Amputar a mão por Deus, festejar bandidos mortos: o sangue lava os pecados, por Leonardo Sakamoto

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Fundamentalismo se manifesta das mais diferentes maneiras.

Um jovem de 15 anos amputou a própria mão após ter sido acusado de blasfêmia. Ele havia se confundindo e levantado o braço após um clérigo perguntar, em uma mesquita, quem não acreditava nos ensinamentos de Maomé. Em desgraça, cortou fora a própria mão para provar seu amor ao profeta, entregando-a ao líder religioso. Sua aldeia entrou em êxtase com sua atitude e ele vem sendo homenageado em sua região do Punjab paquistanês. Entrevistado, não se arrepende.

E fundamentalismo se manifesta em todos os lugares.

Dois suspeitos de assalto a uma agência dos Correios foram por mortos por policiais militares, em Morros (MA), na última terça. Os óbitos foram comemorados pela população, que foi às ruas para fazer festa e aplaudir, apoiar as mortes, fotografar os corpos e sair em cortejo atrás do carro da polícia. Vídeos que estão rodando a rede mostram a felicidade sincera das pessoas.

Um jovem que corta sua própria mão não está fazendo isso apenas em nome de sua fé em uma divindade, mas por medo de se tornar um pária após ser acusado de desrespeitar uma das principais regras de seu grupo social. Ou da necessidade de provar que é digno de fazer parte desse grupo.

E não é apenas o cansaço diante da impunidade e da falta de segurança que leva uma cidade a celebrar a morte de duas pessoas, ressuscitando instintos mais primitivos e banalizando a violência da mesma forma como os criminosos fazem. O ato, para além de uma punição para quem comete um crime e um pecado, é um aviso aos que ousam criar rupturas em uma suposta harmonia da sociedade.

Em ambos os casos, o sangue lava a impureza e reestabelece o equilíbrio quebrado. Seja na relação da comunidade com Alá, seja na relação dela com uma noção de Justiça que lembra o “olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” do capítulo 21 do Êxodo ou do Código de Hamurabi.

Através da automutilacão ou da morte de duas pessoas, um sacrifício é exigido e oferecido. A partir daí, um êxtase coletivo celebra esse reestabelecimento da ordem natural das coisas e, portanto, da paz. Uma paz tênue, tensa e vigiada.

E essas histórias se repetem. No Paquistão, casos de justiciamento baseados em extremismo religioso são comuns. Quando fui ao país fazer uma reportagem, me deparei com casos de mulheres atacadas por ácido por não cobrirem o rosto como mandam certas interpretações das sagradas escrituras islâmicas.

No Maranhão, em julho do ano passado, um homem de 29 anos foi linchado por moradores do Jardim São Cristóvão, em São Luís (MA). Segundo a polícia civil, ele havia tentado assaltar um bar, quando foi rendido, amarrado nu em um poste e agredido até a morte com socos, chutes, pedradas e garrafadas.

A quantidade necessária de diálogo para mostrar que o que chamamos de “ordem natural das coisas”, na verdade é uma grande construção que beneficia alguns detentores de poder (autores de regras travestidas de tradições sagradas) é enorme. Ainda mais com um poder público, aqui e acolá, que deveria agir em nome da princípios de dignidade reconhecidos internacionalmente, mas se omitem, agem contra ou são incapazes disso. Ao final, as responsabilidades estão emaranhadas e retroalimentadas que não sabemos se quem surgiu primeiro foi o ovo ou a galinha.

O que me lembra sempre de Oscar Wilde: “Há três tipos de déspotas. Aquele que tiraniza o corpo, aquele que tiraniza a alma e o que tiraniza, ao mesmo tempo, o corpo e a alma. O primeiro é chamado de príncipe. O segundo de papa. O terceiro de povo”.

Imagem: Em entrevista à repórter da BBC Iram Abbasi, garoto que amputou sua própria mão não se diz arrependido

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