O campeche, o esgoto e a luta comunitária

Elaine Tavares – Palavras Insurgentes

Sol a pino de um lindo fevereiro. Saímos pelas ruas de areia do Campeche, do Castanheira em direção ao mar. Pelas veredas ainda há aquele cheiro de mato verde, tão típico do bairro, e as pessoas se cumprimentam mesmo sem se conhecer. Passamos pela casa do Guga, que fica em cima da duna, e fomos até o Morro das Pedras. De lá, voltamos pela praia para ver os pontos de esgoto que deságuam no mar. Caminhando pela “bera” já é possível ver as casas – algumas bem chiques, outras nem tanto – erguidas nas dunas, impedindo que a restinga faça seu trabalho de criadouro de vida. Chegando perto da Lomba do Sabão um cano, que deve ser o das águas pluviais, jorra uma água esverdeada direto na areia. Aquilo não é nada bom. É visível que a água está contaminada. Os banhistas, deslumbrados com o azulejo do mar, estão de costas. 

Toca a andar até a entrada da Pequeno Príncipe. Entre o rancho de canoa do seu Getúlio e o bar da ponta da praia corre o que antes era um rio, chamado de Rio do Rafael. Sua vazão já não é a mesma, mas ele aflora quando é tempo de chuva e corre para o mar. No seu leito hoje escorre um fio escuro de esgoto que vai cortando a areia bem pela entrada da praia, deixando parte dela com a cor esverdeada causada pelos efluentes contaminantes. Muitas crianças brincam ali, pois a água fica empoçada entre as camadas de areia, formando uma espécie de lago. É essa a primeira imagem que se tem ao chegar pela avenida principal.

Seguimos andando e nos deparamos com mais um ponto de deságue de esgoto. Alguém colocou ali alguns sacos de areia para impedir que o fio de água verde chegue até o Rio do Noca ou até à praia, mas a coisa está ali, limosa e fedorenta.

Mais alguns metros e, por entre as dunas, vem correndo o Rio do Noca, chamado pela indústria do turismo de “riozinho” e que virou uma espécie de point dos sarados. Ele era vivo e piscoso até uns cinquenta anos atrás e foi nesse rio que muitos pescadores da velha guarda do bairro aprenderam a remar nas canoas, a gurizada aprendeu a nadar, os bichos bebiam sua água, as plantações eram irrigadas e as mulheres lavavam suas roupas. Ele definia a área de ação das redes do seu Chico e do seu Deca. É um rio cheio de histórias e memórias afetivas. Mas, hoje, está impróprio para banho, como alerta a placa, e também virou escoadouro de esgoto. Ele igualmente salta das dunas e corre para o mar misturando-se à areia e aos banhistas. Também ali as crianças fazem sua praia particular, apesar de ser visível a coloração verde e a espuma. É de dar dó.

Na faixa de areia próxima ao mar estão os turistas. Alegres, tostados e de costas para o cenário que provoca lágrimas nos olhos dos que amam esse lugar e enxergam ali bem mais do que um lugar de veraneio. A praia do Campeche, para quem vive ali, é lugar do encontro, espaço de convivialidade. O bairro não tem uma praça, não tem espaços coletivos. A praia é o lugar onde os moradores são comunidade. Ela é dormitório dos barcos de pesca que ainda vivem, caminho do arrastão de tainha que se repete ano após ano, vereda dos vigias de peixes, dos surfistas, dos pescadores, dos meninos e meninas do projeto de música do rancho do Getúlio. A praia é casa.

Hoje, por conta do esgoto, fruto do descaso público e da ação predadora dos que não sabem amar o bairro, a casa está suja e feia. É hora de a comunidade sacudir a poeira das derrotas e rodar a baiana.

Alguns anos de dor…

Quando naquela fria manhã de julho de 2010 o Bar do Chico foi ao chão pela força das máquinas da prefeitura – numa ação brutal e vingativa da pequena política – os moradores mais antigos sabiam: era o fim de uma era. Com a derrubada do tradicional espaço de reunião coletiva dos campechianos também começava a ruir um tipo de comunidade que até então se mantinha unida pelos laços da tradição, da cultura e dos lugares afetivos. O bar do Chico era expressão viva de um jeito de ser, de uma maneira de se organizar e de fazer política. Não foi à toa a sua destruição. Era preciso quebrar a espinha de uma gente incomodativa que ousara, desde os anos 1980, a meter o dedo nas feridas, não só do bairro, mas de toda a cidade.

Naqueles dias, as máquinas arrastavam as tábuas velhas do bar, abrindo passo para o cimento dos condomínios que viria dar outra cara ao bairro, trazendo outras gentes, no geral bem pouco preocupadas com o cuidar da comunidade. Acossados pela oferta tentadora das empreiteiras, muitos moradores foram vendendo suas terras e os prédios passaram a dar o tom, não sem prejuízo, alterando a paisagem e corrompendo o lençol freático. A planície se encheu, a paisagem passou a ser área especulada, anúncio de turismo e vida boa de frente para o mar.

E, enquanto cresciam os condomínios o poder público vendia a promessa de um bairro saudável, saneado e belo. As obras do esgoto começaram a todo vapor e os canos invadiram as ruas. Boa parte do bairro recebeu a tubulação. Mas, nada da estação de tratamento.

Ainda que feridos por conta das derrotas concretizadas na derrubada do bar e nas construção desordenada de prédios nas dunas, os moradores que formam as forças vivas da comunidade, protagonistas da grandes lutas pelo plano diretor, não se abateram. Na coragem típica dos valentes seguiram “incomodando” com participação garantida nas reuniões do plano participativo, organizando oficinas, assembleia, encontros e audiências. Perdiam batalhas, não a guerra, e a luta recrudescia.

E nesse longo processo enfrentaram o desafio de barrar mais uma ideia absurda dos governantes que era a de jogar o esgoto de vários bairros – incluindo o Campeche – no mar, através de um emissário.

Durante as diversas oficinas realizadas para discutir o tratamento do esgoto, que deve ser uma responsabilidade coletiva, a comunidade compreendeu, com a ajuda de estudiosos e pesquisadores de renome, que havia muitas maneiras diferentes, baratas e eficazes de tratar os resíduos das casas. Estações descentralizadas dos efluentes se configuraram como alternativas que além de sustentáveis poderiam ser fiscalizadas pela própria comunidade. Mas, como sempre acontece, os governantes ficam surdos a qualquer coisa que não venha deles mesmos, muitas vezes ligadas a interesses outros que não o bem comum. Assim, a comunidade barrou, na luta, o emissário, mas não conseguiu garantir as estações de tratamento.

Enquanto tudo isso acontecia, o bairro crescia e muito mais esgoto passou a ser produzido. A praia, que era limpa e impecável, começou a sofrer visíveis alterações. Com a rede pluvial toda feita, os canos na frente das casas passaram a ser tentações. Muito mais fácil do que fazer um sumidouro no fundo de casa, dentro das regras estabelecidas, era ligar o esgoto na rede da água da chuva. E assim muita gente boa começou a proceder. A Associação de Moradores do Campeche, através da ação quase heroica de seus diretores, tentou fiscalizar. Mas, era casa demais, prédio demais, gente demais. Ataíde Silva, atual vice-presidente da Amocam, já perdeu a conta dos canos que pessoalmente lacrou com cimento, na tentativa de barrar a ilegalidade. Tarefa antipática, mas necessária. Ainda assim, tem sido difícil conscientizar as pessoas de que isso não só é uma ilegalidade como um ato contra elas mesmas, uma vez que a praia é o único espaço coletivo do bairro.

Agora, na temporada, os pontos de estrangulamento, frutos do crescimento desordenado, apareceram com todo o seu fulgor. Contabilizamos pelo menos quatro deságues de água pútrida direto na praia. É hora de acordar e retomar uma ação coletiva mais agressiva. Organizar a comunidade, pressionar o poder público.

A luta no bairro pelo Plano Diretor, que vem desde os anos de 1980, teve muitas baixas. Mas, muitos dos velhos guerreiros e guerreiras ainda estão aí, na batalha das infindáveis reuniões, tentando enxergar a cidade. Mas, é preciso que mais gente se mobilize. Os novos moradores, entre os quais deve haver aqueles que buscaram o Campeche para viver e não só para morar. Esse é povo que precisa se levantar. As respostas aos problemas a comunidade já tem. O que precisa é força para se fazer ouvir pelo poder público.

Ainda há tempo de salvar a praia, a casa pública, espaço do amoroso encontro comunitário. Mas isso não vai acontecer sem luta. Chorar e reclamar não adianta. O que precisa é ação. E essa batalha, nos bate a certeza, a velha e aguerrida Amocam não vai deixar de travar.

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