Sem água não há vida. É um bem comum essencial, na base da enorme biodiversidade que temos no planeta e condição para que a vida, entre elas a nossa, continue. Poucas vezes nos detemos em pensar na água – só quando falta nas torneiras de casa ou nos locais de trabalho. Ela vira notícia pela escassez, como foi em quase todo o ano passado aqui na Região Sudeste. Vira notícia também quando chuvas torrenciais de verão são acompanhadas de inundações e deslizamentos de encostas ou, ainda, quando barragens de rejeitos de mineradoras se rompem, matam e contaminam um rio inteiro. Desde que não seja com a gente, fingimos que tudo está bem e vamos levando a vida. Indiretamente, vemos problemas quando falta de água pode provocar problemas de geração das hidrelétricas e ameaça o conforto criado pela eletricidade no nosso cotidiano industrializado. Até reclamamos da água, quando as normais e abençoadas chuvas tropicais de verão voltam, como neste verão, alimentam mananciais e reservatórios, mas podem estragar a praia de fim de semana ou nos molhar ao se deslocar pela cidade.
Agora a água está nos jornais por causa do modo como a usamos, já que até o mosquitinho da dengue, chicungunha e zika, depende muito da água e gosta de nela se reproduzir, naquela que se acumula em potes de flores que temos em casa, nas caixas d’água que usamos, nas poças de ruas e terrenos baldios, nos montões de rejeitos de nosso modo de consumo predatório, muitas vezes simplesmente jogados por aí. Já a irresponsável e contínua poluição da Baía da Guanabara, de nossas lagoas e rios, entre tantas outras, parece assunto de especialistas, pois pouco comove e mobiliza.
Por que escrevo sobre a gestão da água? O que ela tem a ver com a gestão da cidade? Numa resposta curta: tudo! Mas por que a água não vira tema central numa agenda para a cidade em conjuntura eleitoral? Até prometer acesso à água encanada para todos muitos candidatos o fazem, especialmente numa cidade como o Rio, com tanta gente vivendo em bairros e favelas sem infraestrutura adequada para atender o direito de todas e todos de ter água garantida lá onde moram. Mas tal promessa raramente será cumprida uma vez eleitos, o que mostra a não centralidade da questão.
Provavelmente, candidatos e candidatas dirão que prefeituras e Câmaras de Vereadores não tem competência para lidar com este bem comum fundamental, pois isto é atribuição da empresa pública Cedae, do governo do estado. Mas a responsabilidade de garantir água a cada cidadão do território municipal é inegavelmente de autoridade locais também. Que se entendam é o mínimo a exigir, mas não deixem como está, empurrando com a barriga. Queremos tratar a água como um bem comum indispensável e queremos participar nesta questão, para não voltar a ter que cantar “De dia falta água, de noite falta luz”.
A questão que precisamos pensar é do ciclo da água como bem comum, ainda mais com a ameaça de mudanças climáticas chegando à nossa porta. O acesso à água potável é um momento neste ciclo, fundamental sem dúvida, mas apenas um momento. Para termos água em casa muita coisa precisa ocorrer com o maravilhoso movimento ecológico da própria natureza. Não importa onde a gente comece, mas sem nuvens e chuvas, sem mananciais que são por elas alimentados e que tornam constante o fluxo de córregos e rios até o mar, sem evaporação ao longo do processo e sobretudo no mar, sem formação de novas nuvens e ventos que unem umidades e temperaturas, a chuva não se forma e não cai. Cair forte ou fraca, mais aqui e menos lá, é do ciclo da água.
No processo natural do ciclo da água, inventamos captá-la em reservatórios para consumo humano e animal, para agricultura e indústria, para eletricidade. Ela está em tudo, mas ela é de uma quantidade dada, não aumenta e nem diminui. Somos nós, com nosso modo de consumo, uso, poluição e gestão, que estamos impactando e até limitando o ciclo da água. O desmatamento seca nascentes. A poluição a torna imprópria. O uso exagerado para a indústria e para a irrigação agrícola saliniza os solos e os produtos tóxicos contaminam a água e até os rios acabam, pois chegam praticamente secos ao mar. O nosso consumo urbano vira esgoto jogado por aí, em valas abertas, ou, quando recolhido por rede pública, acaba jogado ele também, em geral sem nenhum tratamento, em rios, baías e mares. Com a salinização e a poluição de todo tipo do mar o ciclo da chuva é seriamente afetado e, com ele, o próprio ciclo da vida.
E daí? Onde estamos? O primeiro e fundamental passo é discutirmos a água como bem comum. O segundo e essencial também é discutir o saneamento, pois tem a ver como lidamos com a água, fonte de vida. Aí se abre uma enorme agenda que devemos cobrar de qualquer candidato que venha pedir nosso voto de cidadania instituinte e constituinte. Se água é vida, somos nós, como nosso uso e gestão, que a transformamos em problema. Afinal, a água não é por definição poluída, nós a poluímos. Água não falta, nós criamos a escassez pelo desmatamento e poluição, uso agrícola e industrial sem responsabilidade, pelo esgoto que geramos. Mais, a escassez é, em última análise, um problema de privatização e mercantilização de um bem comum essencial. Afinal, o que pagamos quando pagamos a água? O investimento necessário para que a tenhamos em casa? Ou a privatização criadora de escassez que transforma um bem essencial em algo escasso, de acesso aos que podem pagar. Quem não paga que beba a água “sem tratamento”.
Seria bom que voltássemos a pensar na água, no ciclo da água, como um comum muito próximo e distante, mas intrinsecamente ligado como processo ecológico, que depende de nós aqui, no território em que organizamos nosso jeito de viver. Fazer isto pode ser uma forma de reconstruir o sentido do viver em coletividade. Não é que a gente é contra algo que embeleze a nossa cidade, mas pensemos antes nos comuns e como, em qualquer intervenção urbana, os comuns são tratados enquanto tais, prioritários por serem comuns. Como o ciclo da água precisa ser cuidado por nós, por nossos prefeitos e vereadores, a quem delegamos poderes de gestão coletiva? O comum, por ser comum, parece de ninguém. Aí ninguém cuida, como a nossa baía, por exemplo. Nós, como pivô da Região Metropolitana que tem a baía como um comum, somos os que mais poluem e mais devem dar atenção a ela. E a quem cabe cuidar dos deslizamentos, das inundações, do lixo jogado por aí, do esgoto a céu aberto, dos terrenos baldios e dos depósitos clandestinos de lixo? Tem coisas que, para serem bem feitas, precisam de boa gestão pública. Mas tem muita coisa que tem a ver com o modo como tratamos nossos comuns, é nossa responsabilidade, não dá para delegar ou cobrar.
Concluo fazendo uma simples proposta. Penso que é um absurdo pagar por água para beber. Já conquistamos o direito de ter água de torneira servida de graça em restaurantes e bares. Mas na rua, por que não renovar o sentido de viver em coletividade com todas as praças e parques equipados de bebedores públicos? Há uma tendência no mundo, que ficou clara no processo do Fórum Social Mundial, de combater a privatização da água e seu comércio em garrafas, que além de tudo ajudam de forma expressiva na poluição. Por que pagar pela água de beber? O que a indústria acrescenta? Só engarrafa! E se tivéssemos acesso a bebedores públicos como direito? Isto já está acontecendo em algumas cidades do mundo. Vamos topar esta? O outro lado disto será ter mictórios públicos espalhados pela cidade. Afinal, isto faz parte do ciclo da água no qual cada um de nós intervém para viver.
*Cândido Grzybowski é Sociólogo, diretor do Ibase.
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Imagem: Reprodução internet.