O Supremo sucumbiu ao populismo penal

“… se o STF sucumbe aos impulsos do populismo penal, buscando resguardar a própria legitimidade, a quem caberá a preservação de direitos e da liberdade contra uma sociedade autoritária e ansiosa por mais punição?”

Por Frederico de Almeida, em Justificando

Há dois problemas na decisão do STF que nesta semana admitiu a possibilidade de prisão já após condenação em segunda instância, mesmo que pendentes recursos. O primeiro é de natureza jurídica, formal. O segundo é político, e pode estar por trás do primeiro problema.

O problema jurídico formal reside no fato de que a decisão do STF contrariou texto expresso da Constituição, que em seu artigo 5º, inciso LVII, afirma que ninguém será preso sem trânsito em julgado da decisão condenatória. Trânsito em julgado – também disciplinado espressamente em texto de leis infraconstitucionais, como os Códigos de Processo Penal e Civil – significa a impossibilidade de nova revisão da decisão, ou seja, a impossibilidade de novos recursos.

Mas não quero me ater a esse problema, por duas razões. A primeira é a de que não é a primeira vez que o STF decide contra texto expresso de lei. Nos casos da união civil homossexual e da recente prisão do senador Delcídio do Amaral foi assim, com maior ou menor esforço argumentativo e de interpretação sistemática de normas constitucionais e infraconstitucionais. A segunda razão decorre de minha compreensão de que não há um sentido inato, ontológico do direito que não seja aquele dado por seus intérpretes. Não há, portanto, um sentido unívoco da Constituição ou um sentido absoluto e incontestável do que seja Estado de Direito; ao contrário, os sentidos dados ao texto constitucional e ao Estado de Direito são aqueles dados pelos juristas e interessados no direito em suas lutas pela construção das interpretações e usos legítimos do direito. E, no nosso sistema, cabe ao STF a última palavra sobre isso – muito embora a sua efetividade como interpretação legítima dependa da aceitação ou contestação de sua autoridade e de seu entendimento pelos demais agentes do campo jurídico, por sua vez relacionada à manutenção, no tempo e no espaço, de um mesmo padrão decisório.

Dito isso, volto ao segundo problema, que diz respeito ao fundo político da decisão do Supremo. Pelo que se ouviu e se leu das manifestações dos ministros, a intenção de combater a impunidade, atender a apelos populares por segurança e restaurar a autoridade da justiça criminal foram elementos determinantes da decisão. Esses argumentos devem ser levados em conta preferencialmente na avaliação da decisão do STF, pois estão por trás da argumentação propriamente jurídica construída pelos ministros a partir desses determinantes de natureza política.

Esses determinantes políticos podem ser associados ao que se convencionou chamar de populismo penal, punitivismo estatal ou movimentos de lei e ordem. Alguns autores, como Loïc Wacquant, David Garland e John Pratt, percebem esse movimento como uma tendência global associada à expansão do neoliberalismo, à desconstrução do Estado de bem estar social e ao aumento da influência da mídia na cultura de massas. Outros autores, como Michael Tonry, David Nelken e Nicola Lacey, embora admitam a tendência contemporânea ao aumento da punição e do encarceramento, insistem em que analisemos os determinantes e mediações locais, políticas e sociais dessas tendências em cada país.

Seguindo essa segunda trilha, é possível dizer que há vários indícios do recrudescimento penal no Brasil desde os anos 1990, embora tendências autoritárias de controle e punição possam ser encontradas em momentos mais distantes de nossa história, da ditadura militar ao escravismo. De outro lado, a Constituição de 1988, a construção de uma jurisprudência garantista e diversos movimentos de reforma desde então (como os juizados especiais criminais, as penas alternativas e a audiência de custódia) compuseram contrapontos relativamente bem sucedidos dessas tendências punitivistas.

Voltando nossos olhos para momentos mais recentes da conjuntura política, porém, vemos sinais de uma virada intensa a favor das tendências punitivistas: a eleição de políticos focados na segurança pública e com pautas claramente repressivas e contrárias a direitos humanos (a “bancada da bala”); a forte reação policial repressiva a movimentos sociais contestatórios desde 2013 (endossada inclusive por políticos de esquerda no poder em nome da “ordem” contra a “baderna”); o rápido avanço da emenda constitucional que reduziria a maioridade penal em 2015; a espetacularização do combate policial e judicial à repressão como via última possível de “moralização” e “saneamento” da política (antecedida pela aclamada Lei da Ficha Limpa); o aumento do número de linchamentos, execuções policiais e do encarceramento que afetam preferencialmente a juventude pobre e negra.

Contra tudo isso, juristas e militantes de direitos humanos ainda viam no Judiciário, apesar de críticas, um espaço de resistência. Contra julgamentos antecipados pela mídia, linchamentos e execuções policiais, o devido processo legal. Contra interpretações do direito que valorizam a ordem e a garantia da lei, a construção de uma jurisprudência baseada na liberdade e em garantias fundamentais. Contra a produção legistativa criminalizante e diminuidora de direitos, o controle de constitucionalidade pelo Supremo. Contra o pânico social, a racionalidade da justiça. Contra a barbárie, o Estado de Direito – ou, ao menos, uma idealização do que seja ele, ingenuamente associada à formalidade dos procedimentos e à regularidade de uma justiça institucionalmente independente.

Por isso, a decisão do STF sobre execução antecipada da pena não pode ser tomada de maneira isolada. Em primeiro lugar, porque não está isolada de precedentes do próprio Supremo, como o já citado caso do senador Delcídio Amaral e todas as inovações interpretativas trazidas pelo chamado “mensalão”. Em segundo lugar, porque não está isolada de tendências políticas que extrapolam o espaço judicial em favor do aumento da punição como antídoto à criminalidade, sustentadas por políticos populistas, juristas voluntaristas e por certo senso comum amedrontado pela violência urbana e indignado com a corrupção política. Nesse sentido, é ao mesmo tempo emblemático e temerário ouvir de ministros do Supremo que a decisão desta semana visava aplacar ânimos populares e restaurar a legitimidade da justiça; se o STF sucumbe aos impulsos do populismo penal, buscando resguardar a própria legitimidade, a quem caberá a preservação de direitos e da liberdade contra uma sociedade autoritária e ansiosa por mais punição?

Frederico de Almeida é bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.

Destaque: Estátua da Justiça. Ao fundo, o Congresso Nacional. Foto de Gil Ferreira (SCO/STF).

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