Rebeldia nos sertões*, por Carlos Alberto Dayrell**

O Golpe Militar de 31 de março de 1964 teve repercussão quase imediata no Norte de Minas. Foi como uma senha para que fazendeiros e militares desencadeassem o que ficou conhecido como o primeiro despejo de Cachoeirinha. À margem dos noticiários da época, em setembro de 1964, militares e jagunços invadiram as posses de dezenas de famílias que viviam nas planícies sanfranciscanas que ladeiam o rio Verde Grande e seu afluente, o rio Arapuim.

Em 1967, outro despejo sobre as famílias que, resistentes, haviam retomado suas posses. Desta vez, o despejo envolveu centenas de famílias em uma área muito mais ampla, acobertados pelo mesmo mandato de 1964 que tinha sido expedito por um, acreditem, Juiz de Paz.

Com barracos queimados, tulhas cheias de mantimentos destroçadas, criações mortas ou roubadas, centenas de famílias afluem para o povoado de Cachoeirinha, muitas delas sem ter para onde ir, e acampam debaixo da ponte do rio Verde Grande. Ao saber da notícia de mortes de crianças com fome, Padre José, pároco de Varzelândia, mobiliza apoio da cidade para amenizar as condições de sofrimento das famílias dos posseiros.

Cerca de 20 anos após o primeiro despejo, com quase uma centena de crianças mortas de fome e três lideranças dos posseiros assassinados (o primeiro deles, o preto velho Martim Fagundes), Tancredo Neves – o então governador de Minas Gerais – assina a desapropriação de fazendas para assentar as famílias de Cachoeirinha que ainda resistiam. No entanto, a desapropriação foi logo contestada na Justiça, uma vez que constitucionalmente cabia apenas à União a emissão de ato com este fim.

O Norte de Minas no contexto do desenvolvimento regional

Não podemos esquecer que a história do preto velho Martim Fagundes, fuzilado na cidade de Janaúba quando lutava contra o despejo empreendido pelo coronel Georgino Jorge de Souza [1], está associada com outros assassinatos ocorridos antes e depois desses episódios. Como testemunha ocular de dezenas de outros acontecimentos relacionados com a disputa territorial, Alvimar Ribeiro dos Santos [2] relata diversos casos de assassinatos de lideranças camponesas na região e que se somam com outros inúmeros não relatados, contando com a cumplicidade da ditadura militar e criando as condições para que uma grande transformação no campo brasileiro ocorresse por meio da denominada Revolução Verde.

Hoje, é possível ver os resultados de tal façanha. Com os investimentos públicos em infraestrutura (energia, estradas, telecomunicações), na pecuária de corte, na produção florestal e agricultura intensiva, principalmente via irrigação, a paisagem regional foi drasticamente alterada: circuitos econômicos que não estavam amarrados à lógica do capital foram paulatinamente desestruturados; os territórios tradicionais invadidos pelas grandes fazendas e empresas rurais; e a rica biodiversidade e agrobiodiversidade substituída pelos plantios homogêneos de eucalipto, capins, algodão, banana, entre outros. Acrescente-se a estes a degradação dos ecossistemas locais – cerrados, mata seca, caatinga e amplos refúgios de mata atlântica – e a deterioração dos recursos hídricos regionais provocados pela alteração do delicado equilíbrio hidrológico mantenedor de uma extensa rede hidrográfica. A resistência camponesa era rapidamente silenciada com assassinatos, expulsão violenta e a oferta de barracos ou lotes nas cidades.

No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, em defesa dos direitos dos camponeses expropriados, o movimento sindical cresceu na região, animado pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). Foi nesse contexto que emergem personagens como Saluzinho, Jader de Paula, Senhorinha, Antonio Inácio, Rosalino, Bui e Eloy Ferreira. E não se poderia dizer que essa resistência estivesse isolada do contexto nacional que se vivia na época.

Ao abandonar o ofício de tropeiro na linha de comércio entre a cidade de Januária e os veredeiros e geralistas que habitavam as cabeceiras dos rios Carinhanha [3], Pardo, Pandeiros e córrego do Gibão, Antonio Inácio ajudou a criar o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Januária. O ofício de tropeiro, tão antigo quanto a história da ocupação colonial, decaiu com as rodovias que iam sendo abertas para viabilizar a ocupação de terras supostamente desocupadas. Estas são tomadas pelos gaúchos no antigo distrito de Serra das Araras [4], ou pelas empresas reflorestadoras nas vastas chapadas arenosas situadas nas margens do rio São Francisco, em cima de terras griladas ou regularizadas pela Ruralminas.

Católico convicto, leitor da Bíblia, mas também de todos os livros e jornais que lhe caíam nas mãos, Antonio Inácio ingressou no movimento sindical e, em 1980, no emergente Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, cujas raízes no sul do Brasil se espalharam, levando esperanças a milhares de famílias que perdiam suas terras em função do avanço do latifúndio. Passou então a percorrer as comunidades, defendendo os direitos dos camponeses que resistiam à grilagem das terras. Por meio do movimento sindical, tornou-se amigo de Eloy Ferreira da Silva, sindicalista no município de São Francisco. Juntos, desenvolveram uma leitura crítica sobre a região norte mineira e a foram divulgando por onde passavam ou eram chamados. Segundo Eloy, suas ações não continham fronteiras: no lombo de um burro onde estiver um trabalhador, lá estarei defendendo. [5] Nesse tempo, Antonio Inácio divulga suas ideias em uma coluna semanal de um jornal local e que depois é publicado como livro, intitulado O Reino do Latifúndio.

Mas os ares da opressão explícita foram aos poucos mudando. Com a nova Constituição Federal, fruto das articulações da sociedade civil brasileira durante o processo constituinte, os povos e comunidades tradicionais – não apenas as indígenas, mas também outras – começam a emergir no cenário agrário brasileiro com feição diferenciada da até então vivida. Nos sertões de Minas, rompendo com a invisibilidade que, em outro momento histórico, foi fundamental para garantir suas estratégias de reprodução social, as populações negras passaram a reivindicar o direito à terra ancestral, assim como as populações das vastas chapadas onde os cerrados dominam lutavam pelo direito à terra comunal, ambas imprescindíveis para preservação do patrimônio imaterial de que são portadores (COSTA, 2005).

Outras estratégias visando à reprodução material e social das famílias rurais norte mineiras foram instituídas desde esse período e, dentre elas, a articulação com entidades e organizações que se posicionaram a favor das categorias rurais excluídas dos processos sociais verificados regionalmente. Foi nesse contexto que foi criado, a partir de 1985, o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA). [6] Durante os anos 1990, o Fórum Regional de Desenvolvimento Sustentável foi um dos espaços onde o CAA, a CPT, a Central Única dos Trabalhadores, FETAEMG e sindicatos de trabalhadores rurais promoviam debates e ações em torno do desenvolvimento regional, posicionando-se em favor de novas perspectivas societárias, que não a de subordinação aos ditames do capital e à lógica da revolução verde. O CAA, assim analisava o contexto regional:

O “desenvolvimento” ocorrido no norte mineiro não levou em conta a existência de uma diversidade de populações rurais que, historicamente, desenvolveram estratégias sensíveis no manejo dos recursos naturais, como o aproveitamento das potencialidades de distintos habitats, uso de variedades genéticas de plantas desenvolvidas e adaptadas aos diferentes agroambientes e no aproveitamento intrínseco da biodiversidade presente na flora nativa. Pelo contrário, afetou as bases de sustentação e de reprodução social dos grupamentos humanos, designados genericamente como pequenos produtores rurais, deixando-os ainda mais frágeis frente às adversidades climáticas da região (CAA NM, 2005).

Essa articulação entre instituições se conecta aos cerrados brasileiros com a criação da Rede Cerrado, constituída em 1992, durante a ECO 92, na qual lideranças camponesas da região tiveram uma participação expressiva. Conecta-se também a redes estabelecidas no semiárido, inicialmente com o movimento ambiental e cultural em torno do rio São Francisco, com a constituição da Associação Pra Barca Andar e, posteriormente, a Articulação do Semiárido Brasileiro – ASA-Brasil. Ao mesmo tempo, amplia-se a interação com setores ligados à pesquisa, com professores e estudantes, passando a dedicar o olhar para o entendimento da complexidade ecossistêmica e cultural da região. Pelo seu caráter de transição de ecossistemas e de clima com ambientes e paisagens diferenciadas e singulares, abriga em seu interior uma ampla diversidade cultural.

As lutas isoladas de famílias – designadas genericamente como posseiras e localizadas em diferentes ambientes e contextos sócio-econômicos e culturais – de comunidades negras, como em Cachoeirinha no começo da década de 1960; de comunidades geraizeiras e veredeiras nos municípios de São Francisco e Januária; ou de comunidades catingueiras nos municípios de Varzelândia tomam um novo fôlego quando se descobrem portadoras de distintas geohistórias (DANGELIS FILHO, 2005). Dessa forma, o Povo Xakriabá consegue a demarcação de parte de seu território e continua mobilizado na conquista de áreas que ficaram de fora, ao mesmo tempo em que assumem, no pleito de 2004, o destino político do município em que são maioria populacional e eleitoral. Em Brejo dos Crioulos, uma acirrada e permanente luta da comunidade quilombola, após o seu reconhecimento pela Fundação Palmares, leva o Incra-MG a elaborar e publicar o Relatório Técnico para Regularização de Território Quilombola. [7]

Na região do Alto Rio Pardo comunidades geraizeiras se insurgem contra a perda de seus territórios tradicionais e investem na retomada articulando-se com a Via Campesina. Em poucos anos duas áreas anteriormente ocupadas pela monocultura do eucalipto – Muselo e Vereda Funda [8] – são retomadas, iniciando a implantação de um projeto voltado para a reconversão agroextrativista. Nas amplas baixadas sanfranciscanas, território onde concentram centenas de comunidades negras e, ao longo do rio São Francisco, onde vivem outras centenas de comunidades vazanteiras, inicia-se uma insurgência contra o encurralamento dos camponeses pelos grandes projetos agropecuários ou pelos Parques – Unidades de Conservação de Proteção Integral –, que são criados como compensação ambiental desses mesmos grandes projetos e que incidem em seus territórios tradicionais.

Uma das características comuns dessas lutas é que suas estratégias de ação não são somente reação à expropriação. “Ao mesmo tempo em que lutam para sobreviver em contextos cada vez mais asfixiantes e marcados por graves violações de direitos sociais e de apropriação dos recursos dos territórios, procuram construir caminhos sólidos para a promoção do desenvolvimento rural em bases sustentáveis”. [9]

Romaria ao Areião, Rio Pardo de Minas. Foto: Luciano Dayrell
Romaria ao Areião, Rio Pardo de Minas. Foto: Luciano Dayrell

 

Luta pela terra e demandas territoriais das comunidades tradicionais

É nesse contexto que os movimentos de luta pela terra tomam novas feições, ao colocarem em cena suas demandas territoriais como espaços sociais não-capitalistas, não-brancos e de reafirmação de suas autonomias (COSTA, 2011). Movimentos que se inserem nesses distintos ambientes, expondo a gravidade da questão agrária regional e também a necessidade das políticas a elas direcionadas para que incorporem novas perspectivas. É assim que novos assentamentos de reforma agrária são criados, alguns deles com peculiaridades como o assentamento Americana no município de Grão Mogol, ou o Projeto de Reconversão Agroextrativista da Região do Alto Rio Pardo. Ao mesmo tempo em que lutam pela retomada de seus territórios tradicionais, propõem um modelo diferenciado de ocupação das terras, considerando os usos e manejos dos ambientes desenvolvidos pelas populações tradicionais dos gerais. Percebendo-se detentores de uma grande diversidade genética, com seus cultivos tradicionais de alimentos, fibras e óleos, movimentam ações de valorização da agrobiodiversidade local; estimulam a produção e melhoramento das sementes locais denominadas de crioulas; organizam feiras regionais de sementes [10]; e expõem seus produtos culturais por meio da Cooperativa Grande Sertão.

O que marca essa movimentação é a entrada em cena de populações vivendo em comunidades que reivindicam não apenas a terra, mas o direito de serem reconhecidas como detentoras de uma cultura própria, uma maneira diferenciada de ver e agir no mundo. Que possuem uma economia que considera outros valores que não o lucro ou a exploração do trabalho, um jeito diferente de usar e de manejar os ambientes cujo lastro é o conhecimento construído na ancestralidade.

São iniciativas que trazem perspectivas econômicas e societárias diferenciadas e que, não por acaso, articulam-se e inserem-se na construção de uma política nacional que reafirma o disposto constitucional da existência de uma nacionalidade plural. Emergem no cenário social e econômico como comunidades capazes de contribuir com uma produção associada com os denominados valores de existência que Oliveira (2010, citando CUNHA & ALMEIDA, 2001) denominou como mercadorias de quarta geração.

O Norte de Minas é uma região que, a partir dos anos 2000, reemerge no cenário nacional pela resistência dos povos do lugar aos processos de desterritorialização da agricultura. Os interesses que enfrenta agora não são somente os dos antigos latifúndios. São interesses de grandes conglomerados econômicos, do capital agroindustrial e financeiro, da mineração e da siderurgia, que se movem em órbita planetária subjugando governos nacionais, estaduais e locais. Por outro lado, se o enfrentamento é local, com as gentes miúdas parando máquinas, enfrentando grileiros e políticos corrompidos que dominam a máquina estatal, ele exige muitas frentes, muita inteligência e, principalmente, a capacidade de diálogo daqueles que, também em distintas órbitas e em distintos espaços, buscam sinergias e convergências em busca da sustentabilidade planetária.

Notas

[1] O Cel Jorgino era, então, comandante do 10º Batalhão de Polícia Militar de Montes Claros, defendendo interesses seus e de outros grileiros no distrito de Cachoeirinha, hoje Verdelândia (CHAVES, 2006).

[2] Agente da CPT, filho de camponeses que também perambularam em busca de terra e de vida melhor até que passaram a residir em Montes Claros, atuando no Norte de Minas desde o início da década de 1980.

[3] Sua família residia onde, no final dos anos 1980, foi criado o Parque Nacional Grande Sertão Veredas, consumando mais um ato de violência contra os geralistas e veredeiros que viviam secularmente nessa região como agroextrativistas.

[4] Atual município de Chapada Gaúcha.

[5] Frase atribuída por Alvimar Ribeiro dos Santos a Eloy Ferreira da Silva, em comunicação pessoal.

[6] O CAA surge inicialmente como um projeto da Fase articulado com a Casa de Pastoral de Montes Claros. Em 1989 esse projeto foi institucionalizado como AS-PTA e o CAA foi formalizado como uma associação civil sem fins lucrativos, tendo em sua composição de sócios agricultores, agricultoras e outras lideranças do movimento social da região.

[7] Emitido em 26 de dezembro de 2007, após quase dez anos de luta da comunidade quilombola.

[8] Municípios de Indaiabira e Rio Pardo de Minas, respectivamente.

[9] Trecho extraído da chamada por artigos da revista Agriculturas [v. 8, n. 4, dez. 2011], na qual a versão original deste texto foi publicada.

[10] Uma rede de organizações populares como associações quilombolas, geraizeiras, indígenas, CAA, CPT, STRs, Cáritas, MST e MPA, se unem com organizações estudantis NASCer, FEAB, e de pesquisa e ensino – Embrapa Cerrados, Cenargen, ICA/UFMG –, tendo como objetivo evitar a erosão genética ainda presente em escala significativa nos agroecossistemas camponeses da região.

Referências bibliográficas

– COSTA, J.B.. O Sertão: lugar de encontro de gentes e de culturas, síntese multicivilizacional da nação plural. Montes Claros, 2011.

– D’ANGELIS FILHO, J.S. Políticas locais para o “des-envolvimento” no norte de Minas: uma análise das articulações local & supra-local. Universidade Católica de Temuco – CDS. Dissertação de Mestrado, 2005.

– LUZ DE OLIVEIRA, Claudia. Os vazanteiros do Rio São Francisco: um estudo sobre populações tradicionais e territorialidade no Norte de Minas Gerais. Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado, 2005.

– MONÇÃO, K. M. G. As sementes da luta: o conflito agrário de cachoeirinha – um estudo dos assentamentos e dos acampamentos do município de Verdelândia, Norte de Minas Gerais. Dissertação de Mestrado – PPGDS UNIMONTES, Montes Claros, 2009.

– SANTOS, B. S. et alii. Produzir Para Viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira. 2002.

– SANTOS, Sônia Nicolau. À procura da terra perdida: para uma reconstituição do Conflito de Cachoeirinha. 137 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Políticas) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1985.

**Carlos Alberto Dayrell é engenheiro agrônomo, pesquisador do CAA Norte de Minas. Atualmente, faz doutorado na Unimontes.

*Texto (ótimo) de Carlinhos Dayrell, publicado por Combate Racismo Ambiental em 28 de abril de 2012. Um comentário recebido esta manhã, feito pelo neto emocionado de um dos participantes dessa luta, levou à sua releitura e à decisão de postá-lo novamente, resgatando a história e numa justa homenagem às comunidades geraizeiras, quilombolas, vazanteiras e do povo Xakriabá, que ainda não têm seus direitos constitucionais garantidos. (Tania Pacheco).

Destaque: Vazanteiros em defesa de território tradicional durante autodemarcação. Foto Giu.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

onze + 8 =