Racismo: Cronologia de uma decisão judicial

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Todas as informações abaixo foram tiradas diretamente da Decisão referente ao processo 0003710-25.2012.4.03.6002, da Justiça federal em Dourados, MS, e que pode ser acessado via internet. Nos limitamos a inserir parágrafos quebrando o texto corrido da redação jurídica, cortar alguns trechos e fazer com nossas palavras a relação entre outros. No mais, está respeitado o original no processo. Não acho serem necessários maiores comentários.

1. Do motivo

“… no dia 14 de abril de 2012 a ré Aliziane da Silva Donizete, postou em seu perfil, no site de relacionamento Facebook, comentários racistas em face do grupo indígena de rap Brô MC´s, por ocasião da apresentação desse grupo no programa TV Xuxa, da rede Globo.

O grupo de rap Brô MC´s é formado por jovens da Reserva Indígena de Dourados/MS, que cantam RAP em português e em guarani, língua materna do povo Guarani/Kaiowá e ao ver sua apresentação no programa da TV Xuxa na data de 14/04/2012, a requerida publicou as seguintes mensagens:

‘Crendeuspai… num to falando, esse MS só queima!! No TV Xuxa, um bando de Índio daqui de Dourados se apresentando, cantando ein Guarani, que Lixo véi… Deus o livre e guardee…””kkk…como se diz Emerson Diego, cultura de cú eh ro***…isso tah hrrivel, e a falsa da Xuxa achando Lindoo!!””kk…olha isso meu, elaa querendo aprender falar ein guarani,… a Xuxa, vai pra pqp, vocêdeve tah achando isso tudo um saco! Índios fedorentos..’.”

Segue o texto:

“Tais comentários foram alvo de várias publicações criticando a posição da ré Aliziane referido site de relacionamento. Em função disso, Aliziane, por temor das críticas recebidas, publicou a seguinte retratação:

“Diante da proporção que tomou os meus comentários venho dizer que reconheço que tais comentários foram de mau gosto de um momento de infelicidade acabei postando, mas gostaria de dizer que jamais fui preconceituosa pelo contrário respeito à Cultura Indígena e sei da sua importância para o nosso País, gostaria de me desculpar pelas pessoas que se sentiram ofendidas, no momento em que aquele conteúdo começou a ser compartilhado e várias pessoas começaram a me xingar, ameaçar, dizer palavras de baixo calão acabei tentando inventar uma situação para amenizar as provocações pois estava apavorada com tudo aquilo, assumo as consequências e vou responder por elas”.”

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2. Da ACP do MPF

A retratação não foi bem aceita pelo Ministério Público Federal, para quem “a ré somente se retratou em razão das inúmeras críticas que recebeu através do site de relacionamento em questão, pois não imaginava a repercussão negativa de suas publicações”, que “geraram profunda indignação na sociedade. Várias foram as manifestações de desapreço quanto ao posicionamento da requerida e … esta diante de tantas críticas foi obrigada a se retratar”.

Diz o MPF:

“O racismo, continua, afeta a dignidade da pessoa humana, gerando constrangimentos e humilhações que, além de ilícito penal (art. 20, da 7.716/89), podem caracterizar a ofensa à honra, que é uma das hipóteses de dano moral suscetível de compensação pecuniária (artigo 5º, X, CF)”. 

Por conta disso, propôs uma Ação Civil Pública (ACP) em face de de Aliziane da Silva Donizete e do site Facebook, “pretendendo a condenação, a título de indenização no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais), pelo dano moral coletivo decorrente das manifestações de caráter discriminatório à comunidade indígena, a condenação do site Facebook à obrigação de implementar medidas preventivas e repressivas que coíbam a publicação de conteúdos discriminatórios, sob pena de aplicação de multa diária de R$ 1.000,00 (hum mil reais), pelo descumprimento da obrigação imposta, a ser recolhida ao Fundo de Reparação de Interesses Difusos Lesados, previsto no artigo 13 da Lei nº 7.347/85, a ser revertido para programas de saúde e de educação em proveito da Reserva Indígena de Dourados/MS”.

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3. Da ‘liberdade de expressão’

A ré foi representada pela Defensoria Pública da União (DPU), que “apresentou contestação (fls. 69/93), requerendo a improcedência dos pedidos sob o argumento da garantia à liberdade de expressão:

“O sentido de garantir a liberdade de expressão é que muito embora a ideia apresentada no discurso seja desagradável, cause certo desconforto, expressando algo que não deve ser ouvido, este discurso ainda deve ser protegido. Afinal, no livre debate de opiniões, sempre prevalecerão as idéias consideradas como mais “acertadas”, ou seja, aquelas que são boas à sociedade”.

E ainda:

“a atitude da requerida nunca teve o intuito de incitar qualquer conduta preconceituosa ou discriminatória em relação aos indígenas, tampouco quis ofender sua cultura, objetivando denegrir a imagem dos mesmos. O que ocorreu é que infelizmente, em um momento, no qual lhe faltou a razão e bom senso, ao fazer uma crítica, acabou se utilizando de palavras grosseiras para se referir aos indígenas. Diz ainda que, não há falar em ato ilícito, dolo ou culpa, uma vez que a requerida não pode ser culpada por ofender a dignidade da comunidade indígena, se nunca dirigiu os comentários aos mesmos, só expressou uma opinião infeliz aos seus “amigos”.

Ademais, conclue, como ensina Carlos Roberto Gonçalves “(…) a reparação pecuniária tem duplo caráter: compensatório para a vítima e punitivo para o ofensor”. E em ralação a seu caráter punitivo, este não tem mais sentido em relação à conduta da requerida, tendo em vista que a mesma já foi punida pela própria sociedade, sofrendo um “linchamento social e moral“, inclusive, sofreu muito mais ofensas que proferiu, razão pela qual, a ação não deve prosperar”. [grtifo deste blog]

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4. O Facebook alega

“Que se dedica à prestação de serviços relacionados à locação de espaços publicitários, veiculação de publicidade, suporte de venda, além de outras atividades descritas em seu contrato social. Que não dispõe de meios técnicos ou jurídicos para intervir no conteúdo divulgado pelos respectivos usuários. E que não cabe a ele responder ou promover quaisquer medidas preventivas ou repressivas relacionadas ao conteúdo criado e divulgado por seus usuários.” 

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5. Depoimento da ré

Em “Audiência realizada no dia 20/01/2014 (fls. 236/237), a requerida ré Aliziane da Silva, prestou o seguinte depoimento:

“Disse que estava em casa e a mãe estava assistindo TV e ela no facebook. Disse que não gosta da Xuxa que a acha falsa, sínica [sic]. Afirma que fez o comentário bloqueado somente para os seus amigos verem, mas que alguém fez um print e o divulgou. Disse que não gosta de Rap. Informou que depois que postou os comentários, realmente se arrependeu e por isso se retratou. Que recebeu várias ameaças in box no face. Que não teve intenção de que esse comentário chegasse a qualquer tribo indígena. Que depois dos fatos, foram a sua casa pessoalmente dois índios. Um deles pediu o telefone pelo face e depois foram na sua casa. Um deles estava muito irritado e outro tranquilo. Eles levaram em sua casa vídeos e fotos. E o que que estava irritado perguntou se ela estava com medo e ela disse que estava preocupada e ele disse que é pra ficar, porque vai piorar. Depois que analisou o que escreveu se arrependeu porque viu que as palavras foram para magoar. Foi um momento de bobeira que diz que fez sem pensar. Eles queriam que ela fosse até a aldeia, mas não foi. Ela fez uma carta de retratação para a coordenadora da FUNAI. Que pelo post que fez dá para ver que foi só para os amigos”.

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6. Síntese 

Seguem, no próximo item e na íntegra, os Fundamentos e a Decisão propriamente dita. Antes, porém, destaco um parágrafo que sintetiza tudo o que está por vir:

“… considerando que os comentários realizados pela ré Aliziane da Silva Donizete ocorreram “em ambiente fechado” no facebook, somente para os seus “amigos”, e tendo em vista que a esta já se retratou das suas ofensas, pois pediu desculpas em rede social e posteriormente enviou carta à cordenadora da FUNAI, e considerando ainda, que já foi afetada negativa e moralmente pela própria sociedade face às criticas e ofensas recebidas, creio que o dano já foi reparado”.

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7. Sem mais comentários 

“II – FUNDAMENTO. Afasto a preliminar de ilegitimidade passiva arguida pelo Réu (Facebook), uma vez que, em tese, a parte autora imputa responsabilidade ao Réu pelo suporte que é dado à divulgação de conteúdos. Rejeito. Observa-se pelo relato dos autos que a ré Aliziane Da Silva Donizete proferiu palavras ofensivas ao Grupo de Rap Brô MC´s em rede social, travando-se uma discussão entre os direitos constitucionais de liberdade de expressão e direito de personalidade, bem como o dever de indenização por dano moral à honra e imagem (artigo 5º, X, CF).

A indenização por dano moral, assegurada pela Constituição de 1988, é aquela que representa uma compensação pela tristeza e dor injustamente infligidas à pessoa contra quem foi cometido o ato ilícito. E, para evitar abusos, conforme recomenda o civilista Clayton Reis, só se deve reputar como dano moral a “lesão que atinge os valores físicos e espirituais, a honra, nossas ideologias, a paz íntima, a vida nos seus múltiplos aspectos, a personalidade da pessoa, enfim, aquela que afeta de forma profunda não os bens patrimoniais, mas que causa fissuras no âmago do ser, perturbando a paz de que todos nós necessitamos para nos conduzir de forma equilibrada nos tortuosos caminhos da existência”.

O dano moral é subespécie da espécie denominada dano extrapatrimonial. O tratamento do dano moral, em nosso ordenamento, é dado, entre outros, pelos artigos 1º, I, e 5º, V e X, da Constituição Federal; artigo 6º, VI e VII, da Lei nº 8.078/90; e pelo artigo 17 c.c. artigo 201, V, VIII e IX, da Lei nº 8.069/90. A natureza do dano moral pode ser tanto objetiva, quando o dano afeta a dimensão moral da pessoa no ambiente social em que vive (imagem), como subjetiva, quando diz respeito ao sofrimento psíquico da vítima. O Código Civil prevê, em seu artigo 944, que a indenização mede-se pela extensão do dano. No caso de dano extrapatrimonial, não é possível aferir com precisão sua extensão, devendo a mensuração partir do prudente arbítrio do julgador. Ora é inegável a efetiva mácula à honra de alguém que é ofendido com palavra de baixo calão, devendo por conseguinte, ser indenizadas as lesões experimentadas. Vejamos:

EMENTA: Ação de indenização por danos morais. Palavras de baixo calão e ameaça proferida contra a vítima. Prova testemunhal colhida nos autos que comprova a violação da honra subjetiva do requerente. Presença dos requisitos necessários para configuração do dano moral. Indenização devida. Quantificação do dano moral. Valor excessivo do quantum indenizatório. Redução, observadas as peculiaridades do caso. Sentença parcialmente reformada. Recurso parcialmente provido. TJ-SP – Apelação APL 9197627152007826 SP 9197627-15.2007.8.26.0000 – 30/10/2011.

O dano moral tem dupla função, a de reparar o dano sofrido pela vítima e punir o ofensor. No presente caso, pelo registro e divulgação das ofensas verbais, não há o que se discutir acerca da existência do dano moral, contudo, mais do que punir o ofensor é conferir um caráter educativo, consciente de sua atitude e não só o dever de indenização pecuniária, pois o dinheiro não é a única forma de reparar uma ofensa, sendo possível compensar o dano apenas com o direito de resposta. Nesse entendimento, a 7ª Jornada do Direito Civil que reuniu ministros do STF, STJ, desembargadores e advogados especializados na área cível para discutir os rumos do Direito e formas de encurtar decisões e gerar economia processual, aprovou o enunciado de número de 589 que estabelece: “A compensação pecuniária não é o único modo de reparar o dano extrapatrimonial, sendo admitida a reparação in natura, na forma de retratação pública ou outro meio”.

Desta forma, considerando que os comentários realizados pela ré Aliziane da Silva Donizete ocorreram “em ambiente fechado” no facebook, somente para os seus “amigos”, e tendo em vista que a esta já se retratou das suas ofensas, pois pediu desculpas em rede social e posteriormente enviou carta à cordenadora da FUNAI, e considerando ainda, que já foi afetada negativa e moralmente pela própria sociedade face às criticas e ofensas recebidas, creio que o dano já foi reparado.

 Também reputo ausente a responsabilidade do Facebook, pois, ainda que exista dano moral sofrido, não se vislumbra a sua responsabilidade pela veiculação de informações e mensagens tidas como ofensivas, já que sendo um provedor de conteúdo, apenas disponibiliza na rede social as informações encaminhadas por seus usuários. É o que entendeu a 1ª Câmara Cível do TJ/GO, Desembargadora Maria das Graças Carneiro Requi, nos autos da ação 228893-52.2011.8.09.0051. Vejamos: “Atribuir ao Facebook o dever de supervisão do conteúdo de cada mensagem postada, por seus usuários, implicaria em uma forma de censura, conduta incompatível com a natureza dos serviços que presta”. Assim, a fiscalização prévia pelo provedor de conteúdo, in casu, o Facebook, das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. Portanto, não lhe cabe o conhecimento preliminar de todo o conteúdo postado por seus usuários e nem o dever de fiscalização ou controle por parte dos provedores de Internet. Até porque, antes da abertura de conta no facebook, os seus usuários precisam “assinar” um termo de condições de uso. Além do mais, o próprio facebook disponibiliza ferramentas para realização de qualquer denúncia.

III – DISPOSITIVO. Posto isto, reconheço o dano causado e sua reprovabilidade, mas julgo IMPROCEDENTE o pedido de condenação, resolvendo o mérito, com fundamento no artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil, considerando que houve retratação pública eficaz, nos termos da fundamentação. Sem condenação em honorários advocatícios e custas processuais (art. 18, Lei n. 7.347/85). Publique-se. Registre-se. Intimem-se. Oportunamente, arquivem-se. Dourados,

Disponibilização D.Eletrônico de sentença em 03/12/2015 ,pag 389/405.”

Decisão enviada para Combate Racismo Ambiental por Luiz Henrique Eloy.

 

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