltar: não estamos falando de 2,51% de pessoas suicidas em 571 conflitos, mas de 2,51% casos em que o suicídio está presente; no geral, cada um deles  envolve a morte de mais de uma pessoa dentro da mesma comunidade.

Nesse quadro trágico, no qual são crianças de até 9 anos vêm sendo levadas à morte pela total desesperança, Mato Grosso do Sul ocupa a liderança absoluta. Em 2015, foram 45 suicídios no estado, de um total de 87 em todo o País. Deles, 37% das pessoas tinham entre 15 e 19 anos; 24%, entre 10 e 14 aos; 22%, entre 20 e 29 anos. De acordo com o Cimi, entre 2000 e 2015, tivemos um total de 752 indígenas, na maioria absoluta abaixo dos 20 anos, ‘suicidados’ na sociedade sul matogrossense.

Temos ainda uma questão importante: com quem essas comunidades podem contar, afinal? O Mapa nos dá algumas respostas para isso, a partir dos 571 conflitos registrados.

Vale ressaltar que essa liderança com 57,29% de resultado favorável na lista dos apoiadores das comunidades é ocupado não por um Ministério Público genérico, mas fundamentalmente pelos procuradores da República ligados à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, a 6ª CCR, a quem cabe cuidar de Povos Indígenas, Quilombolas e Comunidades Tradicionais. São elas e eles, Brasil afora, quem mais vemos presentes em lutas contra Belo Monte, por exemplo, ou brandindo a Constituição e a Convenção 169 da OIT, principalmente, em defesa dos Guarani-Kaiowá de Mato Grosso do Sul, dos Munduruku do Pará, dos quilombolas de Oriximiná, dos ribeirinhos, extrativistas, pescadores artesanais, beradeiros e de outros tantos brasileiros aos quais são negados os direitos da cidadania plena.

Brevemente, ressaltemos que o Mapa nos mostra ainda, como importantes parceiros, algumas ONGs; Movimentos Sociais; entidades governamentais diretamente envolvidas com as comunidades; e organizações ligadas à igreja, como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Temos ainda diversas redes, Movimentos de Atingidos, como o MAB, e até mesmo algumas organizações sindicais.

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Vivemos um momento em que vemos ‘serem desmoronadas’ uma a uma conquistas que custaram a saúde e a vida de muitas pessoas. O Estado foi sequestrado não por acaso num momento em que alguns movimentos, como o dos povos indígenas, mostravam maturidade para não se deixar cooptar e atingiam um nível de organização e de consciência de seus direitos que lhe permitia assumirem importante papel como atores protagonistas de suas vidas. Não por acaso, contra a retomada das terras indígenas, o que temos é a formação de um bloco no qual executivo, legislativo e parte do judiciário se unem para, através de medidas diversas, distribuir os territórios originários entre seus patrões e asseclas, nacionais ou internacionais.

“A história não é uma velhinha benigna”, escreveu Roberto Schwarz. Falei que o Mapa está paralisado deste meados de 2016, mas não disse que desistimos dele. Nesse universo de lutas, o Mapa de Conflitos se orgulha de também somar. De diferentes formas, já o vimos reconhecido e citado como um instrumento construído pela academia como parte de sua função social em defesa da democracia.

Entendo minha presença aqui como parte de meu compromisso com ele e, através dele, com as comunidades que ele representa. Da mesma forma, encaro esta iniciativa da Faculdade de Economia e Administração da USP como um passo importante numa tomada de posição quanto à responsabilidade das universidades em relação aos conflitos e àqueles neles envolvidos. Faço votos que iniciativas como esta se desdobrem, não somente aqui, mas em outras faculdades e universidades. Para que façamos a nossa parte e para que amanhã, ao rememorar estes tempos vergonhosos e sombrios, a história registre a hoje ausente presença da academia entre os parceiros e apoiadores do Povo-Nação, como aliados com quem é possível contar.

* Apresentação realizada na Faculdade de Economia e Administração (FAE) da USP, no dia 21 de fevereiro de 2017, no Seminário CORS “Crescimento econômico, meio ambiente e conflitos na América Latina”, em mesa compartilhada com Joan Martinez-Alier, da Universidade Autônoma de Barcelona.  Coordenação de Maria Sylvia M Saes (USP) e Beatriz Saes (Unicamp).