“Não foi à toa que o então secretário-geral da FIFA, Jérôme Valcke, afirmou que países com menos democracia seriam ideais para a organização de uma Copa do Mundo. Existe uma clientela especial aí para esse mercado e o Brasil é o novo garoto-propaganda”, aponta a pesquisadora integrante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro
Por Leslie Chaves – IHU On-Line
Sonegar informações, violar uma série de Direitos Humanos e segregar a cidade têm se tornado práticas recorrentes nos processos de preparação para a recepção de megaeventos esportivos como a Copa do Mundo e, mais recentemente, as Olimpíadas, quem em breve serão promovidas no Rio de Janeiro. A lógica de mercantilização das metrópoles sedes desses eventos desencadeia, sustenta e justifica as condutas de gestão pública no Brasil e ao redor do mundo. “Os megaeventos têm sido utilizados para transformar as cidades em ambientes cada vez mais atrativos ao capital, construindo territórios que sejam ótimos para investimentos – não para pessoas. Pois bem, quem saiu ganhando, ou melhor, lucrando, foram as empresas envolvidas com esses eventos de alguma forma”, frisa Larissa Lacerda em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Para a pesquisadora, que integra o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, o que a promoção desses eventos deixa para as metrópoles é um “não-legado” que consiste na construção de cidades cada vez mais elitizadas e segregadas, e Estados endividados e militarizados. “Dito isso, me parece claro que a grande vencedora dos megaeventos – não importa quais eles sejam – é a iniciativa privada”, constata.
Entretanto, em meio às violações de diversas naturezas e à falta de transparência que permeiam os processos de preparação para esses megaeventos, para Larissa Lacerda as mobilizações populares têm representado uma força importante de resistência e divulgação das irregularidades. “O Brasil vai sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo em sequência, como poucas vezes aconteceu, com enorme investimento em um marketing dos megaeventos como os grandes promotores de desenvolvimento do país. Mas foi aqui também que a Copa do Mundo, e a FIFAparticularmente, começaram a ser fortemente questionadas, criticadas e, de certo modo, denunciadas. Os movimentos sociais conseguiram disseminar a crítica à Copa do Mundo da FIFA como um instrumento de segregação e elitização das cidades e, acredito, isso também tem um impacto sobre outros países”, explica.
Larissa Lacerda é graduada em Sociologia pela Universidade de São Paulo – USP, mestranda em Planejamento Urbano no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – IPPUR/UFRJ, e integrante do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Os governos têm justificado os gastos para a promoção dos megaeventos esportivos com a ideia de que tais eventos deixariam um legado para as cidades sedes. Após da realização da Copa do Mundo e com a aproximação dos Jogos Olímpicos, que legados foram deixados para a população, para o governo e para a inciativa privada envolvida nesses processos?
Larissa Lacerda – De maneira geral, acho que podemos falar do “não-legado” deixado pelos megaeventos no Brasil – para a população, pelo menos avaliando a partir do Rio de Janeiro, o “não-legado” é a construção de uma cidade cada vez mais elitizada e segregada, expressa no encarecimento do custo de vida da população trabalhadora, especialmente em relação a moradia e aos transportes, além da volta das remoções como política habitacional, em grande medida legitimadas pelas obras relacionadas aos megaeventos.
Para os governos acho que podemos falar em dois tipos de “legado”, de um lado, ficamos com Estados ainda mais endividados, uma vez que o poder público utiliza os megaeventos como um meio de viabilizar grandes obras de infraestrutura, além de se comprometer com aquelas diretamente relacionadas à viabilização dos megaeventos. Por outro lado, temos Estados também mais militarizados, já que uma grande fatia do orçamento destinado aos megaeventos foi gasto com a compra de armamentos, “caveirões” e tantos outros equipamentos de guerra que agora são utilizados justamente contra essa população que se rebela contra a piora de vida nas cidades.
Dito isso, me parece claro que a grande vencedora dos megaeventos – não importa quais eles sejam – é a iniciativa privada. Os megaeventos têm sido utilizados para transformar as cidades em ambientes cada vez mais atrativos ao capital, construindo territórios que sejam ótimos para investimentos – não para pessoas. Pois bem, quem saiu ganhando, ou melhor, lucrando, foram as empresas envolvidas com esses eventos de alguma forma.
IHU On-Line – Relatórios elaborados pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas no Rio de Janeiro apontaram a falta de transparência e restrição das informações quanto à gestão das ações que envolvem a promoção destes megaeventos esportivos. Como tem acontecido esse cerceamento de informações (nas esferas federal, estadual e municipal) e que tipos de dados têm sido mais ocultados? Que reflexos implicam esse tipo de conduta?
Larissa Lacerda – Argumentar contra a prefeitura do Rio de Janeiro é ir contra uma enorme máquina de marketing e publicidade. A prefeitura construiu vários sites com o objetivo oficial de publicizar os gastos e cronogramas das obras relacionadas aos Jogos Olímpicos, no entanto, o que encontramos ali são grandes peças de propaganda da prefeitura e seus parceiros, com informações muito genéricas e nada precisas.
Além disso, muitos gastos foram ocultados da Matriz de Responsabilidade, subestimando a participação do poder público no orçamento dos Jogos, como demonstramos no dossiê Olimpíada Rio 2016, os jogos da exclusão – Megaeventos e violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro, de novembro de 2015. Aliás, só conseguimos fazer isso depois que um importante portal de notícias publicou reportagem sobre a falta de transparência no Rio de Janeiro em relação aos Jogos, chamado na publicação de “Jogos Obscuros”. A partir dali a prefeitura se viu constrangida a liberar algumas informações – o que foi feito a conta gotas.
Como constatamos, a partir da análise da Matriz de Responsabilidade, cruzando com os documentos recém-liberados e outras informações, vários gastos diretamente relacionados aos Jogos não foram incluídos no orçamento, como o gasto com as indenizações no processo de remoção da Vila Autódromo, a construção de arquibancadas temporárias para o Engenhão, além de não contabilizarem o repasse de terra pública à iniciativa privada que envolve os contratos das Parcerias Público-Privadas.
IHU On-Line – Como a falta de transparência nas informações afeta as populações diretamente atingidas pelas obras de infraestrutura para promoção de megaeventos esportivos?
Larissa Lacerda – O acesso à informação é um direito fundamental, necessário para efetivação dos demais direitos básicos, afinal, apenas o acesso à informação nos permite pensar, debater e reivindicar sobre as questões públicas, fundamentais na construção de uma democracia efetivamente participativa.
De forma mais concreta, nós temos, por exemplo, o caso das famílias removidas por obras relacionadas aos Jogos. Gostaria de falar um pouco sobre Vila União de Curicica. O argumento para remoção das famílias em Vila União foi a construção do BRT Transolímpica, via expressa de ônibus que ligará os dois principais centros de competição, o Parque Olímpico e o Complexo de Deodoro. Além da população não ter participado do processo que elegeu o BRT como “solução” de transporte para a cidade, as famílias não tiveram, inicialmente, nenhuma participação na formulação do traçado do BRT Transolímpica.
Até 2013, Vila União estava selecionada para receber as obras do programa de urbanização da prefeitura, o Morar Carioca, que chegou a começar os trabalhos na comunidade. De um dia para outro, os trabalhos iniciais foram suspensos e as famílias receberam a notificação do processo de remoção. No início, mais de 800 famílias estavam marcadas para serem removidas, foi apenas com a mobilização da comunidade e de seus apoiadores que eles conseguiram a redução desse número para cerca de 340 famílias. Aquelas que permanecem no local continuam vivendo sem informação relativa à obra que atravessa seu quintal, não existe plano de mitigação ou mesmo o plano de urbanização para área remanescente. A incerteza continua em Vila União de Curicica.
Ainda, é importante ressaltar que todo esse processo foi atravessado pela falta de informação e mesmo pela disseminação de boatos, ou seja, informações que não são oficias, ou nem mesmo verdadeiras, que são disseminadas pelos próprios funcionários da prefeitura de forma a fazer pressão sobre os moradores – essa é uma prática comum da prefeitura carioca nos muitos casos de remoção.
IHU On-Line – Diante desse contexto de falta de transparência nas informações, de que maneira você avalia a implementação da Lei n°12.527/11, a Lei de Acesso à Informação? Qual a importância e os limites dessa Lei no Brasil?
Larissa Lacerda – Além das minhas experiências no Comitê Popular, e mesmo como estudante-pesquisadora de mestrado, eu tive a oportunidade de colaborar com um projeto sobre a efetividade da Lei de Acesso à Informação – LAI no Rio de Janeiro, coordenado pela Artigo 19, chamado Rio 2016: Violações ao acesso à informação no caso do BRT Transolímpica.
O BRT Transolímpica foi escolhido como meio para “testar” a Lei e, a partir dele, dezenas de pedidos de informação foram solicitados aos mais diferentes órgãos públicos – informações públicas que, por lei, já deveriam estar disponibilizadas.
Todo o percurso do projeto foi assustador, as informações foram negadas quase que de maneira geral, além de tantas outras violações ao longo do processo. No fim, a prefeitura arquivou os pedidos de recurso sem apresentar qualquer justificativa.
Mas não foi um caso específico e também não se restringe a aqueles diretamente afetados pelas obras, qualquer pessoa que busque mais informações sobre as obras que cortam a cidade vão rodar de site em site sem nenhuma resposta e sem caminhos efetivos de busca, procedimentos que deveriam estar garantidos a partir da LAI. Hoje, posso afirmar com certeza: a Lei de Acesso à Informação não existe no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – O modelo excludente de política urbana e o processo de mercantilização das cidades que vêm sendo implementados em nome da realização de megaeventos esportivos no Brasil se repetiram em outros países que sediaram eventos desse tipo? Como é a situação do Brasil, quanto ao modo de gestão dessas políticas de promoção de megaeventos esportivos, em relação a outros países?
Larissa Lacerda – Os megaeventos se tornaram uma ferramenta internacional de implementação desse modelo de mercantilização das cidades, que talvez se manifeste de maneira mais violenta nos países periféricos, como Brasil e África do Sul. Não foi à toa que o então secretário-geral da Federação Internacional de Futebol – FIFA, Jérôme Valcke, afirmou que países com menos democracia seriam ideais para a organização de uma Copa do Mundo. Existe uma clientela especial aí para esse mercado e o Brasil é o novo garoto-propaganda.
No entanto, é isso que faz o processo ainda mais interessante. O Brasil vai sediar os dois maiores eventos esportivos do mundo em sequência, como poucas vezes aconteceu, com enorme investimento em um marketing dos megaeventos como os grandes promotores de desenvolvimento do país. Mas foi aqui também que a Copa do Mundo, e a FIFA particularmente, começaram a ser fortemente questionadas, criticadas e, de certo modo, denunciadas. Os movimentos sociais conseguiram disseminar a crítica à Copa do Mundo da FIFA como um instrumento de segregação e elitização das cidades e, acredito, isso também tem um impacto sobre outros países.
IHU On-Line – Além da dimensão da infraestrutura, políticas de segurança pública têm sido intensificadas em função da promoção dos megaeventos esportivos, como a instalação das UPPs e a criação dos chamados “bolsões de segurança” em determinadas áreas. Quais são as populações mais atingidas pela implementação dessas políticas? De que modo?
Larissa Lacerda – Acho que a crescente militarização das cidades é o maior legado dos megaeventos no Brasil. Sob a justificativa da segurança para os eventos, territórios pobres começaram a ser invadidos por uma polícia muito armada e com poder irrestrito de gestão sobre esses territórios e sua população. Se você olhar o mapa de localização das Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs você vai perceber como ele encaixa perfeitamente com o mapa que aponta as áreas no entorno dos equipamentos esportivos ou que estão no caminho do aeroporto. A UPP é um programa seletivo de controle social, não de pacificação.
Também os trabalhadores camelôs e ambulantes são fortemente afetados por essa militarização dos espaços ao serem completamente excluídos desses “bolsões de segurança”, que nada mais são que espaços exclusivos dos produtos dos patrocinadores, garantidos através de legislações de exceção e força policial. Também em seu trabalho cotidiano esses trabalhadores são afetados por uma polícia cada vez mais armada e uma Guarda Municipal no caminho da militarização.
No fim, somos todas e todos afetados, pois quando vamos às ruas manifestar o repúdio a esse projeto político de cidade, somos apresentados a todo o aparato militar adquirido em nome da segurança dos megaeventos.
IHU On-Line – Como estão as mobilizações populares contra as diversas violações de direitos no Rio de Janeiro, que em breve sediará as Olimpíadas? Quais são as principais reivindicações?
Larissa Lacerda – O Rio de Janeiro vive um momento de grandes transformações, são muitas as intervenções do poder público na cidade que afetam a vida cotidiana daqueles que vivem aqui, além da intensificação de problemas já antigos.
O ano de 2016 começou com a pauta dos transportes no centro das reivindicações, o aumento da passagem e os seguidos cortes nas linhas de ônibus têm tornado escandalosa a tentativa de segregar ainda mais a cidade, impedindo a circulação de uma grande parte da população, principalmente jovens negros e pobres. Também a violência absurda contra os trabalhadores camelôs e ambulantes parece aumentar a cada dia. As remoções seguem como uma pauta urgente, já que hoje temos o prefeito que mais removeu famílias na história do Rio de Janeiro.
Acho difícil fazer uma avaliação do cenário do Rio hoje, me parece que as coisas estão irrompendo a todo momento e em todo lugar, o que, às vezes, faz parecer que as mobilizações estão diminuindo, principalmente quando se tem junho de 2013 como referência, mas eu acredito que as lutas podem estar mais dispersas nos territórios, sinal de um poder público que tem atacado por todos os lados.
IHU On-Line – Como o poder público tem recebido as reivindicações das mobilizações populares? Que avanços já foram conquistados e quais são os desafios desses grupos de resistência?
Larissa Lacerda – Os três níveis de governo têm muito a perder com as críticas aos megaeventos, a aposta é alta, por isso, de maneira geral, a postura é de minimizar as críticas e questionamentos, invisibilizando os descontentes com esse projeto político.
Para dar um exemplo, Eduardo Paes é o prefeito que mais removeu famílias no Rio de Janeiro. Pelos dados da própria prefeitura, foram mais de 20 mil ao longo de todo o mandato dele, no entanto, ele costuma afirmar que a única remoção relacionada à Olimpíada é o caso da Vila Autódromo. São várias inverdades nessa frase:
Primeiro que a realização dos Jogos significa muito mais que a construção dos equipamentos esportivos, como o próprio Eduardo Paes gosta de afirmar, ele usou os Jogos como desculpa para fazer tudo na “Cidade Olímpica”, ora, se o bônus vai pra Olimpíada, por que também não o ônus?
Segundo lugar, mesmo que a gente caia nesse argumento, o número de famílias removidas para obras diretamente relacionadas aos megaeventos é de 4.120, muito acima das 550 famílias moradoras da Vila Autódromo.
Mas mesmo nesse cenário de silenciamento, muitas coisas foram conquistadas. A própria disseminação da crítica à Copa do Mundo da FIFA é uma importante conquista para todas e todos que estiveram envolvidos nessa luta, conseguimos separar o futebol enquanto esporte desse evento que se apropria dele para mercantilizar as cidades.
Voltando à Vila Autódromo, apesar de ser uma luta que ainda está sendo travada – e sendo levada de maneira extremamente violenta pela prefeitura do Rio – importantes conquistas também foram alcançadas ali, como a construção de um conjunto próximo à comunidade onde parte das famílias foram reassentadas, rompendo com a lógica de periferização desses conjuntos, além das polêmicas indenizações. Esse é um ponto importante, pois muitas vezes os valores pagos a algumas casas foram usados tanto pela prefeitura, quanto pela grande imprensa, para prejudicar os moradores que lutam para ter seu direito à permanência garantido, no entanto, esquecem que antes disso milhares de famílias foram removidas com indenizações entre 5 e 10 mil reais, outras sem indenização alguma. Ou seja, se a gente fala que as indenizações justas são uma conquista da Vila Autódromo é tendo em vista esse cenário absurdo de desumanização e reprodução da favelização por parte do próprio poder público.
Também a suspensão da derrubada de equipamentos esportivos do Complexo do Maracanã, como o Centro de Atletismo Célio de Barros e o Parque Áquático Julio Delamare, que na proposta da Odebrecht, integrante do consórcio que administra o estádio, seriam destruídos para dar lugar a estacionamentos e lojas; foi uma importante conquista da população, mesmo que estejamos brigando até hoje pela reabertura desses equipamentos.
IHU On-Line – Que saídas seriam possíveis para promover um processo mais justo e não excludente de preparação para receber megaeventos esportivos?
Larissa Lacerda – Eu acho difícil responder a essa pergunta, mas acredito que o primeiro passo para promover um processo mais justo de preparação das cidades para receber megaeventos esportivos seria a efetiva participação da população na idealização e execução de todos os projetos. Ainda, esse processo deveria estar diretamente vinculado à implementação de uma política efetiva de incentivo ao esporte, garantindo a construção de equipamentos esportivos em todas as escolas públicas e pelos bairros e favelas da cidade.
Também seria necessário acabar com essas entidades pouco transparentes como o Comitê Olímpico Internacional – COI e a Federação Internacional de Futebol – FIFA, totalmente responsáveis pelas violações de direitos humanos cometidas em nome dos megaeventos quanto os governos envolvidos. Ao se colocarem como entidades internacionais sem fins-lucrativos, esses grupos se colocam acima da legislação de qualquer país e não oferecem qualquer possibilidade de controle de seu funcionamento, é uma grande caixa preta por dentro dessas instituições, que agora, pouco a pouco, começa a colocar pra fora todo o lixo que é produzido ali dentro.
Acho que se a gente começasse por aí, muitas outras propostas viriam na construção de um processo mais justo relacionado aos megaeventos esportivos.
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Comunidades protestam contra remoções no Rio de Janeiro
Foto: www.rioonwatch.org.br