Essa é a segunda carta de Heloisa Helena Costa Berto/Luizinha de Nanã, enviada para o RioOnWatch. Leia a primeira, publicada em 17 de setembro de 2015, aqui.
Tem um mês em que vivo em estado de choque chorando e me sentindo fora da realidade.
No dia 11 de janeiro às 9:15 da manhã recebi uma ligação. Ao atender reconheci a voz da Sra R, uma senhora que morou em meu quintal por um ano. Ela disse ter se informado na subprefeitura, que eu devia cinquenta e cinco mil reais e que eu iria pagar a ela de qualquer forma. Acrescentou saber meu endereço e os lugares que eu frequentava. Declarou que iria mandar alguns familiares dela acabar comigo. Eu perguntei, “familiares?” Ela respondeu que eu já sabia o que a família dela fazia.
Comecei a tremer e chorar, pois a Sra R sempre falava da família que pertence a milícia. Acabou o telefonema dizendo que iria voltar na subprefeitura. Quando me acalmei tentei ligar para a Sra Marli Peçanha, funcionária do sub-prefeito da Barra. Liguei muitas vezes, mas ela não atendeu.
Fiz então o que seria melhor para me defender. Liguei para a Defensoria Pública e fui até o Centro da cidade onde encontrei o Dr. João e a Dra. Adriana. Tinha que me informar e saber o que eu poderia fazer, pois nunca me imaginei numa situação como aquela. Embora eles já soubessem de muitos fatos eu contei tudo desde o princípio.
Tenho uma casa religiosa, a Casa de Nanã. Luto há dois anos pela negociação e reassentamento de minha casa. Luto para que o direito dos moradores da Vila Autódromo que desejam permanecer na comunidade seja respeitado. Esta minha luta resultou em muitos confrontos com a subprefeitura do Rio de Janeiro. Fui muitas vezes humilhada, destratada, sofri com preconceito religioso. Cheguei ao ponto de ter uma crise nervosa na subprefeitura, depois de constantes humilhações por parte do Procurador do Município Marcelo Marques. Fiquei depressiva, acamada e meus problemas de dores crônicas pioraram.
Apesar de todos estes problemas minha vontade de justiça aumentou, fui a Brasília com a ajuda de Frei Davi Raimundo, estive em reunião com a Relatora da ONU Sra. Rita Izsak, em reunião no Senado com o Senador Paulo Pain, com o Desembargador do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro Paulo Sergio Rangel entre outros. Em audiência pública no Senado Federal na Comissão de Direitos Humanos Presidida pelo Senador Cristovam Buarque, fiz meu discurso em defesa do reassentamento e permanência da Vila Autódromo. Em virtude da luta que travamos recebi a Comenda Pedro Ernesto, a mais importante comenda oferecida pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro e a medalha Dandara oferecida pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
A luta sempre foi árdua para todos da Vila Autódromo. Sofremos pressões diárias constantemente. Frequentemente não temos luz e água, o serviço de lixo foi suspenso, as linhas telefônicas praticamente não funcionam. Isso também se incluem o serviço de internet e televisão a cabo. As empresas suspendem o serviço mesmo com os usuários com os pagamentos em dia. O serviço de correio também não funciona com normalidade. Muitos serviços são suspensos, por conta das empresas terem recebido informações de que não há mais moradores no lugar. Vivemos cercados por crateras que são inundadas de água de chuva e viram criadouros de mosquitos, isto com a junção do desmatamento de toda área do entorno da lagoa, mais a retirada de todas as árvores da comunidade que infesta a comunidade de mosquitos. Levamos 40 anos realizando um trabalho ecológico de florestamento, tínhamos árvores raras como Ipês e Pau-Brasil, todas as árvores da Vila Autódromo foram tiradas e viraram pó.
As pessoas que permanecem na Vila Autódromo e continuam defendendo os princípios de união entre os moradores, defendendo uns aos outros como uma família, são poucos. Pois a estrutura mental para suportar todas as humilhações que sofremos todos os dias tem que ser imensa.
Conheci o Sr M, marido da Sra R, através de um vizinho. Na época o Sr M estava com dificuldades pois a família cuidava e vigiava a casa de seu patrão na Vila Autódromo e este estava negociando com a prefeitura. Portanto, a família dele, que já residia na Vila Autódromo por muito tempo, ficaria sem ter onde morar. O Sr M conseguiu dinheiro com o patrão para comprar material de construção. Pediu para que eu cedesse um espaço, no meu quintal, para ele fazer a quitinete.
O Sr M nunca me forneceu dinheiro, o que houve foi troca de favores. Eu cedia espaço e ele fazia trabalhos de pedreiro para mim. Eu não sabia, na época, que a esposa dele tinha familiares perigosos.
Lembro-me do dia em que a família da Sra R foi despejada da casa do patrão. Foi um domingo de manhã. A Sra R chegou chorando muito e eu a acolhi com todo carinho.
Sempre tentei negociar com a prefeitura e ainda continuo tentando, pois meu principal interesse sempre foi ser reassentada, um direito que tenho perante a lei.
Todas as vezes que eu fui na subprefeitura da Barra da Tijuca para negociar, eu pedi por ela, Sra R, também, tanto quanto pedia pela minha filha. Ainda tenho cópia da carta reivindicando um acordo. No resumo eu pedia meu reassentamento, um apartamento para minha filha, pois ela tinha um lugar independente da minha casa onde morava, e um apartamento para a Sra R, pois ela não tinha onde morar.
A perita quando esteve em minha casa avaliou minha casa, o centro espírita, a quitinete de minha filha e as outras quitinetes. As informações que recebi eram que a pessoa recebia o valor da avaliação ou o apartamento da prefeitura. A Sra R sempre disse que precisava de um lugar para morar e que a prioridade dela era o apartamento.
Por minha casa ficar na beira da lagoa, pela avaliação ser feita em relação a casa e não ao terreno e de acordo com a lei (que diz que em caso de eu ser retirada da beira da lagoa eu posso ser reassentada na área social), resolvi aceitar o acordo, mesmo não concordando.
Começou então uma pressão para que eu saísse, antes de receber, e sem que a Sra R recebesse o apartamento dela. Tenho mensagens da Sra Marli Peçanha me pressionando para que eu saísse da casa antes do pagamento, e antes da prefeitura dar o apartamento para a Sra R. Falei claramente através de mensagens que eu só mudaria junto com Sra R. Só neste momento a Sra Marli marcou com a Sra R para fazer a escolha do apartamento dela.
Logo após, a Sra R ficou sabendo que tinha pessoas recebendo apartamentos e dinheiro de indenização. No dia que Sra Marli concordou em dar a chave do apartamento para Sra R, ela se negou e disse que só sairia com o valor em dinheiro também.
Eu disse que poderia lutar por um teto para ela, mas por dinheiro ela seguiria lutando sozinha. Foi quando ela foi a subprefeitura e disseram para ela que eu havia pego o dinheiro dela. Ela retornou nesse mesmo dia a ligar para mim com esta informação. Eu disse que isso era impossível pois qualquer valor era dado com cheque nominal.
Liguei para a prefeitura, e falei com uma funcionária da prefeitura, a Sra T. Ela me disse que já que eu defendia Sra R então esse valor era para eu pagar. Lembro que mais tarde Sra R me mandou um recado me pedindo cinco mil reais. Foi quando eu parei de responder as mensagens dela.
No dia seguinte uma vizinha minha ligou para eu ir correndo em casa, pois Sra R estava se mudando e a máquina de demolição estava demolindo atrás da minha casa. Quando cheguei Sra R já tinha se mudado, e uma das paredes do meu centro espírita estava no chão. Eles falaram que foi acidente.
A partir deste momento eu e meus filhos nos revessávamos noite e dia para vigiar a casa, pois ficamos com receio de uma demolição repentina, isso já havia ocorrido com três vizinhos nossos. A parede derrubada não foi reconstruída. Em outra ocasião a prefeitura já tinha derrubado parte de outra parede, que também não foi reconstruída. Minha casa atualmente está imprópria para moradia. Com as obras da prefeitura muitas paredes estão rachadas, há vazamentos em todos os cômodos, mofo por toda a casa, portas que não fecham, o teto da cozinha caído e inundações causadas pelo aterramento da rua que colocou minha casa em posição muito inferior ao nível da rua.
Com a ameaça de morte eu fiquei com medo de voltar na minha casa, proibi meus filhos de irem lá também.
No dia seguinte recebi mensagens da Sra Marli Peçanha citando os familiares da Sra R, mas quando eu tentava falar com a Sra Marli não conseguia. Depois recebi recados dizendo que a Sra R tinha invadido minha casa com os familiares dela e que só sairia se recebesse o dinheiro. Me comuniquei com a defensoria pública. Minha casa estava invadida e a prefeitura disse que iria demolir a parte da Sra R. Tive medo de que demolissem tudo. O defensor disse que isso não iria acontecer, que se comunicou com a Procuradoria Geral do Município e que o subprefeito Alex Costa me pagaria na quinta dia 14 de janeiro. Falou para eu esperar a comunicação da subprefeitura.
No dia 14 de janeiro minha casa foi cercada por guardas municipais armados, carros de polícia, o subprefeito Alex Costa, M, R e máquinas de demolição.
Durante a ação meu filho foi até minha casa, onde ele recebeu “conselhos” da Sra Marli Peçanha, que reafirmou que nós tivessemos cuidado com os parentes da Sra R, pois eles eram “muito perigosos”. A Sra R e a Sra Marli foram juntos no carro que serve à subprefeitura. Durante o trajeto a Sra R postou uma mensagem no grupo da comunidade, com informações sobre a negociação da minha casa e da minha vizinha, nome completo da minha vizinha e detalhes de nossas negociações com a prefeitura sobre as quais ela não tinha conhecimento, em um português perfeito com vírgulas e pontos, sendo que a mesma não sabe ler nem escrever.
Sei que devemos ser responsáveis por nossas ações, devemos assumir a consequência dos atos que praticamos. O dinheiro é um fator que cega as pessoas, desune famílias, ainda mais companheiros de luta. Esta é a razão de mencionar, acima, a pressão que vivemos na Vila Autódromo. Temos sido levados a desconfiar do vizinho, pois existe por parte da subprefeitura este trabalho de minar a confiança. Uma traição, por isso, seria então motivo de muitas discussões e separações. Os mais fortes reconhecem estas artimanhas e as afasta. Os fracos caem e a vida um dia cobra. A Sra R não sabe ler nem escrever, os valores dela são materiais, tenta se afirmar na vida pelo número de objetos caros que tem, para se sentir superior em algum ponto. Não tiro dela o erro da ambição, afinal ela foi paga pela prefeitura, e traiu quem a acolheu. Mas é visível, ao meu ver, que foi usada para me afastar da casa. Assim eu apavorada não iria na Vila, não reclamaria, e isso abaixaria meu valor, pois no desespero da ameaça eu aceitaria qualquer valor para ir embora e parar de lutar.
A Rua Autódromo que eu usava foi desativada, minha casa foi cercada e ficou dentro do Parque Olímpico.
Eu não posso mais levar visitas em minha casa, não posso praticar minha religião, o correio não tem acesso a minha casa, para entrar na minha casa tenho que usar crachá. Somente eu e meu filho temos direito a entrar. Tenho animais na casa que não estão se alimentando direito por causa da dificuldade de acesso. Eu tenho problemas de locomoção, pela Rua Autódromo eu conseguia ir andando. Agora eu tenho que entrar pelo Parque Olímpico, e da entrada até minha casa são cinco quilômetros.
As duas primeiras semanas, fiquei em silêncio, tinha medo. Foi a ocasião da formatura de minha filha caçula. Meu pensamento era só um, eu queria ver a formatura de minha filha, queria que tudo fosse lindo, que nada estragasse o momento dela. Lutei muito para conseguir formá-la em uma universidade boa.
Mas como sempre minha comunidade me deu força para falar, então saiu como um grito de liberdade. Falei para a comunidade que estava sendo ameaçada, eles me deram força, e eu voltei a lutar.
Organizamos uma passeata dia 27 de janeiro, fechamos a rua principal e fomos entoando gritos de luta e coragem, fomos da comunidade até a entrada do Parque Olímpico. Ao chegarmos na portaria convidei a todos para irem na minha casa para me visitar e na frente de todos, da imprensa, de representantes de ONGs, eles falaram que eu não poderia levar ninguém na minha casa.
Pacificamente, mas com força e persistência a comunidade de Vila Autódromo insistiu. Eu li o artigo quinto da constituição do meu país que diz que estavam impedindo meu direito de ir e vir, e impedindo que eu exercesse minha religião, já que minha casa é um lugar religioso. Havia policiais no local, pedi para que eles interferissem, pois os seguranças estavam cometendo um ato anticonstitucional. A resposta que ouvi era para irmos na delegacia, caso eu estivesse me sentindo ofendida. A alegação era que ele nem sabia se a casa era minha mesmo.
Continuamos unidos por mais algumas horas em frente a portaria, decidimos não ir à delegacia pois já havíamos feito isso na semana anterior e o resultado foi insatisfatório, já que o delegado era familiar da Sra Marli Peçanha.
Depois de algum tempo ouvimos o supervisor da portaria transmitir a resposta dada pelo subprefeito Alex Costa em relação ao meu pedido de receber visitas na minha casa. Ele nos disse que ninguém poderia entrar e que quem assim desejasse deveria antes fazer um cadastro na prefeitura.
A casa da Sra. Marcia Lemos está em situação igual a minha e ela já fez a requisição de entrada há um mês e ainda não teve autorização até o dia de hoje.
No dia 2 de fevereiro, estive mais uma vez na subprefeitura. Fui chamada no mesmo dia, logo após a passeata. Cheguei às 19:00hs. A proposta era para eu receber meu cheque, ir direto a minha casa onde estaria esperando um caminhão de mudança e na mesma noite a casa seria demolida. Não aceitei, tenho compromissos com meus santos e respeito por eles. Nunca iria expor meus santos e as pessoas que confiam em mim, na véspera de carnaval à noite pelas ruas. Marquei uma nova data que não foi bem aceita, com isso me senti mais vulnerável.
No dia 4 de fevereiro fui a ALERJ na Comissão de Direitos Humanos, fiz minha denúncia da ameaça de morte, e de como estou me sentindo. Fui aconselhada a permanecer em casa, não me expor nas ruas e sair da cidade. A preocupação é real e preocupante. Não sou a única a ser ameaçada na comunidade. Fiz inclusive denúncia de injúria, pois funcionários da prefeitura espalharam para a comunidade que recebi em novembro dois milhões de reais e agora em fevereiro quatrocentos e noventa mil reais.
Há dois anos eu não vivo, eu só luto, meu corpo está todo tomado por dores crônicas consequência da cirurgia, dos oito parafusos, das placas, falta de tratamento por falta de tempo e stress emocional.
Muito pior que isso e a minha partida, amo minha comunidade. Sinto-me vazia por dentro, roubada, invadida, violentada. Tiram de mim a razão do meu viver, a atividade de minha religião. O que eu desejava era apenas continuar com minha casa, meus animais, minhas plantas, ajudando as pessoas que vinham me procurar com seus problemas, cultuar meus santos com minha fé.
Agora o que eu quero é justiça. Que o povo da minha Vila Autódromo tenha assegurado seu direito à moradia, com dignidade, com urbanização. E por isso que lutei e continuarei lutando. Por esse povo guerreiro da Vila Autódromo que só deseja ter seus lares de volta.
ATENÇÃO. Os nomes de algumas pessoas foram substituídos por letras, por questão de segurança.
– Heloisa Helena Costa Berto/Luizinha de Nanã
Assista a participação de Luizinha de Nanã em Audiência Pública no Senado em novembro: