Tenho pena de esnobes que se negam a dialogar com quem não estudou, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

Há um certo comportamento esnobe de setores mais intelectualizados de nossa classe média que participam do debate público, independente se progressistas ou conservadores, que ignoram um interlocutor logo de cara diante de sua falta de formação acadêmica ou de sua incapacidade de articular ideias sob o rigor das próclises, ênclises e mesóclises da norma culta. Julgam, dessa maneira, a forma antes do conteúdo, jurando que vivemos uma pós-modernidade na qual forma e conteúdo são a mesma coisa. Ou, pior: que certas narrativas não merecem ser consideradas porque não receberam previamente um “like” da casta iluminada.

Isso me lembra de uma reflexão que havia escrito há algum tempo e que retomo neste espaço.

Algumas das pessoas mais sábias que conheci são iletradas. E alguns dos maiores idiotas têm doutorado. Às vezes, mais de um.

Significa que os iletrados são melhores que os doutores? Não. Então, o contrário? Também não.

O nível de escolaridade e a forma através da qual uma pessoa se expressa muitas vezes é irrelevante frente ao conteúdo que pode agregar a uma discussão. Isso pode fazer diferença na maneira como ela é respeitada ou não por determinados grupos sociais ou como esse discurso viraliza em redes. Mas não deveria alterar o julgamento sobre o que ela pensa.

Se ela conseguiu fazer com que os outros a entendam, ótimo, fez-se a comunicação.

Muita gente não percebe isso ainda e desvaloriza a opinião do outro porque este separou sujeito e predicado com vírgula. Mesquinharia pura.

Isso quando não oprimem quem não sentou em bancos de escola.

Mas o que esperar de uma sociedade em que pipocam pessoas que desconsideram o interlocutor por não saber acertar uma concordância verbal ou conjugar um verbo?

– Meu Deus! Você não sabe flexionar o verbo “funhunhar” no futuro do subjuntivo? É um desqualificado ignorante que merece meu desprezo…

E na qual o domínio da norma culta (que é importante para determinados espaços) é alçado à condição de passaporte para a participação nas discussões sobre o destino do mundo.

A língua é construída pela boca das pessoas no cotidiano. É dinâmica, em constante mutação e, para sobreviver, não precisa de formalismos – que são exatamente isso, construções, muitas vezes definidas pelo grupo hegemônico.

Como dizer que uma pessoa que nasceu e cresceu falando português e sempre se fez entender está errada ?

Dizer que um pescador, um vendedor ambulante, a vendedora do tabuleiro de doces, uma quilombola ou ribeirinha ou um operário da construção civil que não usem a norma culta “desconhecem a própria língua” não é uma ação pedagógica e sim um ato político.

Excludente.

Que usa uma justificativa supostamente técnica para manter do lado de fora dos debates sobre o futuro a maior parte da sociedade brasileira.

A quem interessa a manutenção desse comportamento? A quem está no poder e, muitas vezes, usa a língua como instrumento de coerção.

Que faz o restante – que não foi chamado para o Grande Rega-Bofe – acreditar que política é coisa de gente culta, estudada, com pós em algum lugar com câmbio a R$ 4 ou mais. E, portanto, melhor eles ficarem de fora e só entrarem para para encher as taças de vinho ou trazer os canapés.

Por isso, não seja niilista: defenestre – de forma paradigmática – quem maquiavelicamente oblitera a democracia por diletantismo ou dolo. Traduzindo: dê uma banana a quem não quer que você entenda nada.

***

Coincidentemente, o grande professor Pasquale Cipro Neto em sua coluna, desta quinta (21), na Folha de S.Paulo usa como exemplo um título de um post deste blog publicado em dezembro passado: “País sabe que escraviza, mas não a gravidade do problema”.  Com sabedoria e paciência, ele dá uma breve aula apontando que o título é jornalisticamente ruim e ineficiente porque demanda do leitor um contorcionismo para entender o que quis ser dito. Ou seja, não cumpre sua função de informar de forma fácil. Melhor seria “País sabe que escraviza, mas não conhece a gravidade do problema”. Diferença sutil, mas fundamental. Agradeço ao Pasquale e peço desculpas a vocês!

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