Por Fernanda Canofre, em Global Voices
No estado de Santa Catarina, sul do Brasil, o fim do ano é a época em que as suas praias famosas ficam cheias de turistas vindos de outras partes do país e do estrangeiro como Uruguai e Argentina. O povo indígena vê neste influxo de visitantes uma oportunidade para vender artesanato e gerar alguma receita. As estações rodoviárias ficam cheias de artesãos, que passam ali a noite para estarem mais perto dos clientes que chegam de autocarro.
A jovem mãe segurava o seu bebé encostada ao muro quando um desconhecido se aproximou deles. Imagens CCTV mostram o homem a aproximar-se, primeiro tocou na face do menino Vítor Pinto e depois com uma pequena lâmina desferiu um golpe cortando a garganta do Vítor fugindo logo de seguida. A mãe, desesperada, gritou por ajuda mas o pequeno Vítor acabaria por morrer. Tinha apenas dois anos.
Este crime horrendo de uma criança, assassinada a sangue-frio, nos braços da mãe e em plena luz do dia não fez as manchetes da imprensa nacional. Apenas alguns jornais locais deram a notícia, de forma discreta. A jornalista Eliane Brum, opina sobre o caso no jornal espanhol El País:
Se fosse meu filho, ou de qualquer mulher branca de classe média, assassinado nessas circunstâncias, haveria manchetes, haveria especialistas analisando a violência, haveria choro e haveria solidariedade. E talvez houvesse até velas e flores no chão da estação rodoviária, como nas vítimas de terrorismo em Paris. Mas Vitor era um índio. Um bebê, mas indígena. Pequeno, mas indígena. Vítima, mas indígena. Assassinado, mas indígena. Perfurado, mas indígena. Esse “mas” é o assassino oculto. Esse “mas” é serial killer.
Quais as vidas que têm mais importância?
Desde que a América Latina se tornou um “negócio europeu” – como lhe chamava o jornalista Eduardo Galeano – a vida indígena sempre foi a mais barata do continente. Não é novidade, “o racismo sobre o povo indígena é histórico” sublinha o professor Waldir Rampinelli numa entrevista à Rádio Campeche logo após a morte do pequeno Vítor.
Assim que a gente se tornou independente, para os indígenas nada mudou […] Esse preconceito contra os indígenas chega até os dias de hoje. Tanto é que matar um indígena na rodoviária de Imbituba, aparentemente, é um crime muito menor do que matar uma criança branca numa rodoviária de Florianópolis.
Elaine Tavares, uma jornalista a viver em Santa Catarina, refere que quando os exploradores Espanhóis e Portugueses chegaram à América Latina, os povos indígenas foram denominados de “não-humanos, cidadãos de segunda classe, sem almas, inúteis”
Ao longo de todos esses séculos foi sendo construída uma imagem negativa do indígena, justamente para que pudesse ser justificada a invasão e o roubo de suas terras e riquezas. Os índios são vistos como um atrapalho, uma lembrança desconfortável do massacre. Por isso que o melhor acaba sendo confiná-los em alguma “reserva” longe dos olhos das gentes. Mas, se eles decidem sair e dividir a vida no mundo branco, aí a coisa fica feia.
No Estado de Mato Grosso do Sul, cerca de 300 índios foram mortos em conflitos fundiários, no passado recente. Muitos líderes indígenas tentam chamar a atenção para o que eles chamam de um “genocídio”, que está a acontecer no país, por milícias organizadas. Muito pouco tem sido feito sobre esta matéria. Os suicídios também têm sido uma constante, sobretudo na etnia Guarani-Kaiowá. De acordo com o New York Times, os suicídios entre a tribo é 12 vezes maior do que a média nacional.
Direito à terra
Em todo o país, o povo indígena luta para obter a devida demarcação e reconhecimento das suas terras de acordo com as diferenças regionais de Estado para Estado. Muitos vivem nas ruas ou acampam ao lado das auto estradas construídas sobre as suas terras. O Governo de Dilma Roussef tem o pior registro de demarcação de terras dos últimos 30 anos.
O Congresso está na iminência de aprovar uma emenda constitucional que altera a forma como a demarcação de terras é efectuada. Se aprovada, a PEC 215 vai transferir a decisão final da demarcação e propriedade de terra indígena do poder executivo para o legislativo. A medida vai colocar a palavra final nas mãos do Congresso e no lóbi dos grandes produtores agrícolas – ruralistas.
Entretanto, as disputas de terra continuam a ser fomentadas. Em Novembro, uma reserva em Florianópolis foi invadida pelo antigo proprietário que não aceitou o montante pago para devolver as terras para os povos indígenas. Um mês antes da invasão, um juiz decidiu contra o homem, com base em que ele sabia que se tratavam de terras indígenas, quando ele comprou a propriedade. A chefe da tribo, Kerexu Yxapyry – também conhecida por Eunice Antunes – já havia denunciado as ameaças de morte e perseguição de que tem sido alvo (antes da invasão) mas nenhuma ação foi tomada.
O assassino de Vitor
Dois dias depois do assassinato, o suspeito de 23 anos entregou-se à polícia e confessou o crime. Decidiu entregar-se por temer pela própria vida mas até ao momento não apresentou o motivo pelo crime. Relatos da polícia dão conta que o autor do crime possa sofrer de perturbações psicológicas.
Mas se não há muito para dizer sobre o assassino, a morte de Vítor diz muito sobre como o Brasil cuida o seu povo nativo. Eliane Brum comenta que:
Quem continua morrendo de assassinato no Brasil, em sua maioria, são os negros, os pobres e os índios. […] Estamos nus. E nossa imagem é horrenda. Ela suja de sangue o pequeno corpo de Vitor por quem tão poucos choraram.
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Destaque: Câmara de segurança (CCTV) mostra o suspeito a aproximar-se da mãe que amamentava a criança. Captura de tela.