Surge, agora também na França, esperança de derrotar conservadores. Mas ela exige algo a que partidos desacostumaram-se: enfrentar desigualdade e abandonar velhas estruturas enferrujadas
Tradução: Antonio Martins e Inês Castilho, em Outras Palavras
Quando Bernie Sanders anunciou que disputaria a indicação pelo Partido Democrata à presidência dos EUA, pouca gente o levou a sério. Hillary Clinton parecia ter tanto apoio que sua escolha parecia garantida sem dificuldades. Contudo, Sanders persistiu em sua busca aparentemente utópica.
Para surpresa da maioria dos observadores, o tamanho de sua audiência em encontros que se espalharam pelo país passou a aumentar de modo consistente. Sua tática essencial era atacar as grandes corporações. Ele lembrava que elas usam seu dinheiro para controlar decisões políticas e anular o debate sobre o abismo crescente entre os muito ricos e a vasta maioria do povo americano, que perde renda real e empregos. Para enfatizar sua posição, Sanders recusou-se a receber dinheiro de grandes doadores e arrecadou fundos apenas de indivíduos que doam pequenas quantias.
Ao fazer isso, Sanders tocou num veio profundo do descontentamento popular, não apenas entre aqueles que estão na base da pirâmide de renda mas da assim chamada classe média, que teme estar sendo levada para o fundo do poço. Agora, as pesquisas mostram que Sanders ganhou apoio suficiente para atuar como um sério oponente a Clinton.
Sanders tem suas limitações, especialmente o fato de que seu apelo para minorias raciais e étnicas parece limitado. Mas tem sido bem sucedido em forçar o debate público sobre a desigualdade de renda. Ele empurra o discurso de Hillary para a esquerda, já que ela busca recuperar eleitores potenciais de seu oponente. Seja qual for o resultado final da convenção do Partido Democrata, Sanders conseguiu muito mais do que quase todos previram no início de sua campanha. Ele forçou, no mínimo, um sério debate sobre programa, no Partido Democrata.
Em janeiro de 2016, parece ter começado uma campanha paralela na França. É semelhante, em vários sentidos, à de Sanders; mas também bem diferente, devido à estrutura das instituições eleitorais dos dois países.
Três intelectuais de esquerda decidiram lançar um apelo público por uma prévia da esquerda. Eles são Yannick Jadot, um ativista de longa data em grupos ambientalistas; Daniel Cohn-Bendit, famoso por sua participação em maio de 1968 mas empenhado, há algum tempo, em unir forças ambientalistas, socialistas de esquerda e pró-Europa; e Michel Wieviorka, um sociólogo que foi conselheiro da figuras à esquerda, no Partido Socialista.
Eles fizeram um apelo público denunciando a passividade diante da guinada à direita na política francesa – incluindo, é claro, a crescente força eleitoral da Frente Nacional. Apelaram a um debate público sério sobre como unir as forças de esquerda e centro-esquerda para incidir nas eleições presidenciais previstas para 2017. Antes de fazer esse apelo, buscaram apoio de intelectuais conhecidos do público, de múltiplas categorias políticas – inclusive Thomas Piketty e Pierre Rosanvallon. E persuadiram o Libération, maior jornal francês de centro-esquerda, a dedicar uma edição inteira, em 11 de janeiro de 2016, ao apelo e seus múltiplos apoios.
Duas semanas depois, em 26 de janeiro, o Libération dedicou outra edição ao mesmo tema. A essa altura, 70 mil pessoas haviam assinado o documento. A edição continha artigos de várias personalidades públicas sobre temas que viam como os principais a ser debatidos, e sobre como debatê-los melhor. Muito do debate está centrado em qual é a função de uma prévia. O conceito é importado das eleições norte-americanas mas é, também, uma resposta aos resultados totalmente inesperados das eleições presidenciais francesas de 2002.
Nas regras que atualmente presidem as eleições presidenciais francesas, a menos que um candidato receba a maioria dos votos, há um segundo turno, no qual concorrem apenas os dois primeiros colocados no turno inicial. Presumia-se, portanto, que o primeiro turno fosse uma espécie de prévia, em que cada tendência política deveria mostrar sua força. Acreditava-se que o segundo turno colocaria frente a frente os dois partidos principais (de centro-direita e centro-esquerda).
Em 2002, entretanto, o candidato da Frente Nacional, de ultra-direita, afastou o Partido Socialista do segundo turno. O leque de opções dos eleitores ficou restrito à Frente Nacional ou ao partido tradicional à direita do centro. Diante desta opção, o Partido Socialista apoiou o candidato à direita no segundo turno, o que permitiu sua vitória tranquila. Isso deveu-se a algo simples. Houve muitos candidatos de esquerda e centro-esquerda no primeiro turno, o que impediu que o Partido Socialista obtivesse número suficiente de votos para chegar à disputa final.
O impacto das eleições de 2002 foi traumático para a esquerda francesa. O velho sistema foi concebido para uma situação na qual haja dois partidos principais. Não funciona para uma situação tripartite. Para evitar a repetição da derrota, o Partido Socialista decidiu, em 2011, realizar uma disputa prévia, aberta a qualquer um. Este processo foi bem sucedido, ao evitar que a maior parte dos candidatos da esquerda (embora não todos) disputassem diretamente as eleições – já que poderiam apresentar-se à disputa interna do Partido Socialista. A abertura levou muitos eleitores centristas a participar da prévia – o que permitiu que Hollande derrotasse um postulante à sua esquerda; e, ao final, se tornasse presidente, ao vencer o candidato da direita, o então presidente Nicolas Sarkozy.
Porém, agora que é presidente, a última coisa que Hollande deseja são prévias em que poderia ser derrotado. Ele tem perdido apoio entre o Partido Socialista, onde, um após o outro, personagens situados mais à esquerda afastaram-se ou foram expulsos de seus postos no ministério. Ele teme a entrada de novos nomes no primeiro turno da disputa, o que poderia levar à repetição do que ocorreu em 2002. Ao mesmo tempo, Sarkozy também enfrenta forte demanda por prévias em seu partido – uma disputa que também ele não teria certeza alguma de vencer.
O problema, em ambos os partidos principais, é que estão divididos internamente sobre muitos temas relevantes. Os socialistas e as forças de esquerda, debatem-se entre manter os programas liberais ou retomar as políticas bem-estar social. Há a clivagem sobre como definir laicidade – em termos absolutos ou com tolerância às identidades culturais. E há a clivagem entre fortalecer ou enfraquecer as instituições europeias. Finalmente, há o tema, agora polarizador, do chamado “confisco de nacionalidade”, por meio do qual propõe-se que cidadãos nascidos na França sejam privados de sua nacionalidade, caso condenados por qualquer delito definido como “ajuda ao terrorismo”. Foi, historicamente, uma proposta da direita, fortemente combatida pelo Partido Socialista. A reviravolta, que seguiu-se aos atentados do Estado Islâmico em Paris, em 13 de Novembro, provoca enorme desconforto entre os socialistas.
Hollande disputa, hoje como o candidato com posições conservadoras sobre todos estes assuntos. Espera vencer como o representante da luta contra o terrorismo e, portanto, alguém que merece o apoio do centro. É este candidato que o apelo às forças de esquerda tenta conduzir a um debate público.
O paralelo com Sanders é que o grupo francês pode estar captando o mesmo descontentamento popular em que o candidato rebelde dos EUA apoiou-se, para lançar-se candidato. A diferença é que os franceses enfrentam um presidente no poder, capaz de exercer todas as formas concebíveis de pressão para disciplinar os membros de seu partido. Saberemos, talvez, em seis meses, se podem ter êxito semelhante ao de Sanders.